Contra-regra
Coluna semanal de televisão


Mormaço. O mês de Janeiro vai terminando e o ano parece que nem começou na televisão brasileira. Está certo que todo mundo sabe que o ano das emissoras tem por costume começar em Março (depois das festanças momescas) ou Abril (mês de aniversário da toda-poderosa Rede Globo), mas há um sentimento geral de apatia e cansaço na programação, que parece significar um pouco mais do que uma mera entressafra de fim de ano. A começar pelo carro-chefe do padrão de qualidade Globo, a mini-série Um Só Coração só tem servido para cristalizar a impressão de que Maria Adelaide Amaral deixou de ser seuqer a sombra da revelação de A Muralha (2000) para se tornar meramente a dona de uma grife desinteressada de contar fábulas palimpsestas (história romanceada). Assistir aos capítulos das primeiras semanas de Um Só Coração se transformou, ao contrário da expectativa de riqueza que o tema trazia, num infértil exercício de falta de criatividade e inércia conceitual. Já bastante esmaecida em A Casa das Sete Mulheres, Maria Adelaide Amaral volta às telas sem nenhum vigor, escrevendo para um elenco extremamente mal-escolhido e uma direção tão frouxa que chega a constranger ter que colocá-la na prateleira da obra de um diretor fundamental como Carlos Manga. O cheiro azedo de fórmula, a repetição de elenco (quantas heroínas de olhar perdido a bela Ana Paula Arósio será capaz de fazer?) e de personagens (Maria Fernando Cândido será sempre a imigrante pobre e honesta?), a reedição dos velhos truques de reconstituição estética – as fotografias animadas não cansaram ainda não? – que um dia já foram novidade em Terra Nostra (2000), tudo isso deixa patente que a monotonia é fruto direto, não do acaso ou da falta de inspiração, mas de uma orientação covarde de seu núcleo de produção, orientação essa voltada para o alcance rápido (e fácil) de um padrão de qualidade formatado em números de audiência. É claro, podem dizer que a televisão brasileira nunca foi lá berço de grandes novidades, mas o que impressiona é a forma como até mesmo o espaço das mini-séries globais – que costumam ser descritas como um lugar de "liberdade" e "risco", como um espaço para uma dramaturgia menos calcada pela segurança da audiência (lembremos do bom resultado de Os Maias) –, tenha se tornado nessa desova sistemática de mini-novelas acanhadas, articulada numa máquina oportunista de tematização histórica.

Nota:

E por falar em São Paulo, foi constrangedor assistir ao show organizado pela mesma Rede Globo para a comemoração dos 450 anos da cidade. Ao tentar levar à alegria das ruas seu padrão de encenação asséptico, a emissora promoveu um estranhíssimo show num aquário frio (com um cenário imitando a silhueta da cidade ao fundo), articulou convidados de forma canhestra (Tom Zé com Falamansa?) e conseguiu com que fosse impossível não deixar transparecer o cansaço do público (e seu desinteresse). Um programa de TV burocrático – e não uma festa –, a comemoração global para o aniversário de Sampa soou mais como uma festividade oficialesca (como a de um Estado cumprindo seu dever para agradar seus cidadãos) do que de alguma alegria. Nesse sentido, a simplicidade com que o SBT transmitiu o show (organizado pela prefeitura de São Paulo) na esquina da Ipiranga com a São João foi mais do que bem-vinda. Esse "efeito globo" nos programas ao vivo (como eu ter acabado de assistir, agora há pouco, um jogo de futebol que começou às 21h45 de uma 4a feira!) já mais do que passou do limite e costuma ter seu auge anual nos desfiles de escola de samba: o encontro da celebração caótica do carnaval e a sanha padronizadora da emissora costuma ser um dos momentos mais bizarros da televisão brasileira. E, como o "cordão dos puxa sacos" da marchinha, cada vez aumenta mais.

Felipe Bragança

 

Textos da semanas anteriores:
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos Homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)