APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS

Como bem apontou o pesquisador Hernani Heffner 1, a circulação da obra cinematográfica de Alejandro Jodorowsky no Brasil, tanto nos canais convencionais de exibição quanto no circuito alternativo, praticamente não existiu. Como conseqüência, Jodo, para os diretores e para os críticos brasileiros, passou totalmente em branco. É claro que temos algumas raríssimas exceções: Glauber Rocha assistiu El Topo em Nova York e segundo depoimentos de seus amigos teria ficado maravilhado, Jean-Claude Bernardet viu A Montanha Sagrada, provavelmente, no Festival de Cannes de 1973. Mas, para quem não teve a oportunidade de visitar os Estados Unidos ou a Europa, Jodo permaneceu invisível. O seu único filme exibido no Brasil mais ou menos na mesma época de sua estréia “mundial” foi Santa Sangre, que passou por aqui no Fest-Rio de 1990 dentro de uma mostra paralela dedicada ao cinema experimental. Nela tinha um segmento focado no cinema experimental latino-americano e, ao lado do brasileiro Artur Omar, do venezuelano Diego Ríquez e de uma programação em homenagem aos 20 anos da produtora Belair, estava lá Alejandro Jodorowsky com o seu mais novo filme. Nesse mesmo ano, Santa Sangre foi projetado na Mostra Internacional de São Paulo, tendo parca repercussão na imprensa. Portanto, na época de lançamento de seus três primeiros filmes: Fando e Lis em 1967, El Topo em 1969 e A Montanha Sagrada em 1973, o Brasil ficou completamente de fora. Somente nos anos 2000, com a possibilidade de baixar filmes pela internet, foi possível pela primeira vez ao espectador brasileiro conhecer o cinema de Jodo (todos os seus filmes estão disponíveis para baixar). Mais recentemente, o Festival do Rio de 2006 exibiu três dos seus quatro filmes principais (em DVD) e no final de 2007, o Festival Jodorowsky, ocorrido no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro projetou todos os seus filmes em cópias restauradas. Além de trazer o próprio Jodorowsky em pessoa.

Com base nesta premissa, de que o cinema de Jodorowsky é ainda entre nós algo a ser descoberto, selecionamos e montamos os documentos da primeira parte desse dossiê. Há uma segunda parte prevista, com uma entrevista realizada por nós e artigos reflexivos, a ser publicada na próxima edição de Contracampo. O nosso objetivo é oferecer uma visão vasta da recepção dos filmes de Jodorowsky no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. A priori são artigos, críticas, resenhas e entrevistas da época (anos 70), embora haja algumas exceções, por deserjarmos dar uma leitura ampla e interessante da obra cinematográfica do autor. Esse é outro fator: Jodorowsky não é apenas um cineasta, e sim, um artista múltiplo que transitou e ainda transita por diferentes áreas da criação artística. Por isso, mesmo sendo a sua filmografia o nosso foco, é extremamente complicado pretender realizar um mergulho mais profundo nela sem levar em consideração sua proximidade com as outras facetas do realizador. Os dois documentos que abrem esse dossiê: "O Objetivo do Teatro" e "Melodrama Sacramental" nos mostram um Jodorowsky “pré-cinema”. A única experiência cinematográfica que Jodo tinha até então era o curta-metragem A Gravata (1957), co-dirigido com dois amigos e ainda bastante ligado ao seu trabalho como mímico. Ao longo de sua trajetória, Jodo sempre irá se referir a este curta como uma “pantomima filmada”, leia-se: como um prolongamento fílmico de sua fase com o mestre Marcel Marceau. De fato, apesar de suas qualidades cinematográficas, A Gravata não tinha sido concebido totalmente como cinema por Jodo e seus demais diretores. Portanto, nesses dois primeiros textos, vemos o Jodorowsky anterior à realização de Fando e Lis, o Jodorowsky do inicio do Movimento Pânico. Jodo troca a pantomima pelo teatro experimental e pelo happening. E tanto os seus happenings quanto as 100 montagens teatrais que realizou entre Paris e México ao longo do período 1957-1967 foram decisivas para a estética de seu primeiro longa. A leitura da descrição feita por Jodo da apresentação de “Melodrama Sacramental” nos sugere analogias altamente interessantes com as imagens de “Fando e Lis”, por exemplo.

Fando e Lis foi o único filme de Jodorowsky cuja cópia chegou ao Brasil. Como essa cópia chegou aqui é ainda um mistério até mesmo para o próprio Hernani: “Como a cópia veio parar aqui? Sim, porque depois do escândalo em Acapulco [Festival onde o filme foi exibido pela primeira vez], o governo mexicano não mandaria um filme iconoclasta para o Instituto Nacional de Cinema da ditadura brasileira a fim de interessar um distribuidor local. Conta outra.” 2 José Wolf, jornalista membro do Conselho do Estado da Guanabara, teria tido o privilégio de retirar a cópia  das prateleiras do INC e teria assim conseguido ver Fando e Lis. Mas, embora tendo assistido ao filme, o seu texto “Fando y Lis, o Happening da Libertação” não se propõe a um diálogo mais crítico e direto. Wolf intercala descrições de Fando e Lis com frases do autor, sem citar as fontes. Algo similar ocorre com "Jodorowsky e a Estética da Iluminação", de Luis Carlos Maciel. Em sua resenha, Maciel utiliza como referência uma entrevista de Jodorowsky publicada junto com o lançamento em livro do roteiro de El Topo nos Estados Unidos. Declarando apenas essa entrevista como fonte, o texto nada mais é do que uma compilação de falas de Jodo. Não há análise, não há interpretação, apenas uma costura das declarações do diretor com alguns pequenos comentários. Maciel com certeza não viu A Montanha Sagrada e provavelmente teria usado para a sua matéria, além da fonte citada, algum material de imprensa ou release recebido do exterior. Baseado no material que tinha à mão, ele forja o termo “Estética da Iluminação”, que, ao final de seu texto, resume o que, segundo ele, Jodorowsky buscaria alcançar com o cinema.  Jodo é aqui visto como um importante artista de vanguarda cuja obra é de expressiva relevância para a arte ocidental contemporânea.

Tal relevância do cinema de Jodo também é defendida por Jean-Claude Bernardet. Dos três documentos desse dossiê referentes à recepção crítica brasileira a Jodorowsky, a sua resenha de A Montanha Sagrada é o único que almeja construir alguma análise especulativa. Ele define a imaginação do diretor como “luxuriante” e enxerga nela “um excepcional poder para a criação de imagens-choque”. Essa imaginação estaria situada “na linha de um barroco sensual, violento e sangrento”. A busca de definições e categorizações de Bernardet o leva a dividir o filme em duas partes, uma em que Jodorowsky constrói um mundo que odeia e outra em que esculpe um mundo que aprova. Mesmo sendo simplista, essa divisão não deixa de ser interessante por tentar detectar nessas “duas partes” traços estilísticos diferentes. Bernardet leva em consideração que o filme analisado “tão logo não será exibido no Brasil devido a problemas de distribuição e outros”. Reflete também em relação ao fato de que é difícil escrever sobre um filme para leitores que ainda não o viram, mas considera esse esforço de informação como algo verdadeiramente válido.  

Se nós brasileiros tivemos essa dificuldade de acesso aos filmes de Jodorowsky, para os nossos vizinhos de continente a situação não foi muito diferente, mesmo em relação aos festivais. Por isso foi uma certa surpresa descobrir que Fando e Lis foi enviado ao Festival de Viña del Mar de 1969, como um dos representantes mexicanos. O Festival de Viña del Mar é um marco para o chamado Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). Assim como a sua edição de 1967, junto com o Festival de Mérida de 1968, na Venezuela, Viña ficou consagrado como o ponto de encontro dos cineastas da geração dos “cinemas novos” do continente, marcados pelas discussões políticas e estéticas. O então crítico Francisco José Lombardi (atualmente, um dos mais conhecidos cineastas peruanos) é responsável pela resenha da seleção mexicana, na revista peruana Hablemos de cine (uma das mais importantes revistas de cinema da América Latina das décadas de 60 e 70 e um dos baluartes das idéias do NCL). Porém, em um festival no qual Ernesto Che Guevara, assassinado um ano antes na selva boliviana, foi escolhido como presidente honorável, a busca de Fando e Lis para chegar a Tar parecia um corpo estranho.

Vinte e um anos depois, Viña del Mar volta a sediar um significativo encontro para os chilenos. O “Festival do Reencontro” é o cognome atribuído ao Festival de Viña del Mar de 1990, o primeiro a ser realizado após a redemocratização do país, e que promoveu o reencontro entre os cineastas que se exilaram e os que permaneceram no país. Em uma publicação estatal, escrita pela pesquisadora chilena Jacqueline Mouesca, as duas últimas décadas dessa cinematografia são abordadas e a figura de Jodorowsky é mencionada, no capítulo referente aos chilenos “de fora”. Qual é a relação da obra de Jodorowsky com a cultura chilena? Talvez este seja um falso problema para o próprio Jodorowsky, que odeia identidades culturais, ideológicas, étnicas e religiosas. Jodorowsky é um cineasta chileno? É um cineasta judeu? É um cineasta “europeizado”? Para Jodorowsky, Jodorowsky é Jodorowsky!

Para o crítico mexicano David Ramón, em seu artigo “Aves sin nido, ou a apaixonante história de Anita de Montemar e um cinema sempre de costas para a sua realidade”, publicado pela primeira vez na Revista de la Universidad de México em 1972 e reproduzido, um ano depois, pela revista venezuelana Cine al día (também vinculada ao NCL), o cinema mexicano se caracteriza por ser uma manifestação cultural alheia à realidade do país. Um país em crise econômica e sobretudo política, expressa pelo chocante massacre aos estudantes na Praça de Tlatelolco, em 2 de outubro de 1968. Ramón ironiza o fracasso das tentativas de renovação de uma indústria cinematográfica decadente, marcado pelo falseamento, na sua opinião, da sociedade mexicana nos filmes. Utiliza como referência, ao longo de todo o texto, o longa-metragem Ave Sin Nido – Anita de Montemar (Dir: Adolfo Muñoz, 1943) para definir a essência do cinema mexicano: acometido pelo pior dos melodramas e alheio à realidade do país. Nos anos 1960, os filmes mexicanos se voltam para os temas “juvenis”, filmes “de jovens”, mas, segundo Ramón, não vemos os “verdadeiros jovens”, os estudantes que foram às ruas e foram mortos por sua mobilização, mas personagens “alienados”, preocupados, assim como a Anita de Montemar, com os ditames do coração. Por outro lado, Ramón também é severo com os cineastas do chamado “cinema novo mexicano”, que ingressam na indústria graças à política de renovação capitaneada pelo presidente Echeverría. Dessa forma, jovens como Arturo Ripstein, Alberto Isaac, Jaime Humberto Hermosillo, Paul Leduc, Felipe Cazals, Mauricio Wallerstein, Jorge Fons, Sergio Olhovich e outros mais injetam sangue novo em uma cinematografia decrépita diante dos “cinemas novos” de todo o mundo. Porém, para o autor, trata-se de uma falsa “renovação”. Mas, e Jodorowsky nessa história toda? Uma figura estranha, pois não realiza filmes “de jovens” e nem se encontra nas fileiras do “cinema novo mexicano”. Entretanto, para Ramón, El Topo, assim como os filmes “juvenis” e as obras dos “cineastas novos”, está de costas para a realidade mexicana assim como os melodramas à la Ave Sin Nido –  Anita de Montemar. Apesar das ironias e de uma leitura que hoje soa extremamente sectária, aproximar Jodorowsky da tradição melodramática mexicana aparenta ser uma leitura interessante. Não segundo a interpretação de Ramón, vinculando El Topo com a “alienação” dos melodramas da “Época de Ouro”, mas refletindo sobre as relações entre o esoterismo jodorowskyano e a ideologia religiosa popular presente na cinematografia mexicana. Malgré lui, Ramón aponta para uma relação que nos parece ser enriquecedora, principalmente se pensarmos em Santa Sangre.

A Montanha Sagrada foi exibido, fora de concurso, no Festival de Cannes de 1973. Os Cahiers du Cinéma se encontravam em seu momento maoísta e, ao longo de todo este ano, Jodorowsky passaria em branco. A revista estava mais preocupada nas relações entre política e cultura e querelas, como um debate com a revista Tel quel. Somente três anos depois, Jodorowsky ocuparia um espaço nos Cahiers du Cinéma, em uma crítica arrasadora de El Topo. Por intermédio de uma linguagem de inspiração althusseriana, o filme é descrito como uma obra louvada pelo “aparelho crítico” (termo elaborado a partir do conceito de “Aparelho Ideológico de Estado”). Desse modo, os Cahiers du Cinéma ironizam um determinado setor da crítica, que se impressionou com Jodo (uma crítica entendida como integrante do establishment e, portanto, “aparelho crítico”). Porém, a irônica crítica não se restringe à “crítica burguesa”, uma vez que o próprio filme é interpretado como politicamente reacionário (inclusive por se aproximar do surrealismo, definido como um movimento conservador) e “tolo”, por realizar uma fraquíssima apropriação de conceitos psicanalíticos (e aqui é necessário ressaltar a “inspiração althusseriana” do texto, demonstrada na preocupação em aproximar o marxismo do lacanismo; justamente o que El Topo não faz – e nunca pretendeu fazer!). Trata-se de um artigo que espelha, de modo contundente, os princípios ideológicos que regiam a revista nos anos 70. Assim, Jodo apenas poderia aparecer em suas páginas como um contra-exemplo de modelo de cinema.

Se por ocasião da exibição de A Montanha Sagrada em Cannes, o silêncio foi a postura dos Cahiers du Cinéma, a Positif o abordou apenas em um breve parágrafo, em sua resenha do Festival. Entretanto, coube à La Révue du Cinéma – Image et Son se interessar verdadeiramente pela figura de Jodorowsky e tentar compreender o “místico” filme exibido no festival. Desse modo, no ano seguinte à sua exibição em Cannes, a revista realiza um dossiê Jodorowsky, formado por declarações e uma entrevista  com o diretor. Esboça-se um perfil do cineasta, seus dados bio-filmográficos e algumas de suas opiniões acerca do cinema, da arte e da vida. É possível entrever uma simpatia por parte dos redatores por Jodo, que, curiosamente, ressalta (de modo irônico) a sua condição de “sul-americano”.

A revista britânica Sight and Sound destinou uma crítica favorável a El Topo em 1973. Em uma postura próxima ao da crítica estadunidense que, em sua maioria, ficou fascinada pelas fortes imagens dos filmes de Jodo, o artigo em questão descreve o filme, relacionando-o não apenas a aspectos esotéricos, mas a cineastas como Fellini, Buñuel e Peckimpah. Isento de uma grave preocupação em desvelar simbologias ocultas no filme, o redator, sabiamente, se propõe a ver El Topo como o que ele simplesmente aparenta ser: um western. A revista norte-americana Show publica uma resenha de A Montanha Sagrada onde é rapidamente mencionada a circulação de El Topo pelo circuito underground de Nova York. A projeção de El Topo no Elgen Theatre em sessões à meia-noite iniciou o fenômeno de exibição estadunidense que hoje é conhecido como Midnight Movie. O texto também se refere à inserção de El Topo e de A Montanha Sagrada no contexto da cultura pop-lisérgica então em voga nos Estados Unidos. Dentro desse contexto contracultural, Jodorowsky parecia, enfim, ter encontrado o seu público.

Como já mencionamos antes, a possibilidade de baixar filmes pela internet fez com que Jodorowsky voltasse à cena. Somado a esta revolução virtual, podemos citar o recente lançamento em DVD de seus filmes na Europa e nos EUA. No embalo, reproduzimos aqui uma entrevista do site francês DVDClassik, que dá uma pequena visão de seu trabalho e da sua opinião no processo de remasterização das cópias para os DVDs. Um cineasta cuja obra se encontrava apenas por meios alternativos, torna-se enfim “visível”, depois de mais de três décadas.

Estevão Garcia e Fabián Núñez
(pesquisa e organização dos documentos)

1. Heffner, Hernani, Jodorowsky e Eu, Festival Jodoeowsky, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2007.

2. Ibidem.



 






Jodorowsky no CCBB do Rio de Janeiro.