– Acredito
que a única meta
de toda atividade humana – seja
ela política, arte,
ciência, etc. – é alcançar
a iluminação, atingir o estado
de iluminação. Peço do cinema o que a maioria dos norte-americanos
pede das drogas psicodélicas. A diferença é que quando
alguém cria um filme psicodélico, não precisa criar
um filme que mostre as visões de uma pessoa que tomou
pílula; antes, ele precisa fabricar a sua pílula. Acho
que a viagem de Alexandre, o Grande, é uma viagem psicodélica.
Muitos dizem que Alexandre era um idiota,
porque sua conquista era tão grande, tão completa,
que à medida em que ele progredia em conquistar o mundo,
estava realmente avançando no sentido de seu fracasso
final. Penso que Alexandre estava viajando até as profundezas
do ser. Acho que Ulisses foi outro grande viajante.
Quero viajar pela rota da “Odisséia”. Quero viajar
pela rota de Alexandre. Quero viajar até as áreas mais
profundas do meu ser para atingir a iluminação.
Essas palavras são de Alejandro Jodorowsky, o cineasta de El Topo, recente
sensação do cinema de vanguarda internacional. Ele tem 43 anos de idade, nasceu
no Chile, de pais russos, trabalhou em teatro na França e, atualmente, mora no
México, onde rodou seu filme. Ele próprio conta sua história, numa longa entrevista
publicada na edição em livro do roteiro de El Topo (Douglas Book, New
York):
– Dirigi muitas peças no teatro da universidade e trabalhei muito com mímica.
Na época, estava com vinte e três anos e tinha uma companhia de cinqüenta pessoas.
Depois, fui para Paris onde estudei com Etiene Decroux, que foi o professor de
Marceau e de Barrault. Trabalhei com Decroux por seis anos e escrevi duas mímicas
para ele, The Mask Maker e The Cage; fiz também uma viagem por
todo o mundo com ele.
– Éramos três na companhia. Também dirigi Maurice Chevalier quando ele retomou
sua carreira no L’Alhambra Theatre.
– O show teve tanto sucesso que o teatro passou a chamar-se Chevalier. Fui também
o primeiro a dirigir Michel Legrand e o apresentei no L’Alhambra. Durante um
ano dirigi o Trois Baudets Theatre com Canetti, o empresário, Raymond Devos e
Guy Behart começaram naquele teatro. OK. Há tantas coisas. Depois fui para o
México onde dirigi mais de cem peças. Fiz, de Ionesco, As cadeiras, Vítimas
do Dever e O Rei sai. Fiz esta última com o melhor ator do México,
Lopez Tarso, num teatro de oitocentos lugares. Tivemos casa cheia todas as noites.
Fiz Fim do Jogo, de Samuel Beckett, Ghost Sonata, de Strindberg,
e uma adaptação de seu Dream Play. Montei também peças surrealistas e
escrevi uma com Leonora Carrignton.
– Voltei a Paris e fundei um grupo de Teatro do Pânico com Arrabal, Topor e Sternberg.
Montamos um happening em Paris que durou quatro horas. Arrabal
menciona freqüentemente esse happening em sua autobiografia.
– Eu o dirigi. Ferlinghtti o viu e o publicou no seu City Lights Journal. Arrabal
me pediu para escrever sobre minhas teorias sobre o teatro para sua revista teatral.
Um número inteiro.
– Mas não pude fazê-lo porque minhas teorias sobre teatro mudam a cada três horas.
Além de toda esta atividade, Jodorowsky escreveu contos, peças etc. (Panic
Stories, Panic Games, Panic Theatre) e publica num jornal
mexicano uma tira de histórias em quadrinhos, Panic Fables, que ele mesmo
escreve e desenha. Seu primeiro filme, feito em Paris, era baseado na novela Cabeças
Trocadas, de Thomas Mann.
Depois dirigiu sua própria versão de Fando e Lis, de Arrabal: apresentado
no Festival de Acapulco, em 1968, o filme foi considerado “corrosivo e corruptor”.
As autoridades mexicanas ainda recusaram enviá-lo representando o país,
e só permitiram
sua exibição depois de meia hora de cortes.
Seu novo filme, A Montanha Sagrada, está pronto para ser lançado. Jodorowsky
descreve a si próprio:
– Às vezes, eu me sinto absolutamente
louco.
– Digo: o que é que estou fazendo aqui? Porque sinto a realidade tão irreal e eu
mesmo tão estranho. Tenho uma mente, um fígado, um coração. Tudo que olho e sinto
está dentro de mim mesmo.
– Não é a realidade. Sou apenas uma enorme reação. Não é a coisa. Não estou sentindo.
– Sou o que é sentido. O homem que sente.
– Tudo é tão subjetivo. Se alguém me diz que estou louco, digo que sim, estou absolutamente
louco como toda a civilização e todas as pessoas do planeta. Acho que toda a
humanidade agora está totalmente biruta e louca.
– E em certos dias, quando a minha essência vê a mim mesmo, como meu ego é biruta
e louco, eu rio – com amor e compaixão. E no momento que você tem a iluminação,
você começa a rir.
– Porque você vê a si mesmo, como você é biruta e louco Então você sente compaixão.
Tenho muita pena de mim mesmo porque sou tão biruta e louco.
El Topo é uma estranha obra surrealista. Jodorowsky escreveu o roteiro,
desenhou cenários e figurinos, compôs a música, dirigiu o filme e interpretou
o papel principal. É uma complicada alegoria da busca espiritual de um homem,
entremeada de sangue, sexo e violência, cheia de citações sutis e referências
eruditas.
Uma simbologia livre domina as cenas. Diz Jodorowsky:
– Há muitas maneiras de falar. Você pode gritar para uma pessoa ou falar muito
suavemente. Normalmente, um filme fala para certas partes do ser humano. Fazemos
uma distinção entre a parte atlético-muscular do ser humano e sua vida sexual,
sua vida mental e sua vida emocional. Eu não falo para nenhum desses centros.
Eu falo com o meu inconsciente para o seu inconsciente.
– É outra espécie de linguagem.
– Estou tentando colocar os sonhos na realidade e não a realidade em sonhos. Quando
você senta comigo para ver o filme, o que estou tentando fazer é colocar os seus
símbolos na realidade. Cada um de nós tem seus símbolos inconscientes.
– Você tem tudo na sua mente. O homem não é um criador. Mas o homem está descobrindo
o tempo todo. O que estou tentando fazer é usar símbolos para despertar alguma
reação no seu inconsciente. Tenho muita consciência do que estou fazendo porque
os símbolos podem ser muito perigosos. Quando usamos linguagem normal, nós podemos
nos defender porque nossa sociedade é uma sociedade lingüística, uma sociedade
semântica.
– Mas quando você começa a falar, não com palavras, mas somente com imagens, as
pessoas não podem se defender. É por isso que ou você ama ou odeia um filme como
esse. Você não consegue ficar indiferente.
Jodorowsky procura, com sua nova atitude, um foco para a arte ocidental contemporânea. As linhas tradicionais de pensamento que orientavam as poéticas pessoais dos
nossos criadores perderam o sentido. Esgotamos aparentemente todos os ângulos
de análise e, contudo, todo o trabalho ainda está para ser feito. Queremos retratar
a condição humana, mas ficamos perdidos entre os incontáveis reflexos desse jogo
infinito de espelhos que é a mente. Na verdade, essas imagens são reflexos vazios
que não correspondem a nenhum objeto comum e substancial, do qual elas pudessem
refletir supostos aspectos essenciais, devido ao fato simples de que não há nenhum
objeto assim. O real é o próprio jogo vazio de imagens e a arte, que pretende
representá-lo tem necessariamente a mesma natureza. A vida é sonho – e os sonhos
também são sonhos. O sonho é apenas a tomada de idéias, imagens mentais para
as quais não há nenhum objeto correspondente. Perseguimos o segredo de uma alucinação
pois, a cada instante, o que estava aqui já não está mais, nem aqui nem em parte
alguma.
Jodorowsky dedicou-se à prática de vários sistemas orientais de meditação e,
hoje, preconiza o esvaziamento mental para que a iluminação interna possa se
manifestar. O cineasta conheceu os métodos de vários gurus hinduístas, que o
introduziram a ioga, e passou dois anos como discípulo de um mestre Zen. As relações
entre mestre e discípulo constituem um dos temas centrais de El Topo:
o personagem principal precisa matar quatro mestres que vivem no deserto, para
criar o seu próprio caminho, e todos os quatro consentem de bom grado em serem
eliminados. Seu novo filme, A Montanha Sagrada, conta a história de um
mestre que toma nove pessoas – o que forma “um sistema solar”, segundo Jodorowsky – e
promete a elas a imortalidade. Eles devem buscá-la na montanha sagrada. Diz Jodorowsky:
– A única coisa que um mestre pode ensinar é como você mesmo pode aprender. Não
há segredos. Nossos mestres são os animais e as crianças. As crianças são tão
fantásticas. E o que é que elas fazem? Elas brincam.
Bem, nós devemos brincar. Jogos fantásticos.
O jogo da iluminação. Brincar para
falar com Deus. Jogos que podem, brincados no universo, serem fantásticos.
A viagem astral pode ser um jogo muito lindo. A reencarnação – que jogo!!!
Reencarnar em qualquer espécie de coisa. Fantástico! O jogo de morrer. O jogo
de se casar. O jogo de ter filhos. O jogo de ficar doente. O jogo de ter câncer.
O jogo de matar uma pessoa na guerra. Todos os jogos.
Todo nosso movimento é um sonho. Comece com seu corpo. Fique confortável. A solução é ter
a coragem de ver o seu ego; como ele é realmente. E dizer – Maya, Maya (ilusão,
ilusão) – e pôr de lado seus problemas. Mas você tem de conhecer seus problemas
para pô-los de lado. Quebre o reflexo condicionado. Mate seu passado, mude seu
nome, modifique os seus movimentos. Limpe sua mente. Limpe seu coração. Limpe
seu sexo. Ponha ordem em seu sexo, seu coração, sua mente. Seja um cara novo.
Mude todos os seus hábitos. Acho que cada um de nós tem, no seu inconsciente,
a idéia de sua própria perfeição. Este corpo não é o meu corpo porque não fiz
este corpo. Recebi este corpo. Recebi minha vida. Eu não fiz minha vida. Minha
vida não é realmente minha vida. É um presente. E este corpo surge da sabedoria
universal. A chave para todos os símbolos é o corpo humano. Ele tem tudo. Nosso
inconsciente é infinitamente sábio. Ele conhece nossa perfeição. Nós podemos
ser perfeitos. Nós podemos ser o homem completo. Acho que nesta civilização nós
não somos o que nós somos. Estamos abaixo de nossas possibilidades. Abaixo. Mas
estamos aprendendo, como crianças. Sou muito otimista. Mas esta sociedade lhe
dá um sentimento falso de seu corpo. Ninguém lhe ensina que você não tem um corpo
individual. Acho isso: nós temos um corpo social. Se há doença no mundo, eu estou
doente. Se há crime no mundo, eu sou o criminoso. Se há um valor no mundo, eu
tenho esse valor. Os judeus estão esperando o Messias – um homem-Deus que trará justiça
ao mundo. Mas o verdadeiro Messias é um dia – o dia em que toda a humanidade
terá a sabedoria. Será o dia do corpo coletivo e da alma única.
A arte de vanguarda de nosso século se opôs a arte realista, à arte da visão
social e da perspectiva histórica, com um decidido mergulho na subjetividade,
procurando penetrar no fundo irracional de todas as coisas. É uma arte que quis
pôr em questão a essência do mundo, uma arte metafísica e, portanto, especulativa,
freqüentemente incendiada pela imaginação excitada e pela loucura. Foi esse tipo
de arte que formou Jodorowsky: a arte do Teatro do Pânico, de Arrabal, que parece
procurar o significado metafísico de paranóia, essa doença que ainda poderá caracterizar
o nosso século. Mas o abismo do irracional não tem fundo: pode ser sempre cavado
para mais longe, da mesma maneira que os edifícios conceituais da razão lógica
podem ser sempre construídos e ampliados, sem limite. O pânico, experiência extrema,
só pode encontrar solução em outra experiência extrema, a iluminação, que desmascara
a ilusão e desnuda o vazio de todas as coisas. Esse tem sido o movimento do espírito
de Jodorowsky. Ele evolui de mil símbolos e mil significados para a beleza simples
do instante. Diz ele, quando pretendem apontar suas contradições:
– Não me importo. Não estou tentando provar nada. Estou tentando ter um belo
momento quando uma pessoa vem até mim. E quero que essa pessoa tenha um belo
momento. Um momento de paz. Aprender alguma coisa. Fazer alguma coisa. Mas não
estou tentando provar nenhuma espécie de doutrina. Acho que o significado de
duas pessoas estarem juntas é o significado da cerimônia do chá. Há duas pessoas,
o dono da casa e o visitante. O dono da casa oferece a casa mais bela que há,
de certa maneira. Se tem uma casa pobre, é limpa e é bonita. Ele faz o chá da
melhor maneira que puder. Mostra um quadro, o melhor que tiver. O visitante toma
o chá com grande prazer. E ama a casa. E enquanto estão juntas, as duas pessoas
esquecem o mundo. Sentem que estão vivendo na eternidade. Tomam o chá. Não são
prisioneiros de nada. Aí, então, dizem adeus. Vão para outras casas. A experiência
está terminada. Foi um belo momento e nada mais.
A arte ocidental, hoje, sofre uma nostalgia secreta, mas viva, desses belos momentos.
Artistas como Jodorowsky podem ajudar a redescobri-los.
Luis
Carlos Maciel
(Publicado originalmente em O Jornal, Rio de Janeiro, 15-16 de junho
de 1973.)
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