Eu sempre quis fazer cinema.
Na ocasião de minha partida do Chile, eu fiz um plano
de 5 anos. Eu disse: 1º ano: eu chego na França e sou
o primeiro ator de Marcel Marceau. 2º ano: eu tenho
a minha própria companhia de mímica, faço uma turnê mundial.
3º ano: eu me torno diretor de teatro e faço uma turnê mundial.
4º ano: eu começo a fazer filmes – 5º ano: meus filmes
são exibidos no mundo inteiro. Eu levei 20 anos
para realizar esse plano de 5 anos... 20 anos. Foi
mais difícil que pensava quando era adolescente. O
cinema é para mim como a poesia: é preciso verdadeiramente
ter um universo seu. Foram necessários 20 anos para
me formar. Eu esperei. Precisava aprender a história
da pintura, a mímica, a filosofia, precisava conhecer
o mundo, precisava me preparar em todos os domínios,
porque o cinema é a arte a mais completa de nossa época.
Em meus filmes, eu crio os cenários, a música, os objetos,
eu conduzo a orquestra, eu escrevo, eu atuo, eu pinto...
INFLUÊNCIAS
Você sabe: as influências fazem parte de nós. Quando se come um filé de vaca,
se é um pouco vaca. Quando se come um filé de porco, torna-se um pouco porco.
Eu não falo da cópia – não – copiar é horrível. Em espanhol, se diz: aquele que
não é filho de alguém, é um filho de prostituta... o pior insulto na Espanha.
Deve-se ser filho de alguém sendo inteiramente a si mesmo. Todos os meus filmes
são uma parte de mim mesmo, é por isso que não posso julgá-los. Seria como falar
bem ou mal da minha mão ou do meu fígado. É uma maldição, eu sei: eles cresceram
na minha vida, verdadeiramente eles cresceram, mudaram a minha vida. É como um
temor.
PRODUÇÃO
Não se esqueça que eu venho da América do Sul. A América do Sul é um pouco selvagem, é um
pouco fora da lei. Para o meu primeiro filme, Fando e Lis, eu filmei durante
um ano, todos os sábados e domingos. Os outros dias da semana, eu buscava dinheiro.
Eu vendia tudo: meus livros, tudo o que eu podia vender. O filme custou 30.000
dólares. El Topo custou 400.000 dólares. Eu encontrei um sócio que era
um verdadeiro ladrão, mas um de verdade. Fizemos todo o filme a crédito e correu-se
o risco de ir para a prisão. Depois, eu vendi o filme nos Estados Unidos por
400.000 dólares, e meu sócio pôs todo o dinheiro em seu bolso e partiu para Israel
comprar um hotel. Eu caí na miséria. Eu não tinha o que comer, o que dar de comer
aos meus filhos. Com El Topo, até agora, eu nunca ganhei um centavo, nunca.
E para poder sobreviver, eu tive que fazer uma adaptação de Assim Falava
Zarathustra,
de Nietzsche. Eu pude sobreviver fazendo teatro. Para A Montanha Sagrada,
com o dinheiro que eu ganhei no teatro, escrevi um roteiro e parti para Hollywood,
porque El Topo começava a circular pelos Estados Unidos. Me ofereceram
meio milhão de dólares. Para mim, americano subdesenvolvido, era algo incrível.
O prédio da Universal era todo preto e quadrado... eu me lembrei que em Meca
há uma pedra preta e quadrada, que se diz que era branca, mas absorveu
todos os pecados do mundo. Na minha chegada, então, me disseram que me dariam
500.000 dólares se eu mudasse o roteiro, se eu retirasse toda a parte filosófica,
se eu fizesse um filme de aventura. Eu parti e deixei na mesa o meio milhão de
dólares. Eu esperei um ano fazendo peças de teatro: dessa vez, era um music-hall de
terror, no México. E, depois, o milagre se fez: um admirador milionário me
deu o milhão de dólares que me permitiu filmar A Montanha Sagrada.
Meus três filmes foram feitos em total liberdade. Eu sou culpado. Completamente
culpado de cada pedaço do filme, de cada segundo. Eu sou culpado...
Se você vive num vilarejo e todo o vilarejo fala somente mal de você, você é um
criminoso. Se todo o vilarejo fala bem de você, você é um morto. Se as opiniões
são divididas, você é um vivo. Eu ficaria muito horrorizado se os meus filmes
não fossem atacados.
Entretanto, como todo ser humano, eu prefiro a admiração. Eu sofro muito com
más críticas.
ATORES
É um filme absolutamente anormal. Inicialmente, eu não utilizei nenhum ator.
Eram personagens que eram exatamente os personagens. Se alguém representa um
homossexual, é um homossexual. Se alguém representa uma lésbica, é uma lésbica.
Se alguém representa um milionário, é um milionário: aquele que representa o
homem rico no filme perdeu num único dia 30 milhões de dólares na bolsa.
Em um filme, quando se coloca, por exemplo, uma árvore de papelão ou um cenário,
isso que se vê é um cenário. Quando se coloca um ator, isso que se vê é um
ator. Se se coloca uma árvore real, ela se torna arte. Se se coloca um homem
real, ele se torna também arte. Eu não quero me exprimir com atores, eu quero
me exprimir com seres humanos. Como se tratava de representar um grupo que busca
a iluminação, eu decidi encontrar verdadeiramente a iluminação, por todos os
meios. Eu reuni o grupo e vivemos juntos, dormindo 3, 4 horas por dia, todos
juntos, não bebendo álcool, não fumando, não tomando drogas (coisa muito difícil
para os americanos, que são empanturrados de droga, sobretudo os ricos), não
fazendo amor. Vivemos assim como monges, durante 6 meses, fazendo o filme. Ao
cabo de 6 meses, todo mundo queria me matar. Isso foi muito difícil.
Os mestres indígenas que se vê, são verdadeiramente mestres indígenas. O mestre
que vende os cogumelos é verdadeiramente o mestre dos cogumelos. Tudo é verdadeiro.
UNDERGROUND
O underground é como as touradas. Você pode ir a elas durante um mês,
dois meses, e as touradas serem horríveis... Mas, se você insiste, pode ser que
no terceiro mês, você assista a uma tourada genial, que paga todas as ruins.
O underground é isso. Eu não tive sorte: durante anos, eu vi apenas touradas
ruins. Não, os filmes que admiro são filmes clássicos: o primeiro que me marcou,
foi O Boulevard do Crime. Não por causa do Carné, nem por causa do Prévert,
mas pelo personagem de Barrault. Esse filme mudou minha vida e eu decidi ser
mímico. Depois, houve Freaks, Marcha Nupcial, Ouro e Maldição, A
Estrada, Viridiana, O Sétimo Selo... Eu gosto somente
dos filmes
clássicos.
CRISTO
Eu acredito que o cristo foi um Deus. Não um personagem como Buda, mas um Deus.
Eu também acredito que esse Cristo, do qual fizeram uma estátua, não está mais
aqui.
Para ser um verdadeiro Cristão, é preciso viver o Cristo, comê-lo, incorporá-lo,
imitá-lo. Eu não estou zombando. Isso que eu como é a velha imagem do Cristo,
mas ao mesmo tempo eu mostro a nova imagem, aquela do homem que se aproxima do
Cristo por imitação. Eu sou crente de um modo muito mais próximo da ficção científica.
Panteísta e monoteísta ao mesmo tempo. Você sabe, o Pânico vê tudo. Eu creio
em tudo. Tudo o que me dizem, eu creio. Tudo é possível. Por exemplo, eu quero
te dizer – e depois, você pode cortar isso se quiser – eu quero te dizer com
muito respeito: para mim, o mistério da concepção da virgem é um mistério apaixonante
e eu queria fazer um filme sobre esse tema. O Cristo foi procriado pela força
universal: o que deflorou a Virgem foi o Cristo quando nasceu... Ela teve que
se abrir como uma flor cheia de amor... não pode haver violência no nascimento
de um Deus. Ele não nasceu coberto de sangue, mas coberto de água, de óleo e
de perfume. É o símbolo dos 3 reis que vieram vê-lo. Ok? Vamos, falemos de cinema,
se você quiser.
PÚBLICO
Meu filme começa por um plano pré-histórico, depois chega ao mais alto grau de
civilização, para retornar ao passado. Ao passado erudito: não ao passado selvagem...
um dia descobrirão que o homem não é somente um inconsciente individual, mas
também um inconsciente coletivo. Em seus momentos de loucura, o homem toca seu
inconsciente coletivo, e sem ter nenhuma cultura, ele dá, por seus desenhos,
uma concepção do mundo. Tudo o que os primitivos fizeram, nós temos, geneticamente,
em nossas células. Os símbolos que eu utilizo não são símbolos pessoais, são
arquétipos... eu irei tocar o público mesmo que ele não compreenda.
Isso ocorreu na Itália, na Sicília. Havia 4.000 italianos. Exibiram filmes: inicialmente,
um filme francês de vanguarda. Eles não compreenderam nada. Eles comiam salame,
cantavam, gracejavam. Eu estava muito assustado em mostrar A Montanha Sagrada.
Foram 6.000, porque disseram que era um filme pornográfico. Todos foram, as avós,
os avôs, ver o escândalo. Eles gracejavam, quando o filme começou. Eu escutava...
Ah! Um riso. Silêncio. Um outro riso. Um outro riso. Silêncio. Um silêncio total.
Eles viram o filme em um silêncio respeitoso. Esse filme pode ser visto por um
público muito popular. É um filme muito simples, eu posso contá-lo em dois minutos: “É um
sábio que toma os homens os mais poderosos do planeta, que lhes diz que numa
montanha há alguns imortais; que é preciso roubar o segredo. Para roubar o segredo, é necessário
se tornar tão sábio quanto os imortais. Começam a aprender todos os tipos de
técnicas e chega-se à montanha para roubar o segredo da imortalidade.” É um conto,
o mais simples que seja e todo mundo pode compreendê-lo, mesmo que as pessoas
não conheçam os símbolos, serão tocadas, como quando se tem um sonho e se diz: “eu
não sei... eu tive um sonho curioso. Eu fui afetado e não sei porquê. O que isso
significa?” Se é afetado, sem saber o que isso significa: um homem de Los Angeles
viu El Topo 17 vezes, porque ele o detesta. Ele vai cada vez para tentar
saber porque ele o detesta, é uma obsessão para ele. Conscientemente, ele o detesta,
inconscientemente isso o toca.
UMA NOVA RAÇA DE PÁSSAROS
No final normal do filme, todo mundo se tornaria imortal, e todo mundo voaria
pelo espaço. Esse era o final. Quando escalei a montanha, a tempestade se levantou,
começaram a correr, eu caí, eu te juro por minha vida que é verdade: eu nunca
minto. Eu comecei a cair. Eu não queria morrer, eu tinha vontade de terminar
esse filme. Eu tomei um machado e detive a minha queda, mas somente por um esforço
de vontade incrível. A primeira coisa que queria era terminar o filme que tinha
me custado 6 meses. Eu salvei a minha vida, comecei a andar e me dei conta que
eu era completamente mortal. O filme tinha sido uma experiência verdadeira. Eu
não podia terminar com uma mentira, precisava retornar à realidade. Mas, o que é a
realidade?
A grande notícia que encontrei no jornal de ontem é que uma nova raça de pássaros
nasceu no Havaí... inteiramente nova. É um pássaro muito bonito, com desenhos
negros, que vai durar algumas centenas de anos, de séculos. Nós assistimos à criação
de um novo animal. O que isso quer dizer? Que a natureza é muito otimista: se
ela cria um novo pássaro é que ela pensa em continuar. O universo é fantástico,
a realidade não é o que se diz: uma nova raça de homens pode nascer. No centro
do inverno, há o verão; no centro do suicídio coletivo, o novo homem pode chegar.
Cada um de nós é um Cristo e um Buda, mas não se sabe. O Budista diz: “o céu,
acima das nuvens, está sempre iluminado”.
Eu creio que a arte é uma via de perfeição como a cerimônia do chá japonês. Como
a missa. Não se vai à missa porque é perfeito: se vai para se aperfeiçoar. Não
se vai ao cinema porque é perfeito, se vai para buscar a perfeição. Eu me sinto
absolutamente imperfeito; é por isso que faço cinema. Se eu fosse perfeito eu
não faria nada. Eu me sentaria meditando... ou tendo prazer.
Coletado por Jacques Zimmer
(Publicado originalmente em La Revue du Cinéma – Image
et Son, nº 282, Março 1974, pp. 78-86. Traduzido
do francês por Fabián Núñez.)
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