AVES SIN NIDO, OU A APAIXONANTE HISTÓRIA DE ANITA DE MONTEMAR E UM CINEMA SEMPRE DE COSTAS PARA A SUA REALIDADE

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Que o país entrou definitivamente em crise e os filmes juvenis podem não refletir isso? Não importa. Aqui também temos o cineasta fora de série, o diretor excepcional que nos refletirá. Misture muitos hectolitros de pintura vermelha, filosofia zen budista de bolso, buñueladas em grande escala, ao “estilo” do novo western italiano, o que foi o cinema de vanguarda há 45 anos atrás, acrescente uma mistureba de gêneros, estilos, filosofias, atuações, símbolos e idéias das mais diversas, confusas e mal assimiladas. Filme a todo vapor e se dirija a um público drogado. O que se obtém? El Moto. Perdão: El Topo. O filme que reflete, entre tantas outras coisas, a profunda crise do país onde se produz. Se redimirá El Topo de seus pecados existenciais, segundo a filosofia zen budista? O filho de El Topo, segundo a teologia católica, o assassinará, para que triunfe o hinduísmo? O masoquismo é uma perversão ou uma mostra da graça divina, segundo os jansenistas do século XVII? A gênese tem a mesma dimensão espiritual que a cópia da cópia do western clássico norte-americano, passando pela Itália e chegando ao México? A isso se poderá chamar de “chili-western”? Que problemas tão profundos trata El Topo! Todos os problemas deste mundo (e do outro). Isso sim é importante, isso sim é transcendente. Isso sim é fundamental (nunca vi “problemas fundamentais” tratados de forma tão epidérmica, nossa!, nem no Reader’s Digest). Diálogos que, em comparação, fariam parecer óbvio ao próprio oráculo de Delfos, e nas questões espirituais de uma profundidade sem limites. Sem limites como o próprio filme; e toda essa patafísica, perdão, metafísica; toda essa violência “estilizada”, “de filme” é mais importante que uma violência real que se exerce sobre uma multidão inerme massacrada em uma praça pública. É mais importante filmar um desfile interminável de monstros (do mesmo nível que os que exibem nas feiras ambulantes) que o desfile de uma multidão que exerce seu civismo na rua. Claro, mestre Jodorowsky, claro, guru, obrigado por nos iluminar, a todos nós pobres mortais mexicanos, e nos mostrar acima de tudo, acima das vãs aparências, a Verdadeira realidade.

E o país avança apesar de tudo, apesar de El Topo. O país já celebrou as olimpíadas; o país muda de sexênio, o país parecer ter superado Tlatelolco e o país, damas e cavalheiros, tão dignos e contemporâneos ou descendentes de Anita de Montemar e seu grupo, celebra o maravilhoso fato de que o cinema mexicano comemora quarenta anos de ser cinema falado (uma verdade absoluta). Quem será o estraga-prazeres, o amargo, que junto a isso se atreva a trazer alguns pequenos dados indiscretos, incômodos, do censo geral da população de 1970? Quem dirá que da população total mexicana de 50 milhões e meio de habitantes, cerca de oito milhões são analfabetos, que a população economicamente ativa é de 43 por cento e 57 por cento é inativa; que desta, 75 por cento ganha menos de 1.500 pesos mensais; que treze milhões de mexicanos não tem instrução nenhuma, que o 20 por cento da população não come carne? Bom, bom, pequenos dados sem importância, irrelevantes, nós temos que celebrar o nosso cinema, que também nos reflete, nos critica, nos assinala novos rumos; temos que celebrá-lo até porque houve uma abertura: “novos cineastas habemus”, alguns anos depois do concurso de cinema experimental floresce toda uma constelação. A que nos vão referir estes novos cineastas jovens, cultos, universitários? À revolução congelada? À crise do país? Ao 10 de junho? Aos falcões? À repressão? Vão criticar a corrupção, a falta de contra-informação oficial? Suas obras se parecem ou tem algo a ver com o que nossos companheiros cineastas latino-americanos fazem? Será cinema de libertação? Será cinema comprometido? Será La Hora de los Hornos do México? Será como o cinema cubano, com seu Lucía? Nos darão Terra em Transe?... Os diálogos de Anita de Montemar parecem como de Calderón de la Barca em comparação com os de Las Puertas del Paraíso, Tu, Yo, Nosotros, Muñeca Reina, Fin de Fiesta, Los Días del Amor, El Jardín de Tía Isabel. Aqui já não se fala, se gagueja, se esboçam algumas tentativas do que com generosidade poderia se designar como algo parecido ao signo lingüístico. Há nelas uma metalinguagem quase onomatopéica. E quanto à ação? Vem, no momento, à memória um poema do nosso admirado Xavier Villaurrutia em que nos fala do “nada em que não acontece nada”. Mas isso, o que importa? O que importa é que Rita Macedo e Julissa (desta vez de “bonecas iugoslavas” elegantemente vestidas) na melhor tradição de Anita de Montemar, e naturalmente o que importa ainda mais são os seus terríveis conflitos sentimentais: o que importa é que continue o apogeu do melodrama (e esclarecemos uma vez mais que é um gênero perfeitamente respeitável e que alcança alturas incríveis em Visconti, Bertolucci, mas que não tem nada que ver com este subgênero mexicano); que Enrique Rocha “sofra” por um amor perdido na infância, que fique “louco”, que a belíssima Helena Rojo, em um gesto audaz, perca a sua virgindade para casar com ele e sofra como Carlota, porque não pode se casar com o homem que ama. Importa algo que a realidade sócio-histórico-econômica em que se produz este cinema seja muito diversa e até contrária a ele? Claro que não! Isso é o de menos, mas para que vejam que nem tudo está perdido também temos “cinema histórico-reflexivo” em El Jardín de Tía Isabel: uns seres corruptos, degradados, imorais, em decomposição, com uma selva interior (?) governaram por direito, “direito divino”, a um povo superior, mais culto, mas submisso. Isso é o México? Sim, mas em 1500. Ah, bom! E a Revolução, esse grande tema, está aqui vivo, vigente mas (quem teria pensado?) era tão caótica, tão absurda que, na realidade, transcorria, diante da câmera, como um filme de Warhol; mas não importa, finalmente tinha um sentido, porque Carranza não é Carranza, nem Villa é Villa, nem Longino é Longino, mas todos eram amigos e conhecidos nossos (e de todos, não acreditem que somos tão ignorantes); e até o mais insignificante dos figurantes não é isso, mas uma celebridade da “cultura mexicana” e, melhor ainda, da “cultura cinematográfica mexicana”. Além do mais, a Revolução não é o importante. Não, que isso! O importante é que um sujeito “tome consciência dela”, apesar de tê-la vivido, segundo mostra o filme, tão consciente da câmera, apesar de ser tão mau ator (mas, quem sabe, em seu coraçãozinho talvez leve gravada a imagem de Godard); anyway, ele, por isso, irá mais tarde lutar em outra revolução, onde morrerá, e se isso não vemos no filme, não importa, porque tampouco vemos a outra, e ao final, tudo nos explica uma voz off screen, cujo tom e linguagem se parece, suspeitamente, ao dos exaltadores do PRI: mas, senhores, a Revolução revisitada é muito importante e por isso mesmo do cinema surge uma interrogação que inquieta o nosso coração. Eram os cristeros seres humanos? Talvez sim, mas não importa, porque ao cabo o problema essencial em Los Días del Amor vai mais além disso, fundamentalmente é: os marionetes estão tão aperfeiçoados que parecem seres humanos? Ou os seres humanos estão tão aperfeiçoados que parecem marionetes? E, senhores, não tem com o que se preocupar, alcançamos alturas espirituais incríveis. Tanto faz nascer em Combray ou em Colima e (quem diria) no cinema há o equivalente de Marcel Proust mais nas terras tropicais, em um Alberto Isaac, do que em Eric Rohmer, que afinal é francês. Bom! Mas, também, por último, podemos ser reais e modernos e críticos e até sensacionalistas. Aí está: Fin de Fiesta. A burguesia está corrupta até a medula. O chefe de uma dinastia industrial é (o saberemos no último minuto) homossexual (há 15 anos que, no cinema mundial, os filmes começam, e não acabam, com isso). Pode haver algo mais horrível do que isso?... Enquanto tudo vai se articulando, já está articulado. Estão dadas todas as condições para uma mudança fundamental no país. E o cinema oficial mexicano, diante disso, com que filmes não nos deparará? Não percam o próximo capítulo dessa apaixonante história.

David Ramón

(Publicado originalmente em Revista de la Universidad de México, nº 10, Vol XXVI, pp. 10 - 6 - 1972. Republicado em Cine al día, Caracas, nº 16, abril 1973, pp 8-9. Traduzido do espanhol por Estevão Garcia.)

 

 





Jodorowsky no papel de El Topo.