Contra-regra
Coluna semanal de televisão


Uma novela de...

Se há alguma certeza granítica na programação da rede globo é a de que, depois de uma novela sempre vem outra novela. Há uma certa expectativa em torno da nova novela da rede globo, escrita por Gilberto Braga, autor de importância indiscutível dentro da teledramaturgia nacional. É dele o maior sucesso da televisão brasileira e vendida a centenas de países, Escrava Isaura. Ainda que se guarde uma certa curiosidade em torno do que estar por vir, é inegável que alguns temas nos parece bem recorrentes se olharmos para a obra deste autor, no final da década de 80 e início da década de 90. Novelas como Vale Tudo, O dono do Mundo e Pátria Minha, tinham bem mais em comum do que seus títulos totalizantes. Era por meio de personagens corruptos e inescrupulosos que Gilberto Braga construía uma certa imagem de Brasil. O interessante é que esses personagens não eram marginalizados, pelo contrário, os vilões de suas tramas estavam muito bem inseridos no sistema. Eram peças da engrenagem que representavam uma elite social. Eram homens de negócios, empresários, empreendedores. Procurava-se desvendar o Brasil pelas relações de poder ou pelas ações que engendram em busca dele. No cinema brasileiro recente, O Invasor é o filme que se aproxima bastante da proposta de Gilberto Braga. Mas, ainda que possamos identificar alguns traços estilísticos da obra deste ou daquele autor, chama a atenção de uma certa apropriação que, a própria TV Globo faz dessa característica de seus autores. É preciso ter um certo cuidado ao examinarmos essas estratégias de promoção. Tais mecanismos sempre evocam um sentido de autoria que, por diversas vezes, despreza a idiossincrasias e especificidades da obra. Antes de compararmos a próxima novela como um produto com uma assinatura, devemos relativizar essa autoria.

Quando Mulheres Apaixonadas foi lançada, havia uma estratégia bem clara de promoção deste produto como sendo mais uma produto da grife Manoel Carlos. Ainda que na obra de Manoel Carlos possamos identificar certas recorrências, estamos longe de poder atribuir uma noção mais precisa do que é autoria em telenovela. Se no cinema temos um histórico de cinqüenta anos de estudos sobre a noção de autor, na produção audiovisual pouco se evoluiu. Importar a noção de autoria que se estabeleceu no cinema (e que, constantemente, precisa ser revisitada dado o surgimento de novas tecnologias de produção e difusão) é um erro. A telenovela é uma obra em construção, o que é muito diferente de dizermos que é uma obra aberta, outra noção bastante equivocada e que virou lugar comum na fala de seus autores quando procuram definir suas obras. Na prática, Umberto Eco nos informa que obra aberta é toda e qualquer obra, pois o que está em jogo é a negociação entre intenção da obra, intenção do autor e intenção do receptor. Um caminho mais efetivo é encarar a novela como uma obra que se constrói, e que leva em conta o processo, pois não é oferecida ao público plenamente acabada. Tal especificidade nos faz pensar nos mecanismos de análise de que dispomos. Como pensar uma obra que ainda não acabou? Como podemos criar um dispositivo de análise de uma obra que ainda esta em fase de construção? Longe de tentar dar respostas definitivas o que se pretende é estimular uma discussão mais intensa no campo onde efetivamente se constrói nossa idéia de país.

Não pode se cobrar da própria Rede Globo uma consciência que problematize a idéia de autor. Não é sua função, nem é do seu interesse trilhar esses caminhos. No entanto, não se pode encarar tais noções como sendo dadas. O discurso de promoção da novela não pode ser tomado como um elemento definidor da noção de autoria na televisão. Seria muitos simples atribuirmos a Manuel Carlos, Gilberto Braga, Benedito Ruy Barbosa ou Carlos Lombardi o sentido de assinatura que possuímos quando discutimos, por exemplo, a obra cinematográfica. Isso seria desprezar por completo o trabalho dos diretores. O processo de criação na teledramaturgia ainda é um terreno pantanoso e que necessita de um olhar mais apurado que dê forma mais completa de suas complexidades.

 

Nota:

Uma certa ironia estava presente na programação de filmes, no último Sábado. A grade anunciava a exibição de O Mundo de Andy (Man on the Moon, 2000) de Milos Forman. Aparentemente nada demais, se não fosse pela emissora que resolveu exibir o filme. Nada menos do que o SBT. A história de Andy Kaufman e suas criações como ator e comediante joga com as fronteiras da ilusão e realidade. Onde termina o homem, onde começa o personagem, como se constrói o mito. Impossível não deixar de comparar com as estratégias de autopromoção de Silvio Santos. O episódio de sua morte anunciada foi o ápice dessa amostra de total desapego com a tal verdade. O que interessa é a diversão. O que importa é a piada. Quase um enfant terrible Silvio Santos parecer encontrar a medida exata entre o deboche, a farsa e o descaso com a imagem. A Casa dos Artistas era a síntese disso. Sem dúvida o melhor reality show já feio na televisão brasileira, o programa apresentava relação cínica com a celebridade. Silvio Santos era o mestre de cerimônias de um espetáculo onde o que estava em jogo era a criação de personagens para conquistar simpatia com o público. Talvez o Seu Silvio nem tenha visto O Mundo de Andy, mas com certeza sua mulher viu, suas filhas viram e o Roque viu.

Roberto Cersosimo

Textos da semanas anteriores:
O canal das mulheres, a cidade dos Homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)