O público culto europeu está às
voltas com um filme com o qual não sabem muito o que
fazer: A Montanha Sagrada, terceiro filme (Fando
e Lis, A Toupeira) do russo-chileno Alexandre
Jodorovski, atualmente vivendo nos Estados Unidos,
após longa estadia na França onde fundou o movimento “Pânico” com
os surrealistas Arrabal e Topor. A Montanha Sagrada,
grande produção colorida, foi iniciada no México, onde
Jodorovski viveu uns tempos. Mas as filmagens irritaram
pessoas bem pensantes e o filme teve que ser terminado
nos Estados Unidos. A luxuriante imaginação de Jodorovski
e seu excepcional poder para a criação de imagens-choque
justificam o sucesso deste filme, mas a mistura de
misticismo de inspiração oriental com o tarô e o cristianismo
constitui um conjunto de difícil entendimento, que
as pessoas tentam simplificar dizendo tratar-se de
um caleidoscópio sobre o tema da busca da purificação,
da busca do ser autêntico, ou então “não posso dizer
que gostei ou não, mas nunca vi um filme tão bizarro".
Como este filme, sob muitos aspectos excepcional, não será tão logo exibido no
Brasil devido a problemas de distribuição e outros, é o caso de tentar uma breve
descrição para o leitor brasileiro, embora o filme não se preste a descrições.
Na primeira parte, o filme sugere por metáfora uma sociedade onde imperam a violência
e a religião. Roupas e arquitetura sugerem o México. Enquanto jovens são fuzilados
em praça pública, turistas americanos fotografam os pássaros que vão saindo do
peito dos jovens cadáveres. Um circo é apresentado: um símbolo do México, os
Incas sendo representados por camaleões emplumados. Das caravelas, saem legiões
de sapos vestidos de guerreiros e monges para destruir o império dos camaleões.
Da destruição geral, emerge um jovem barbudo e cabeludo que vive uma paródia
grotesca da paixão de cristo, reproduzindo indefinidamente a sua imagem; na igreja,
o cristo encontra o altar vazio, enquanto o bispo está numa cama barroca com
uma
estátua de cristo.
Na segunda parte, o jovem que viveu o cristo encontra uma espécie de grão-mestre
que o inicia à alquimia, transforma suas fezes em ouro e o apresenta aos grandes
deste mundo. São sete personagens cujos nomes são os de planetas do sistema solar:
são industriais de cosméticos (que fazem desaparecer o homem debaixo do que ele
parece); de artefatos bélicos; de objetos de arte comercializados; de brinquedos;
um conselheiro econômico (que recomenda a exterminação de milhões de pessoas
para solucionar o problema da distribuição de renda); um chefe de polícia;
um arquiteto-urbanista. Cada planeta conta a sua vida. Por exemplo, o fabricante
de brinquedos consulta o governo para saber quais serão as guerras futuras e
daí deduz os brinquedos que devem ser produzidos, de modo que as crianças, quando
adultas, venham a odiar o futuro inimigo; no caso, ensina-se às crianças a odiar
o Peru. Ou então, o industrial em artefatos bélicos fabrica um gás que dá vontade
de ser herói e, após respirarem esse gás, soldados ensangüentados lançam-se com
euforia sobre baionetas caladas. Ou então, a iniciação para ingressar nas armas é a
castração, e o chefe superior, ao praticar mais uma castração, completa seu museu
de mil testículos, enquanto o castrado está pronto para as honras, a obediência
e a matança, o que é testado. Quanto ao urbanista, propõe que, para as gentes
mais comuns, se substitua o conceito de casa pelo desabrigo, e apresenta seu
protótipo: um arranha-céu composto por caixões individuais, o conjunto apoiado
em dois caminhões fossa para evacuação dos excrementos.
O grão-mestre, na parte final do filme, convence os sete poderosos do mundo a
iniciar a grande busca em direção à imortalidade. O primeiro passo para tal busca é se
desfazer do poderio e da riqueza, o que todos fazem. Em seguida, eles entram
em contacto com um camponês, tendo que vencer o nojo que lhes inspira o fedor
do homem; do mesmo modo, eles têm que fazer grande esforço para aceitar
a comida
humilde e mágica de uma camponesa. Após vencerem outros obstáculos, inclusive
a tentação de recuperar o antigo poderio, eles chegam à montanha sagrada, percebendo
que a imortalidade não é nenhum segredo, apenas uma renúncia ao poder, particularmente
ao poder de matar. Neste momento, o grão-mestre, interpretado pelo próprio Jodorovski,
manda a câmera recuar. Enquanto se descobre a equipe de filmagem e seu equipamento,
o grão-mestre Jodorovski diz que se trata apenas de um filme, recomenda que os
espectadores retornem ao mundo para agir com novas idéias, e todos os atores
encaminham-se para o morro ao pé do qual se dá esta última seqüência.
Pode-se perceber no filme, a existência de duas linhas estilísticas diferentes.
A primeira se refere ao início do filme, até o cristo encontrar o grão mestre
e às sete biografias. A segunda corresponde ao processo de iniciação e
a longa
busca da purificação e da imortalidade.
A primeira refere-se ao negativo, ao que Jodorovski rejeita, à opressão, à morte, à destruição, à guerra,
ao inumano. Á imaginação do diretor se situa na linha de um barroco sensual,
violento e sangrento. As imagens surgem com forte poder de impacto, sem significação
precisa, mas se abrindo para uma multiplicidade de sugestões relacionadas com
um certo sistema social. Citemos dois exemplos: um desfile de coelhos esfolados,
crucificados em baionetas caladas, na frente de uma igreja barroca. Ou um baileco
à meia luz onde dançam casais masculinos, um homem de tipo comum abraçado
com
uma espécie de autômato sem rosto, composto por um uniforme e uma máscara de
gás. Este baile é a própria imagem do terror cotidiano.
A segunda linha se refere ao positivo na concepção de Jodorovski, ao humano, à libertação.
A encenação, o guarda-roupa, a cenografia apresentam um caráter mais frio e abstrato
do que na linha anterior. Indiscutivelmente o filme cai de nível, torna-se às
vezes monótono, quando não ridículo (a transformação dos excrementos em ouro).
As figuras geométricas (que um conhecimento do tarô e da cabala permitiriam provavelmente
entender melhor), as superfícies e as cores lisas, os gestos rituais e comedidos
dão ao filme um tom de laboratório, em comparação ao caos borbulhante da outra
linha.
Estes comentários sobre o estilo do filme levavam a colocar um problema interessante.
Jodorovski é poderoso quando transpõe para seu mundo poético uma sociedade que
oprime e que ele rejeita; mas é inseguro e quase artificial quando aborda as
possibilidades de superação do negativo. Afinal o positivo em A Montanha Sagrada nada
mais é do que os poderosos deste mundo aceitando, por influência do grão-mestre,
renunciar a seu poder. O processo de evolução da história e as possibilidades
de uma transformação social resultam de uma mudança de atitude da elite dirigente,
sem nenhuma participação de outros setores que compõem uma sociedade. A história
torna-se um palco iluminado onde evoluem vedetes, cujo comportamento decide tanto
do mal como do bem da sociedade. Esperar que os poderosos deste mundo simplesmente
abdiquem de seu poder parece ser um dos aspectos do mundo poético de Jodorovski.
E nisto, ele não é o filho de Buñuel que mostrou em O Diário de uma Camareira que
nestas situações, não é a elite dirigente que se transforma, mas sim o individuo
que penetra nela com a intenção de transformá-la.
O filme de Jodorovski é extremamente sintomático e por isto de relevante importância:
a própria construção dramática do filme revela um momento histórico vivido por
poetas da América Latina. As decepções provocadas por fatos históricos nos últimos
10-15 anos podem levar à esperança – talvez errônea, mas muito difundida – de
que as transformações sociais positivas podem surgir apenas das vedetes, sem
uma participação mais ampla. Essa é uma forma de poesia que pode até se alastrar
pela América Latina.
Mas é possível que nem o próprio Jodorovski esteja muito convencido da concepção
histórica que informa o seu filme. O final é de fato ingênuo e contraditório.
Ingênuo, pois revelar o filme como filme, atualmente, não passa de um chavão.
Contraditório, porque, após ter dito que o filme não era senão uma fábula e os
personagens apenas atores, estes se encaminham para a “montanha”. Quer dizer
que, ao mesmo tempo, Jodorovski interrompe e dá prosseguimento ao movimento de
purificação dos poderosos deste mundo.
É difícil escrever sobre um filme para leitores que não o viram. Mas é um esforço
de informação que deve ser tentado e é possível que este artigo, se bem lido,
possa despertar algum interesse.
Jean-Claude Bernardet
(publicado originalmente em Revista Cinema nº
4, São Paulo: 1974)
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