Contra-regra
Coluna semanal de televisão


Para além das colunas de fofoca, das críticas maniqueístas à cultura de massa e de um jornalismo cultural mais interessado em discorrer mazelas do que de colocá-las em questão, pretendemos com esse novo espaço, lançar um olhar sobre o cotidiano da televisão brasileira que saiba ultrapassar os clichês da "programação de qualidade" e do "lixo cultural", investigando semanalmente um pouco mais do que compõe o discurso rotinizado e disperso desse que é, hoje, o principal meio de organização do território cultural brasileiro. Toda semana, uma nova coluna entrará no ar, tentando intervir/responder mais diretamente à dinâmica fragmentada de um discurso audiovisual que já completa mais de meio século de cultivo e concentração de poder no país. Projetadas na sala de estar, pipocando em mais de 30 milhões de aparelhos em todo o país, as imagens da televisão são alvos de fascínio e desprezo, de admiração e repulsa, e merecem hoje, inegavelmente, atenção crítica, dedicação e, porque não?, um novo redator especialmente interessado na área: Roberto Cersósimo estréia na Contracampo alternando comigo as semanas dessa coluna. É isso, então. Vamos em frente que a programação não pode parar – e não pára mesmo. (Felipe Bragança)

Televisão-Cidadã, Cidadãos Televisivos

Quem pode ler, em março último, o artigo Mulheres Higiênicas, publicado aqui ao lado na Seção TV, sabe que não é de hoje que observo a reviravolta que a escrita de Manoel Carlos sofreu com a estréia e subseqüente sucesso de Mulheres Apaixonadas. De habilidoso arquiteto de melodramas burgueses (vide Por Amor, um de seus maiores êxitos de dramaturgia) à figura de principal estrategista do "marketing social" no Brasil hoje, o autor passou por uma verdadeira reformulação em sua maneira de construir cenas, personagens e de se aproximar de aspectos do cotidiano. Telenovela de enredos, mais do que de tramas, Mulheres Apaixonadas demarca a intensificação e síntese de grande parte do ideal de intervenção no coletivo cultivado pela Rede Globo de Comunicações desde a sua fundação em meados dos anos 60. A partir da abordagem de temas relacionados ao universo das utilidades públicas e de urgências sociais, a telenovela de Manoel Carlos discorre-se como um painel de questões e bandeiras, costuradas na forma de reconstituições dramatizadas de sintomas cotidianos, onde personagens são cultivados como dispositivos de afetividade a fórmulas de intervenção comportamental sobre o imaginário público. A "questão do alcoolismo", a "questão do ciúme doentio", a "questão do homossexualismo", a "questão dos idosos", a "questão da violência urbana" entre muitas outras, compõe o painel de apelos apresentados pela novela na forma de crise moral e resolução de conduta, em que diálogos e cenas funcionam como a resolução de equações previamente representadas, arquitetando respostas comportamentais de forma direta e generalizada (o que aproxima seu discurso da literatura de auto-ajuda e das fórmulas de felicidade). Avesso ao embate político da dúvida e da diferença, o discurso construído por Manoel Carlos vem se mostrando cada vez mais próximo do desejo da representação direta de uma vida real re-encenada. Disfarçando o seu lugar de discurso e vestindo a carapuça unilateral do mero reflexo do "cotidiano real" daqueles territórios. Manoel Carlos, subjugando sua habilidade dramatúrgica a essas grandes "causas" morais, investe na rotinização de dispositivos de identificação espectador-personagem como forma instrumentalizada de retro-alimentar seu território, sua marca (a TV Globo, as Telenovelas e afins) filiando-as a expressões diretas de questões diariamente compartilhadas via telejornais. O "marketing social" de apelo direto aparece, então, como o grande filão em que a Rede Globo de Televisão vem investindo nesse último ano, embarcando na co-moção da "mudança" em torno da vitória de Luiz Inácio da Silva para a presidência. Essa estratégia se realiza na medida em que empresta a eventos sociais extra-tv o espaço midiático da telenovela (e a aura de sua qualidade glamourizada), e que pesca deles o rótulo da relevância social (e da unanimidade) para suas tramas (e, em conseqüência, para o veículo: a emissora). Em alguma medida, a dramaturgia de Manoel Carlos se aproxima hoje da proposta desenvolvida em certos canais satélites de TV, como as "Simulações de Conflitos no Lar", apresentadas diariamente na faixa evangélica da Rede Record de Televisão (após a meia-noite). Enquanto a Record sintetiza a resposta de seus dilemas na procura pela dietética e moral pentecostal, as telenovelas de Manoel Carlos praticam um discurso de exposição dos bons e maus hábitos cotidianos, colocando sobre o livre-arbítrio, o leque de caminhos para a felicidade. Não há diferença de dispositivo discursivo entre a simulação de casos reais utilizadas para a propagação dos hábitos evangélicos e a dramaturgia da edificação emocional de Mulheres Apaixonadas. A cena da passeata contra o porte de armas (na última segunda-feira), proposta e arquitetada pelo autor e produção da telenovela (e realizada com a ajuda de anônimos voluntários) aparece como o ápice dessa proposta de dramaturgia que quer se esconder por trás do dispositivo ficcional da espontaneidade. Os planos-gerais da passeata, ao som do hino nacional, misturando atores globais, políticos e anônimos, representa esse desejo de totalização representacional da emissora/telenovela aos anseios comuns da população. Dando a volta na construção de seus sentidos, assume seu discurso como mero reflexo dos anseios populares e, no outro sentido, faz de seu discurso (e o de seus personagens) as imagens-ícone de uma identidade supostamente compartilhada (onde os atores são iscas idealizadas de comportamento certo ou errado). Espécie de Casa dos Artistas recalcada (e calcada na relevância sócio-jornalística das banalidades narradas), Mulheres Apaixonadas cultiva a forma reinventada da mesma política de totalização de identidades com a qual a Rede Globo de Televisão vem se aproximando das representações do cotidiano brasileiro desde a década de 70. Não se assumindo como mera dramatização de histórias construídas (o bom e velho folhetim...), travestindo suas opções e apelos dramatúrgicos/estéticos na "relevância social" de seus temas, tenta engolir a possibilidade de uma aproximação estética e politicamente diferenciada diante do imaginário urbano brasileiro. Fazendo da "consciência social" mais uma máscara para a celebração meritória (conceito essencial para um universo de "tomada de atitudes" e aprendizados) e especular (espelhada) de personagens e espectadores. Não é de hoje que o ideal de "coletivo" unilateral, e a aversão pela diferença, povoam a proposta discursiva da emissora...E que parece dar sinais de estar mais viva do que nunca (Jornal Nacional, Brasil Total, Brava Gente, A Grande Família que o digam...).

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Enquanto isso, Augusto (Gugu) Liberato e Marcelo Rezende travam duelos de sensações... O primeiro (com sua falsa entrevista de líderes do PCC) entrega (integra?) o jornalismo ao circo de variedades e simulações de seu show dominical (o ator que fez o líder do PCC seria o mesmo das pegadinhas, supõe-se) e mostra ter muito ainda o quê aprender com Sílvio Santos sobre a construção de farsas de sucesso. O segundo, leva ao extremo seu dispositivo espetacular de legitimação da notícia (com sua performance de olhos arregalados e voz embargada) ao ver-se ao mesmo tempo como denunciante e vítima de uma ameaça. Repórter cidadão, como o nome do programa diz, Marcelo Rezende, atuando, a um só tempo, como sujeito e objeto das ameaças de seqüestro contra os apresentadores de tv, alcança o grau máximo da calamitosa dramatização de sua "cidadania".

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Passeata produzida por uma telenovela, marketing social no horário nobre, repórter sensacionalista vitimado por factóide... Televisão-cidadã ou cidadania re-alocada como espetáculo televisivo? Sigamos a programação...

 

NOTAS:

A Rede TV acaba de lançar o Web.Repórter, subprograma dentro do famigerado TV Fama, em que anônimos, de todo o país, poderão compartilhar fofocas e notícias sobre famosos gravadas em suas próprias câmeras-pessoais (e que serão transmitidas para todo o país em troca de R$ 50,00). Experiência no mínimo inusitada (misto de jornalismo com video-cassetada) será essa a tal democratização de nosso espaço televisivo???...

Está programada para estrear em Março de 2004, a TAL-Televisão América Latina, proposta de convênio internacional entre televisões educativas, comunitárias e universitárias de diversos países da América Latina. Primeira iniciativa de grande porte nessa área, pode representar um passo interessante nas recentes propostas de interação midiática entre os países do continente. Simples expansão de mercado ou renovação estética e de programação? (Veremos...) Em breve, uma entrevista com os responsáveis pelo projeto.

Felipe Bragança
Rio de Janeiro, 17/09/03