MELODRAMA SACRAMENTAL

Uma efeméride de pânico apresentada em 24 de Maio de 1965, no Segundo Festival da Livre Expressão de Paris.

(Nota: essa versão resume a peça do ponto de vista pessoal do autor; cada uma das trinta pessoas envolvidas teria uma versão diferente.)



O espaço de um palco do qual foram arrancadas todas as cortinas, cenários, cordas, etc. Quer dizer, um palco que foi deixado sem nenhum lixo; paredes nuas.

TUDO PINTADO DE BRANCO. O CHÃO TAMBÉM.

Um automóvel preto (em boas condições); as janelas quebradas, para poderem ser usadas como receptáculos para objetos, um camarim, um lugar pra descansar, etc.

Uma tábua de açougueiro, um machadinho.

Uma caçarola de óleo fervente numa chapa quente.

Antes que a cortina levante, grandes quantidade de incenso são queimadas. Todas as mulheres estão de peitos de fora.

Duas delas, deitadas no chão, estão inteiramente pintadas de branco.

Outra mulher, pintada de preto, no teto do carro preto.

Perto dela, outra, pintada de rosa. Estas duas têm seus pés em bacias de prata.

Uma mulher numa longa toga prateada, seu cabelo arrumado como uma lua em foice, repousa em duas muletas. Seu rosto todo está coberto, nariz e boca também. Dois buracos em sua beca revelam seus mamilos, outro mostra seus pêlos púbicos. Ela carrega uma enorme tesoura prateada.

Ainda mais uma mulher, portando um capuz de executor, altas botas de couro, um cinto grosso. Ela carrega um chicote. Seus seios estão cobertos por um xale preto.

Banda de rock’n’roll: seis garotos com o cabelo nos ombros.

Ninguém deve estar drogado, exceto os músicos.

Uma rampa conecta o palco com o público. Objetos e figurinos que tiverem sido usados serão jogados para o público.

SONORA E SÚBITA ABERTURA NA CORTINA. A CALMA ANTES DE UMA TEMPESTADE.

Eu apareço, vestido com uma roupa preta de plástico brilhante: calça e parte de cima como as de um limpador de esgotos, botas de borracha, luvas de couro, óculos protetores de plástico. Na minha cabeça, um capacete branco de motocicleta, como um grande ovo.

Dois gansos brancos. Eu corto suas gargantas. A música corre solta – uma avalanche de guitarras elétricas.

Os pássaros se contorcem em agonia. Penas voam. Sangue derrama nas duas mulheres brancas.

Transe. Eu danço com elas. Eu bato nelas com os corpos. O som deles morrendo. Sangue.

(No planejamento da peça, eu achei que fosse cortar as gargantas dos pássaros na tábua. Mas no meu estado de transe, e levado por uma estranha força, eu torci suas cabeças apenas com as mãos, da forma como abriria uma garrafa.)

A mulher em rosa, com os pés ainda na bacia, agita seus quadris, enquanto a preta, como uma escrava, começa a cobrir o corpo dela de mel.

Eu destruo os gansos na tábua.

A mulher prateada abre e fecha sua tesoura violentamente. Aquele barulho metálico!

Ela dá a tesoura às duas mulheres brancas que começam a cortar o plástico preto.

Elas destroem meu figurino. Eu perco minhas botas e luvas. Também estranhamente possuídas, as mulheres terminam de rasgar meu figurino com suas próprias mãos!

Meu corpo é então visto vestindo 10 quilos de bifes costurados formando uma camisa.

As mulheres, gritando, se atiram na carne vermelha e a arrancam de mim, pedaço por pedaço. Elas dão os pedaços para a mulher prateada.

Com uma enorme colher prateada, ela calmamente joga os bifes no óleo fervente.

(A proximidade da chapa quente e dos corpos suados das mulheres produziu choques elétricos.)

Cada pedaço de carne é colocado num prato branco; as duas mulheres colocam os pratos ao alcance de vista do público.

Eu fico vestido com uma pequena culhoneira de couro preto. Um falo do mesmo material pende perpendicularmente ao chão. Braceletes de couro nos meus pulsos e tornozelos: homenagem a Maciste. Concentração. Karate – Kata.

Eu pego o machadinho e corto fora meu falo de couro na tábua.

A mulher negra, consciente de seu esqueleto, dança, movendo seus ossos como uma marionete, enquanto eu quebro os pratos brancos com um martelo.

A mulher branca dança sem parar. Quando elas se sentem cansadas, elas assumem a posição Zazen.

Eu trago uma moldura de ferro. Devagar, eu levanto o xale preto que cobre os seios da executora. Sua pele não está pintada. Peito forte e sadio. Corpo poderoso.

Eu entro na moldura de costas viradas para o público.

A mulher me bate com seu chicote.

Eu desenho uma linha vermelha no seu seio direito com um batom.

Um segundo golpe do chicote. Eu desenho uma linha em seu seio esquerdo.

Um último golpe do chicote. A linha começa em seu plexo solar e vai até sua vagina.

(O primeiro golpe foi forte, mas não forte o suficiente: eu preciso de mais. Eu estava procurando um estado psicológico ainda desconhecido para mim. Eu precisava sangrar para me transcender, para romper com a minha imagem de mim. O segundo golpe me marcou instantaneamente. Então a executora perdeu o controle, pois chicotear um homem era um desejo que freqüentemente despontava em seus sonhos. A terceira vez, excitada, ela chicoteou minhas costas ensangüentadas com toda sua força. A ferida levou duas semanas para curar.)

A mulher quer continuar me batendo; ela me empurra com toda sua força. Com o aparato em torno do meu pescoço, eu giro e caio no chão. (Eu poderia ter quebrado minha vértebra cervical, mas no meu estranho estado emocional, o tempo ficou lento e, como se estivesse num filme em câmera lenta, eu fui capaz de cair e ajeitar meus ossos de uma tal forma que me levantei completamente ileso.) Eu belisco seu seio para derrubá-la. Calma.

A mulher preta me traz limões. O amarelo!

Eu os arrumo no chão em um círculo. Ajoelho no centro. Posição Swuari.

Um cabeleireiro profissional, quase paralisado de susto, se aproxima para cortar meu cabelo.

A mulher coberta com mel desce do teto do automóvel. Eu danço com ela.

Desejo sexual com força onírica. A calcinha dela parecia condensar toda a hipocrisia social. Eu a tiro sem nenhum aviso. O tecido escorrega por suas coxas cobertas de mel.
Abelhas. O impacto de sua púbis preta. A submissão da mulher. Seus olhos semifechados. Sua aceitação natural da nudez. Liberdade. Pureza. Ela se ajoelha ao meu lado.

Em seu corpo, saindo de sua barriga, eu grudo o cabelo que está sendo cortado de mim.

Eu quero criar a impressão de que seu pêlo pubiano está crescendo como uma floresta e invadindo seu corpo inteiro. As mãos do cabeleireiro estão paralisadas de nervosismo. A executora tem que terminar de raspar minha cabeça.

Duas modelos da Catherine Hartley, estranhas a tudo e mortas de medo de manchar seus vestidos de seda “muito caros” (alugados para a ocasião), vêm e vão, trazendo 250 pães para o palco.

Agora meu cérebro está pegando fogo. Eu puxo quatro cobras pretas de um pote prateado. De início eu tento fazer delas um cabelo com fita adesiva, mas eu então as colo ao meu peito como duas cruzes vivas. Minha transpiração me obstrui.

As cobras giram em torno das minhas mãos como água viva. Casamento.

Eu caço a mulher rosa com as cobras. Ela se esconde no carro, como uma tartaruga em seu casco. Ela dança lá dentro. Me lembra um peixe no aquário.

Eu assusto uma das modelos de verde. Ela deixa cair seu pão e dá um salto pra trás.

Um espectador ri. Eu jogo o pão na cara dela. (Numa festa, vários dias depois, ela vem até mim e me diz que o pão que eu joguei nela lhe deu um sentimento de comunhão. Como se eu lhe tivesse administrado uma hóstia gigante no seu crânio.)

De repente, a lucidez: ver o público sentado lá em suas poltronas, paralisados, histéricos, excitados – mas imóveis, sem participação corporal, terrorizados pelo caos que está prestes a engolfá-los; eu quero jogar as cobras neles, ou explodi-los.

Eu me refreio. Recuso o escândalo fácil do pânico coletivo.
Calma. Violência da música. Amplificadores na potência total.

Eu visto calças, camisas e sapatos laranjas. A cor de um budista queimado vivo.

Eu saio e retorno com uma cruz pesada, feita de duas vigas de madeira. Nela, uma galinha crucificada de cabeça pra baixo, bunda no ar, com dois pregos em suas garras, como um cristo com a cabeça cortada fora. Eu tinha deixado ela apodrecer por uma semana. Na cruz, dois sinais para orientar o tráfego: embaixo, um sinal com uma seta que diz: “Saída acima”; por cima da galinha, um sinal que diz: “Sem saída”. Eu dou a cruz para a mulher prateada. Eu trago uma outra. Dois sinais direcionais: sempre um sinal embaixo que conduz para cima; sempre um sinal acima que impede de escapar.

Eu dou a cruz a uma das mulheres brancas. Eu trago uma terceira cruz. Eu a dou para a outra mulher branca.
As duas mulheres montam nas cruzes, transformando-as em falos gigantes; elas lutam; uma delas empurra a ponta da madeira na janela do automóvel e faz movimentos de ato sexual com o veiculo.

Eu movo a bacia da frente para a traseira da cruz. A galinha crucificada é sacudida sobre as cabeças dos espectadores. Nós deixamos as cruzes caírem.
Eu escolho o músico com o cabelo mais longo. Eu o levanto. Ele está rígido como uma múmia.

Eu o visto com uma roupa de Papa. Eu o cubro com mantos.

As mulheres, ajoelhando, abrem suas bocas e botam suas línguas pra fora, o mais pra fora possível.

Um novo personagem aparece: uma mulher numa roupa tubular, como um verme de pé. Com esta roupa, eu quis dar a idéia de “forma papal” no processo de apodrecimento. Um papa que virou Camembert.

O músico, com os gestos de um padre, abre um jarro de fruta em conserva. Ele coloca uma metade de damasco amarelo nas bocas de cada uma das mulheres. Elas engolem de uma vez só.

Hóstia em xarope denso!

Uma mulher que parece grávida entra. Estômago de papelão. O Papa nota que ela tem uma mão postiça. Ele pega o machadinho e a destrói em pedacinhos. Ele abre seu estômago com uma picareta. (Eu tenho que controlá-lo para evitar que ele a machuque de verdade.)

Ele põe a mão dentro do estômago dela e tira muitas lâmpadas. A mulher chora como se estivesse dando a luz. Ela levanta, tira um bebê de borracha dos seios e golpeia o Papa no peito com ele. O bebê cai no chão. A mulher vai embora. Eu pego o bebê.

Eu abro sua barriga com um bisturi e tiro um peixe vivo se contorcendo em agonia.

Fim da música. Solo brutal de bateria.

O peixe continua a se debater; o baterista agita garrafas de champanhe até elas explodirem.

Vendo a espuma cobrir a todos, o Papa tem um ataque epiléptico. O peixe morre. A bateria está em silêncio. O animal é atirado pela rampa; ele cai no meio do público.

Presença da morte.

Todo mundo sai menos eu.

Música judaica. Hino dilacerante. Lentidão.

Duas imensas mãos brancas me jogam uma cabeça de vaca. Oito quilos. Sua brancura, sua umidade; seus olhos, sua língua.

Meus braços sentem sua frieza. Eu me torno frio. Por um momento, eu me torno a cabeça.

Eu sinto meu corpo: um cadáver na forma de uma cabeça de vaca. Eu caio de joelhos. Eu quero gritar. Não posso porque a cabeça está com a boca fechada. Enfio meu dedo indicador em seus olhos. Meus dedos escorregam nas órbitas. Eu não sinto nada além do meu dedo – um satélite sensível circulando em torno de um planeta morto. Me sinto como a cabeça da vaca: cego. O desejo de ver.

Eu furo a língua com um furador; abro as mandíbulas. Tiro a língua. Oriento a cabeça, de boca aberta, em direção aos céus, enquanto olho pra cima, de boca aberta.

Um grito que não é meu, mas do cadáver. Novamente, eu vejo o público. Imóvel, congelado, feito de pele de cabeça de vaca. Somos todos o cadáver. Eu jogo a cabeça no meio da sala. É o centro do nosso círculo.

Entra um rabino (as imensas mãos brancas eram dele).

Ele está portando um casaco preto, um chapéu preto, a barba branca do Papai Noel. Seu caminhar é o de um monstro Frankenstein.

Ele fica de pé numa bacia prateada. Ele tira três garrafas de leite de uma mala de couro.

Ele as entorna em seu chapéu.

Eu pressiono minha bochecha em sua face. Sua face está branca. Nos banhamos. Batismo.

Ele me pega pelas orelhas e me beija apaixonadamente na boca. Suas mãos agarram minhas nádegas. O beijo dura muitos minutos. Nós trememos, elétricos. Kaddish.

Com um lápis preto, ele desenha duas linhas, dos cantos da minha boca ao meu queixo. Minha mandíbula agora parece a de um fantoche de ventríloquo.

Ele senta na tábua de açougueiro. Uma de suas mãos pressiona minhas costas como se quisesse passar através, romper minha espinha, colocar seus dedos dentro da cavidade das minhas costelas e esmagar meus pulmões, forçando-os a gritar ou a rezar. Ele faz eu me mover. Me sinto como um mecanismo, um robô. Angústia. Preciso deixar de ser uma máquina.

Eu escorrego minhas mãos entre suas pernas. Abro sua braguilha.

Eu ponho minha mão dentro e com força insana arranco um pé de porco, como o que eu imaginava ser o falo do meu pai quando eu tinha cinco anos. Ponho minha outra mão e tiro um par de testículos de touro. Abro seus braços em cruz. O rabino grita como se tivesse sido castrado. Ele parece morto.

A música judaica fica mais alta;

Ela torna-se cada vez mais melancólica.

Um açougueiro aparece portando um chapéu, casaco, barba preta, seu avental coberto de sangue.

Ele deita o rabino e começa a autópsia: ele põe as mãos dentro do casaco e tira um enorme coração de vaca. Cheiro de carne.

Eu prego o coração na cruz com a galinha podre.

De baixo da veste do rabino, ele extrai um fígado e um par de pulmões inflados; eu os prego na cruz. Um longo pedaço de intestino. Eu o prego.

O açougueiro sai. Apavorado, eu levanto o chapéu do rabino. Tiro seu cérebro. Eu o esmago na minha cabeça.

Pego a cruz e a coloco perto do rabino. Tiro uma longa faixa de plástico vermelho da valise e amarro o velho homem na cruz que está coberta com intestinos.

Levanto a coisa toda: madeira, carne, roupa, corpo, e jogo na rampa em direção ao público. (O negócio todo pesava em torno de 125 quilos: apesar da violência do golpe, o homem não sentiu nada e não ficou nem machucado.)

Entram as mulheres brancas, preta, rosa e prateada. Elas se ajoelham.

Esperando.

Entra um novo personagem: uma mulher coberta em seda preta cortada em triângulos. Um tipo de teia de aranha. Uma balsa inflável de um metro e oitenta está presa à sua roupa e parece uma enorme vagina. Plástico laranja enchido de ar. O fundo do barco é de plástico branco.

Símbolo: o hímen.

Dança. Ela me chama. Quando eu me aproximo, ela me empurra. Quando eu me afasto, ela me segue. Ela sobe em mim. A balsa me cobre completamente. Eu pego o machadinho. Rasgo a parte branca do fundo. Grito. Rasgo a teia e me refugio na vagina. Fico entre as pernas dela, escondido pela seda preta. De uma cavidade que ela tinha escondido perto do estômago, eu tiro quarenta tartarugas vivas que eu jogo para o público.

Elas parecem esguichar da enorme vagina. Como pedras vivas, poderia-se dizer.

Eu começo a nascer. Gritos de mulher dando a luz. Uma mulher soluça. Eu caio no chão no meio dos vidros das lâmpadas, pedaços de prato, penas, sangue, restos de fogos de artifício queimados (enquanto minha cabeça estava sendo raspada, eu soltei 36, um para cada ano de existência), poças de mel, pedaços de damasco, limões, pão, leite, carne, trapos, lascas de madeira, pregos, suor: eu nasço novamente para o mundo. Meus gritos soam como os de um bebê ou de um homem velho. O velho rabino, fazendo esforços desesperados, pula, preso à cruz como um porco agonizante. Ele se liberta das faixas de plástico. Ele sai.

A mulher-mãe empurra a mulher preta pra mim. Eu a levanto. Eu a carrego para o centro do palco com seus braços abertos. Um cadáver-cruz: a tinta preta sugere uma cremação: minha própria morte.

Dando-me a vida, a mulher jogou a morte em meus braços. Eu começo a queimar.

A mulher nos amarra juntos com bandagens. Eu sou preso a ela pela cintura, pelos braços, pelas pernas e pelo pescoço. Esse cadáver ossudo está incrustado em mim e eu nela. Somos como dois gêmeos siameses: quase um único ser. Nós improvisamos uma dança, devagar. Nos espalhamos pelo chão. Os movimentos não são nem dela nem meus, mas dos dois ao mesmo tempo. Podemos controlá-los.

As mulheres brancas e a rosa derramam menta e xaropes de limão e de groselha em nós. O líquido pegajoso, verde-vermelho-amarelo nos cobre; misturado com poeira ele forma uma espécie de lama.

Magma.

A cortina começa a cair devagar. Nossos dois corpos unidos, agarrando um ao outro, como duas colunas. Nós queremos levantar; caímos.

A cortina cai.

(Todos os elementos usados no Melodrama Sacramental foram jogados pela rampa para o público: figurinos, machadinhos, containeres, animais, pão, parte de automóvel; etc. Grande disputa entre aqueles presentes, que brigaram como aves de rapina pela divisão dos espólios. Nada restou.)

Alejandro Jodorowsky

(Publicado originalmente em City Lights Journal, nº 3, p.p 75-83. Editado por Lawrence Ferlinghetti, City Lights Books, 1966. Traduzido do inglês por Tatiana Monassa.)

 

 





Jodorowsky em ação no palco.