Contra-regra
Coluna semanal de televisão


O canal das mulheres, a Cidade dos Homens

1. Mulheres e levezas
O GNT resolveu se tornar um canal feminino...O que isso quer dizer é difícil definir, mas para além das chamadas recheadas de belas modelos, anuncia-se uma política de diminuição da grade voltada para a exibição de documentários e um aumento do espaço para programas de variedades. Diz-se por aí que a "tendência" (que diabos é isso?) do canal é agora dar preferência a documentários mais leves, mais modernos, evitando clássicos em preto-e-branco e filmes de narrativa pesada. Se o GNT era a pequena janela que restava na TV brasileira para a exibição sistemática de documentários que fugissem do formato fácil do telejornalismo tipo 60 minutes / Globo Repórter, o que essa nova fase do canal vai influenciar em seu tradicional interesse na propagação e co-produção do gênero? E o público feminino, principal alvo dessa "recolocação" do canal, se sente satisfeito com um perfil onde "documentários pesados" perdem espaço na programação em prol de ainda mais programas sobre culinária, moda, beleza e sobre a criação dos filhos? Deixa ver se eu entendi: isso tudo por se tratar de um canal voltado para as "mulheres modernas"? Me ajudem...Fico um pouco confuso quando estratégias de marketing desse nível começam a pautar uma agenda editorial inteira.

2. Seis por meia-dúzia?
Quando você acha que a coisa não tem como piorar, aí mesmo é que ela piora...Com a saída de Arnaldo Jabor, o famigerado articulista Diogo Mainardi é a grande atração anunciada para o Manhatan Connection. E haja rancor, e haja análises "embasadas" sobre esse curioso país tropical que todos amam odiar. Tudo isso salpicado, claro, de muito erudição de butique e empáfia cultural. É impressionante como a carapuça de "menino mal" construída de forma canhestra pelo rapaz Mainardi nas páginas da VEJA continua lhe rendendo louros entre a pobre aristocracia cultural brasileira. Pois é: até de bons polemistas nossa televisão anda órfã... O triste é que, fora alguns programas da TVE (exibidos prioritariamente após as 23h00 da noite), o dito cujo é o único programa de debate aberto sobre cultura e política (o Saia Justa é a versão para meninas?) em toda a televisão brasileira (!!!)

3. A verdade do fórum
Ainda o GNT: O Brasil Documenta 2003 parece ter ao menos assumido o que antes era apenas um projeto velado do evento: todas as mesas de debate não passarão de um painel de negócios para a comercialização e promoção do gênero no Brasil. Atropeladas por debates sobre a produção e a defesa de projetos atrás de patrocínios, as únicas questões estéticas a serem discutidas aparecem muito mais como ganchos para a promoção da nova editoria "leve" e "feminina" do canal do que como proposta de intercâmbio estético: um debate discutirá o "olhar feminino no documentário" (seja lá o que isso queira dizer para além de uma tipificação de pré-escolar...); um outro discutirá a questão "entretenimento versus informação" (um dos binômios mais banais usados para condicionar as formas de produção de imagens na TV). Além disso, uma série de mesas e aulas sobre a preparação de projetos e a venda de documentários como "produtos lucrativos"... É claro que as discussões comerciais são básicas para o desenvolvimento de uma produção sistemática do gênero no Brasil, mas é uma lástima que o único fórum sobre documentários existente hoje no país se limite a essa missão unilateralmente comercial. Para quem, no ano passado, pode ver um debate político-estético do nível de um Albert Maysles vs. Eduardo Coutinho, vai ser difícil achar que o evento esteja "amadurecendo" em algum sentido. Resta saber se a programação de documentários prevista para o Instituto Moreira Salles e o canal GNT, durante o evento, vai conseguir fugir desse perfil empobrecido.

Nota:

Cidades dos Homens volta reciclado:
Começaram as chamadas, na TV Globo, para o seriado Cidade dos Homens, volume 2003. Se no ano passado, aqui na Contracampo, critiquei a proposta de "sociologismos" didáticos (e presa aos estereótipos da violência) do "retrato cruel" (derivado do curta-metragem Palace II) da vida dos meninos Acerola e Laranjinha, esse ano as expectativas são as melhores. Os 4 novos episódios vem sendo descritos por Fernando Meirelles como fruto de sua vontade de deixar de lado a parte didática e o "retrato da violência" para entrar mais delicadamente em questões de dramaturgia afetiva, na formação de identidades e nas relações cotidianas dos dois personagens com o espaço onde vivem. Curiosamente, esse é um movimento contrário ao realizado pela Turma do Gueto da Record, que começou na primeira temporada (2002) como um programa voltado para a dramaturgia cotidiana de uma comunidade na periferia paulistana e virou (depois da demissão da roteirista e criadora dos personagens) num fraco seriado de vertente sensacionalista e de exploração da violência. Se sempre deixei clara minha admiração pelas possibilidades narrativas de Cidade dos Homens e marquei posição contra o olhar descritivo / moralista (bula da pobreza para classe-média ver) dos primeiros episódios (onde as relações afetivas eram deixadas de lado em função das tramas de desvelamento social) a nova temporada do programa promete fugir dessa tentação "retratista" pré-mastigada e lançar, realmente, um olhar dramatugicamente renovado sobre o universo dos morros cariocas. Estou ansioso para ver. Estréia dia 14/10.

Felipe Bragança, 29/09/03

Textos da semanas anteriores:
O Fetiche do Pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão Cidadã, Cidadãos Televisivos
(por Felipe Brgança)