MÉXICO: A INDEPENDÊNCIA CRIADORA

“O dever de um cineasta é quebrar a cara contra o seu filme, o dever do crítico é recolher os pedaços e descobrir seu significado.”
Jorge Ayala Blanco


O nome de Archibaldo Burns, pedra fundamental do novo cinema mexicano, esteve misturado faz mais de vinte anos à indústria cinematográfica mexicana. Aquela era a época de Índio Fernández e se podia aspirar, apesar de tudo, a um cinema de qualidade. Mas, as intenções de realizar de Archibaldo Burns se viram frustradas por esse sistema castrador. Ao cabo de todos esses anos, Burns, aristocrata, lutador, anarquista, consegue a ansiada independência criadora e faz Juego de mentiras, aproveitando o Segundo Concurso de Cinema Experimental, organizado pelo STPC 1. À luz de tal antecedente, pode-se penetrar mais profundo nesta obra misteriosa, que oculta seus níveis de poesia em formas apagadas, externamente convencionais e que consagra, ao que parece, um dos personagens mais vivos e palpitantes que o cinema mexicano tenha oferecido: o de Luisa, a empregada que visita a sua ex-patroa para assassiná-la. Personagem complexo, interpretado muito apropriadamente por Irene Martínez Cadena, uma atriz não-profissional, recipiente constante de aparições diabólicas, que orquestra um apaixonante jogo de mentiras para surpreender a ex-patroa, enquanto o espectador começa a se afundar na falsidade resvaladiça de uma história que confunde tempos mentais que retrocedem e avançam, que se deleita em sua aparente opacidade, em seus diálogos semi-ingênuos, semi-maléficos, em seus cenários inanimados repentinamente vivos (a barroca casa da burguesa Martita). Uma história superficialmente simples onde Luisa cerebralmente prepara a sua volta à prisão “porque lá tem tudo” e para isso, concretiza um crime de significações sem dúvida mais complexas. Uma história que estabelece crispações interiores, que prediz um epílogo tão esperado e conseqüente que resulta provocador. Por ter assistido uma única vez a este filme “feito com tudo”, não é possível maiores elucubrações, apenas ao levar em conta o menosprezo e o esquecimento quase absoluto em Viña a esse arrevesado fantástico, macabro, hitchcockiano, que passou sem que se fizesse justiça. Se é que houve injustiças no festival chileno, sem dúvida, Juego de mentiras colheu a pior. E dói. A importância de Burns no cinema mexicano moderno foi assinalada em seu momento pela melhor crítica desse país.

Ao lado de algo tão estimável, México enviou Fando y Lis, que também merece certa atenção, ainda que por razões muito diferentes. Essa espécie de ensaio surrealista, armado por Alejandro Jodorowski sobre Arrabal, que em sua estréia no festival de Acapulco, faz algum tempo atrás, causou uma tremenda agitação por seus deboches dilacerantes, diretamente freudianos, à mãe, personagem intocável, absolutamente venerada por mais de cinqüenta anos de cinema mexicano. Tal escândalo trouxe conseqüências graves para sua exibição comercial, que parece ter sido muito reduzida. Muito além disso, Fando y Lis é justamente o cinema “europeizante” e intelectualóide que a América Latina deve postergar, ainda mais quando a imaginação pigméia de um diretor como Jodorowski se sente coibida e esmagada por esse tipo de modas teatrais, causadas por um complexo de inferioridade delator da possibilidade futura de cometer atrocidades ainda maiores.

Completou o conjunto mexicano um curta de dois minutos de Burns, que resultou demasiadamente abstrato para o gosto do Festival. À luz do que foi visto, pode-se vaticinar próximos maiores sucessos dessa cinematografia, caso continue pelo caminho da produção independente, apesar das limitações que esta possa conter. Tal parece o único caminho.


Francisco J. Lombardi

(publicado originalmente em Hablemos de cine, Lima, nº 50-51, novembro-dezembro 1969 / Janeiro - Fevereiro 1970, p.33. Traduzido do espanhol por Fabián Núñez.)

1. Sindicato dos Trabalhadores da Produção Cinematográfica, criado em 1945, após o rompimento dos “criadores” (atores, diretores, fotógrafos, roteiristas, músicos, etc) ao STIC (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica). No ano de sua criação, após a arbitragem da Presidência da República, delimitou-se às competências: a distribuição, exibição e os cine-jornais eram incumbência do STIC; a produção de longa-metragens era responsabilidade do STPC (N.T.).


 







Fando e Lis (México, 1967)