Contra-regra
Coluna semanal de televisão


Algum começo...

Não é de hoje que comento (aqui na Contracampo) da expectativa em torno da segunda temporada de Cidade dos Homens. Se a primeira investida de Meirelles se destacava muito mais por suas potencialidades discursivas do que por ter apresentado algo de novo em relação à postura desbravadora-glamourizada de Cidade de Deus, o episódio Sábado (exibido dia 14/10) reafirma a idéia de que algo de novo está sendo criado através de um olhar arejado ante ao conjunto de clichês e temas do universo de signos dos "morros" e "favelas".

Com uma habilidosa narrativa em fragmentos, Sábado se instala logo de início como discurso particular de seus dois protagonistas, fazendo deles, os filtros afetivos (e assumidos) através do qual tomaremos conato com a breve trama. São as pequenas motivações, as crenças e os hábitos de Acerola e Laranjinha, o eixo referencial através do qual um certo linguajar, um certo gestual e imaginário serão esboçados. Deixando de lado a observação afunilada pelas "relevâncias telejornalísticas" da violência e do tráfico, Sábado constrói sua dramaturgia através dos breves amores, amizades e afecções dispersivas em torno de um simples baile funk. Não um mapa tipificado, Sábado lista hábitos, gírias e apelidos que se entremeiam na mitologia de seus personagens e nas máscaras sociais com as quais se identificam ou tentam se afastar.

O concurso de bondes de funk, as pequenas disputas entre amigos, as "ficadas" passageiras: são elementos que conseguem ultrapassar a imagem das mazelas sociais para instalar-se por dentro do olhar de seus personagens, numa intimidade compartilhada com o espectador como gesto de amizade – nunca de síntese.

Nesse sentido, a aparição atravessada dos personagens do tráfico é muito mais rica como comentário sobre os jogos de poder naquele território do que as pirotecnias de Cidade de Deus ou as "espertezas" para-didáticas da primeira temporada de CDH. Ao invés de clichês onipotentes, as armas, o tráfico e a violência aparecem como recortes verticais na vida dos dois meninos: interagindo com eles, e não servindo de dispositivo central para o cotidiano dos personagens. A cena em que os "soldados" condenam uma jovem a ter os cabelos cortados (por arrumar briga no baile) é muito mais forte e vai muito mais fundo na nervura da arbitrariedade do poder (e suas formas de interferência cotidiana na comunidade) do que todos os 100 minutos de CDD.

Deixando de lado também as "metáforas para entreter a classe-média", Sábado deixa de lado os simbolismos e comparações explicativas em nome de um emaranhado de palavras, hábitos e conversas que se descolam de qualquer ideal de resumo temático. O recorte vertical no tempo e espaço ("o baile de sábado") permite ao roteiro passear por vários aspectos do imaginário de seus dois protagonistas sem precisar apelar para um arco moral ou desfecho melancólico. O baile acaba e a vida continua, os personagens se projetam para além daquelas imagens e com isso se libertam da compreensão.

Fernando Meirelles dirige, certamente, seu melhor trabalho, conseguindo encontrar impressionante equilíbrio entre o videografismo interventor, os planos clipados e o respeito ao tempo de seus personagens. A montagem em flashbacks se encena como fluxo das afecções e lembranças de seus personagens, montando o quebra-cabeça de suas identidades e suas formas de agir naquele espaço. As subtramas, como a do policial que tem um caso com uma menina, são plantadas não em tom de denúncia, mas como elemento de motivação dramática. Não estamos diante de "fatos revelados" por um olhar "descobridor", mas de uma narrativa que aposta no microscópico como cristal de refração para o macro.

Por isso a narração em off (problemática em CDD e na primeira temporada de CDH) consegue perder seu caráter descritivo, diagnóstico, para se inscrever como expressão de uma certa maneira, de um certo modo de articular clichês juvenis através dos olhos apaixonados de dois jovens: narração como conjugação de vidas...e não como suas bulas.

Detratores, certamente, aparecerão, defendendo a primeira fase do programa, dizendo que ela ao menos se interessava por mostrar a tal "dura realidade" brasileira...Para esses, famintos por sintomas e lições de moral, resta, diante de Sábado, o sabor agridoce do abismo.

* * *

Sendo o primeiro episódio, é impossível, ainda, apostar neste Sábado como padrão para toda a temporada – até porque a assinatura da direção varia a cada episódio. De qualquer forma, seu raro movimento de aproximação afetiva com um território tão cultivado nas máscaras estéreis da "denúncia" e do exotismo, é, certamente, louvável. Colocando-o entre os destaques definitivos do cinema e da tv brasileira em 2003 e expande o território da dramaturgia juvenil brasileira não apenas como tema/cenário, mas como possibilidade viva para novas fabulações.

Vejamos os próximos passos...


Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos Homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)