ENTREVISTA COM ALEJANDRO JODOROWSKY

"Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o universo astronômico, são, em aparência, temas de desespero e, em segredo, de consolações.”
Jorge Luis Borges



A CORRIDA DO OURO

Meu avô, que era judeu russo, abandonou seu país, a Ucrânia, para fugir dos pogroms. Por acaso, em lugar de se dirigir, como muitos de seus companheiros de infortúnio, em direção aos Estados Unidos, ele se encaminhou para o Chile, o país o mais longe da América do Sul. Ao chegar, fundou uma pequena fábrica de calçados e mandou trazer a sua família. Meu pai chegou lá com a idade de cinco anos. No momento da grande corrida do ouro, que fazia do norte do Chile uma espécie de nova Califórnia, quando todos os judeus se precipitaram em busca da fortuna, meu pai seguiu o movimento e se instalou num pequeno vilarejo do norte do país, onde conheceu uma jovem cantora de ópera, filha de um dançarino de balés russos. Ele a desposou e, seguindo o processo habitual, eu nasci. Eis, em algumas palavras, a história de minha família...

UM ESTRANHO DESTINO

Eu atravesso, atualmente, um período de minha vida no qual sinto que é possível morrer e renascer várias vezes. Eu morri após um número determinado de experiências e não posso mais me identificar com minha vida passada, embora eu guarde o privilégio de contemplá-la de longe. Eu creio ter sido desde sempre consagrado a um estranho destino. Meus pais eram preocupados unicamente com sua profissão. Eles brigavam o tempo todo. Sua vida era um verdadeiro inferno. Sozinho, sem amigos, eu aprendi a ler com a idade de quatro anos. O primeiro livro que li foi O Corcunda, de Paul Féval. Aos cinco anos, eu já tinha devorado todos os romances de Alexandre Dumas e de Paul Féval. Por acaso, eu li em seguida Gaspard da Noite, de Alyosius Bertrand, livros de Marcel Schwob, Rosny Ainé, etc... grandes escritores franceses ainda hoje praticamente desconhecidos. Ainda criança, eu mesmo estudei Fulcanelli, um alquimista. Mais tarde, soube que Marcel Schwob tinha contato com a “Golden Dawn”, uma sociedade secreta que estudava a alquimia e a cabala. E, de repente, percebi que todos os escritores que tinham feito as alegrias de minha infância pertenciam a uma mesma linha, aquela do esoterismo, do simbolismo, da cabalística.

UMA ESTRELA NASCEU

Sim, isso não é inteiramente falso... Ao te contar tudo isso, eu estou contando A Montanha Sagrada. Aliás, é pelo fato de eu me contar enormemente através de meus filmes que eu me sinto incapaz de julgá-los. A primeira vez que mostrei El Topo à minha mulher, enfim, a uma de minhas ex-mulheres, ela ficou com raiva de mim; “Mas, esse filme é uma merda!” E, diante do meu espanto, ela acrescentou: “Você desvela aí toda a sua vida! Todo mundo vai conhecer a nossa vida privada!” Quando me disseram que eu toco em certos arquétipos, é preciso constatar que há diferentes níveis no universo... Tudo isso pode parecer um pouco louco, mas eu vou tentar te explicar o meu pensamento... Outro dia, eu me pus a refletir sobre a estrela que apareceu no céu de Jerusalém para anunciar o nascimento de Jesus. Eu creio ter encontrado a explicação da estrela. No universo, há o nível dos micróbios, o nível da humanidade, o nível dos planetas, o nível das galáxias, aquele do universo, etc. Quando o Cristo apareceu sobre a terra, uma estrela nasceu no nível dos astros. Nesse mesmo momento, nasceu um micróbio Cristo, um planeta Cristo, uma galáxia Cristo, etc... Em todos os níveis, um Cristo nasceu. Eu vejo a vida como uma espiral do qual somos o fim. No momento em que se nasce, essa espiral teve uma galáxia em alguma parte do universo... Você se chama Nogueira, certo? Pois bem, quando Nogueira nasceu, um micróbio Nogueira nasceu... Se fez uma escala em todos os graus.

Se El Topo é a minha vida pessoal, ele conta, ao mesmo tempo, uma aventura da raça humana e uma aventura galáctica. O mesmo vale para A Montanha Sagrada, que pôs em cena a presença do sistema solar e dos outros planetas no ser humano.

UM NACIONALISTA ENVERGONHADO

Embora eu não me vincule a nenhum país, eu sou um nacionalista convicto: eu amo enormemente um planeta chamado Terra. Eu devo te confessar que, às vezes, eu me sinto muito envergonhado de tanto amá-lo.

Eu não sei, como você diz, se eu estou para o cinema como Asturias está para a literatura. Pode muito bem ser que o meu filme seja profundamente sul-americano, ou melhor, hispano-americano. Na língua, há uma visão da realidade.

Quando você aprende o espanhol, você aprende, apesar de você, a Espanha. E se torna católico, apesar de você. Mesmo se você é um judeu, árabe, budista ou protestante. O espanhol, sendo uma língua católica, à medida que se o pratica, se assimila toda a sua cultura lingüística. Alfred Korzybski, o criador da semântica não-aristotélica, através de quem eu descobri a ficção científica, disse: “O idioma é um mapa geográfico”. Nós vivemos em um mundo onde tudo está mudando e nós continuamos a utilizar um mapa geográfico ultrapassado, velho de vários séculos: nosso idioma (francês, inglês, espanhol, etc...). Tomemos um exemplo: quando se endereça a uma mulher, se diz “señorita” ou “señora”, “mademoiselle” ou “madame”, and so on. Através dessa distinção, se indica se a mulher em questão fez amor ou não! Não lhe pergunta se ela é casta ou não, mas tudo muda a partir do momento em que ela fez amor ou não. A língua já impõe uma educação sexual.

MARCEAU, O GÊNIO DA INTUIÇÃO

Eu estudei mímica com Étienne Ducroux, que foi o professor de Marcel Marceau. Ducroux, um grande homem de teatro, praticava um método que ele considerava, erroneamente, como cartesiano, porque se baseava em uma filosofia da realidade. Ele dava espetáculos que ninguém gostava, que ninguém podia gostar, mas que eu sempre considerei geniais. Eu trabalhei com Marcel Marceau durante seis anos e eu mesmo escrevi para ele O Fabricante de Máscaras. Marceau é o gênio da intuição. O mistério da sua arte é indefinível. Ele mesmo é incapaz de explicá-lo. Para um mímico, por exemplo, é necessário saber dobrar ao máximo o polegar para trás. Eu tentei chegar a isso. Marceau chegava a pôr em um ângulo reto sem dificuldade. Quando eu lhe perguntei para saber como ele fazia para obter tal resultado, ele me respondeu naturalmente: “eu nasci assim”. Não se pode ser melhor mímico que Marceau, porque ele nasceu assim. Eu nunca vi Marceau se aquecer antes do espetáculo... Ele simplesmente chegava no palco, fazia o que tinha que fazer e ia embora. A filosofia de Marceau é a filosofia de Chaplin. Se você quer chegar às fontes, então você deve me perguntar se Carlitos teve uma influência em mim. Ao qual responderia que Carlitos influenciou todo mundo. Como o surrealismo. Não se pode escapar de Chaplin, como não se pode escapar do surrealismo. Tudo o que se pode fazer é lutar contra Chaplin: contra o seu romantismo, seu individualismo... e preferir os Irmãos Marx ou Buster Keaton. De fato, faz trinta anos que eu afirmo que prefiro os Irmãos Marx e Buster Keaton. Antes, eu sempre insultava Chaplin, mas era por ciúme. Eu não podia aceitar que ele tenha sido um dos maiores mímicos da História e eu liberava os meus instintos atacando o seu ponto fraco: sua filosofia, com a qual eu nunca estive de acordo.

A MONTANHA SAGRADA

Há um escritor francês que admiro enormemente, René Daumal, que participou do movimento “O Grande Jogo”, movimento que, para mim, é tão profundo e importante quanto o surrealismo. Discípulo de Gurdjieff, Daumal, que conhecia e falava perfeitamente o sânscrito, se interessava bastante pelas coisas místicas e, com outros membros de “O Grande Jogo”, realizou muitas experiências perigosíssimas, por serem muito fortes. Aliás, ele sucumbiu por uma morte atroz, justamente por causa dessas experiências. Daumal escreveu um pequeno livro, intitulado O Monte Análogo – que eu considero como um dos maiores romances da literatura francesa – que, atualmente, está tendo um grande sucesso nos Estados Unidos. Eu sonhava desde há muito tempo em transpor esse livro para o cinema, mas quando eu comecei os procedimentos necessários para fazê-lo, eu me deparei com um número incalculável de problemas e ninguém esteve em condições de me dizer a quem pertencem os direitos. Em desespero de causa, eu tive que filmar alguma coisa de similar. A história de O Monte Análogo é uma história que existe em toda a tradição mitológica: nas montanhas moram os deuses ou os imortais. Os homens partem em sua busca, para se apoderarem do segredo da eternidade. Eu intitulei o meu filme de A Montanha Sagrada.

UMA SOLUÇÃO: ESCAPAR

Eu acredito que o mundo no qual vivemos se tornou uma prisão. Para o homem, a única solução de escapar dessa prisão é buscar outras possibilidades de vida. A ficção científica nos oferece essas possibilidades. É a literatura mais livre que existe. E é a razão pela qual ela me apaixona. Construindo o meu filme em vários níveis, eu gozo desta liberdade. A Montanha Sagrada é uma história para crianças, uma história artística cheia de cores e de aventuras, um dicionário de simbologia, de magia, de esoterismo... Os planetas desempenham um papel muito importante na vida humana. O sistema solar tem uma significação. Cada planeta tem uma influência diferente sobre os seres humanos. O homem é uma repetição do universo. Em cada um de nós, existe um lado Marte, um lado Vênus, um lado Saturno, um lado Júpiter, etc. Cada planeta tem uma característica psicológica. O homem, ele próprio, possui todas as características psicológicas de todos os planetas. Eu acredito sinceramente que não se é Aquário, Libra, Sagitário ou não importa qual outro signo do zodíaco, mas se é O zodíaco. Você sabe, o homem tem todas as doenças mentais em uma quantidade equilibrada. Nós todos somos paranóicos, esquizofrênicos, sado-masoquistas, etc. Quando uma doença mental se desenvolve em detrimento das outras, se produz um desequilíbrio no cérebro. Esse desequilíbrio torna o homem louco. Possuindo todas as características do zodíaco, o homem se torna um universo completo. Seu signo predominante corresponde à sua doença mental mais desenvolvida.

O PAPEL DO SANGUE

Em meus filmes, o sangue desempenha um papel idêntico ao que desempenha em meu corpo. Meu corpo é cheio de sangue. Se eu perco sangue, eu perco minha vida. Para El Topo, fiz correr muita hemoglobina. Isso chocou muita gente. Eu refleti muito sobre uma resposta que Godard deu a um jornalista, que lhe reprovava o sangue que ele vertia na tela: “Eu não coloco sangue, eu coloco vermelho”. O que perturba as pessoas é a cor vermelha. É um preconceito que decorre de mapas geográficos ultrapassados, dos quais eu já falei. O vermelho é uma cor política, a cor da menstruação, do ferro de marcar os animais... Quando eu filmei A Montanha Sagrada, decidi mudar de nuance esse líquido vital. Azul, verde, amarelo, o sangue colore um quadro. Transpor a realidade para o cinema é enganar a si mesmo: o cinema realista não existe; um filme é apenas imagens projetadas. Tudo o que pode ser lido na tela é falso, artificial. Se quiser tocar a realidade com um filme, é preciso ser artificial.

OS ANIMAIS DOMÉSTICOS: UMA ABERRAÇÃO

Eu matei animais em meus happenings, mas sempre animais comestíveis: galinhas, coelhos, etc. Em El Topo, matei trezentos coelhos. Após tê-los “filmado”, eu os fiz cozinhar e em seguida, foi realizado um grande banquete.

Se pensar no número de animais que são mortos por dia no mundo, para alimentar a raça humana, não se pode ter sentimentalismo com o que foi dito acima. Tanto nos Estados Unidos quanto na França, as pessoas se reproduzem cada vez menos e as mulheres, para preencherem seu instinto maternal, compram cães, gatos ou papagaios. Um cão come como uma criança. Na cidade de Nova Iorque, existem mais de um milhão de cães. Isso quer dizer que para alimentar esses cães, deixam com fome um milhão de crianças nos países pobres. Como não se pode proibir os cães e os gatos, porque existe toda uma indústria de ração para esses animais, eu tenho uma outra proposição a fazer: matar todos os cães, todos os gatos, todos os papagaios, cortá-los em pedaços e fazer conservas. É possível mesmo tornar essa comida agradável: criando pratos cozidos. O “cão Strogonoff”, o “filé de gato na pimenta”, o “papagaio cozido” serão outros tantos presentes – ou uma alimentação de baixo preço – para as crianças pobres de todos os países do mundo. Agindo dessa forma, seria muito mais positivo. Não é necessário ser sentimental em relação aos animais. O vínculo do homem com os animais domésticos denota duas frustrações essenciais: o instinto materno e o contato direto com a natureza. Se der a cada mulher, um, dois ou três filhos, a arquitetura de nossa sociedade mudará. E um contato direto com a natureza eliminará a necessidade de mimar os animais domésticos. Devemos ser lúcidos: um animal doméstico é uma aberração. Um homem doméstico também é uma aberração. Mas nós vivemos numa época onde todos nós somos animais domésticos. A liberdade deveria ser a qualidade primordial de cada ser humano 1.

Entrevista por Nicoletta Zalaffi e Rui Nogueira

(Publicado originalmente em La Revue du Cinéma – Image et Son, nº 282, Março 1974, pp. 78-86. Traduzido do francês por Fabián Núñez.)

1. Supomos que, atualmente, Jodorowsky não teria a mesma opinião em relação aos animais domésticos, uma vez que o seu apartamento, em Paris, é cheio de gatos (talvez, por ser o menos doméstico dos animais domésticos?). Nos “extras” do DVD norte-americano de El Topo, Jodorowsky menciona a sua relação com os animais. Afirma que na época, afinado às teorias do Teatro da Crueldade de Artaud, via o cinema como uma expressão essencialmente sagrada e ritualística, o que, portanto, exigia a realização de sacrifícios. (N.O.)

 





Jodorowsky no set de A Montanha Sagrada.