Contra-regra
Coluna semanal de televisão


Retrospectiva 2003 – parte 2

O ano já corre solto e chega a hora de fechar nossa pequena retrospectiva de 2003. Entre faíscas de novidade, mortes simbólicas e dilemas ancestrais, seguem os cinco momentos/eventos televisivos que completam nossa lista de dez destaques do ano que se foi. Vamos a eles:

6 – Um Sábado a ser notado – TV Globo

Pequenina brecha para a produção independente no horário nobre da TV, a série Cidade dos Homens voltou para sua segunda temporada amadurecendo um projeto que desde seu início parecia promissor. Seu episódio de estréia, Sábado, dirigido por Fernando Meirelles, surpreendeu e se destacou pela chave rara com que se propôs a aproximar-se do universo/imaginário de seus protagonistas. Deixando de lado o pseudo-didatismo funcionalista (que reinou nos episódios da primeira temporada), Sábado faz de sua narrativa uma raro exercício de aproximação afetiva com um espaço físico tão oprimido pelos clichês midiáticos da violência e do tráfico. Fechando recorte num microscópico momento de um baile funk, Meirelles afina o tom, dá liberdade a seus atores, costura texto marcado com improviso, frenesi com planos contemplativos e faz da televisão um pouco mais do que os vícios "retratistas" e as metáforas sociologizantes que tem sido bradadas como sinônimo de qualidade. Anunciado agora como um projeto de cinco anos (Meirelles sabe ser megalômano, isso, sabe...) cujo resultado final será reinventado em longa-metragem, Cidade dos Homens abre a expectativa para um projeto capaz de superar os personagens cristalizados/totalizados e o frenesi maneirista do fenômeno Cidade de Deus. O amadurecimento dos roteiros da série (ainda que os outros episódios tenham ficado devendo bastante no quesito recorte narrativo), sem dúvida, contribuiu para isso, abrindo um belo caminho a ser seguido. Resta saber se será.

7 – E por falar em didatismo funcionalista... – TV Globo

Não vou repetir aqui a mesma ladainha sobre a última telenovela de Manoel Carlos – quem quiser, dê uma olhada em nosso arquivo. Assistencialismo, auto-ajuda, ditação de comportamento, dirigismo cultural da pior espécie – tudo isso esteve lá nas linhas escritas pelo guru do Leblon. Mas houve uma cena, no último capítulo da telenovela, que superou todo o arsenal de moralismo do autor e que não pode passar em branco: o espancamento da personagem Dóris por seu pai, no hall de um hotel, dainte de uma dezena de figurantes (servindo de exemplo para a necessidade dos pais de serem mais rígidos com seus filhos): foi uma das coisas mais asquerosas exibidas em anos pela televisão brasileira. Não tem Márcia Goldsmith, não tem João Kléber, não tem Datena, não tem pra ninguém: Manoel Carlos conseguiu levar à telinha de mais de 20 milhões de espectadores o pior artefato de opressão, controle e antipolítica da década. O choro histérico da atriz, o olhar duro do Pai, a insinuação de que ela estaria saindo com homens em troca de dinheiro: tudo remontando a um painel de culpa e castigo, de educação pela força e pela humilhação como forma de recuperar as "palmadas não dadas na infância". Não é à toa que diz-se por aí que o ator que interpretava o dito "pai zeloso"se recusou a fazer a cena e só foi convencido depois de um longo processo de convencimento. Se Manoel Carlos queria se despedir das telenovelas em alto-estilo e deixando a sua marca, conseguiu: nenhuma cena mais sintética de um autor que foi crescendo (ao longo dos últimos anos) em sua habilidade para criar polêmicas à medida que retrocedeu em seu faro para a construção de dramaturgia.

8 – "Rosebud" – TV Globo

A piadinha correu por aí: "Foi só o Silvio Santos inventar que estava morrendo, que o Roberto Marinho correu para morrer antes". O fato, televisivo ou real, é que o grande ícone do poder midiático no Brasil não está mais entre nós. Em um ano marcado pelos clichês da mudança e da renovação (essa foi a tônica da imprensa em 2003, capitaneada pela eleição de Luis Inácio), a morte do "Dr." Roberto Marinho marcou a interrupção simbólica de um ciclo de 30 anos que marcou a implantação de um modelo concentrador da produção audiovisual brasileira – baseada no conceito de "rede nacional" e apoiado por um planejamento estatal de integração nacional. No mesmo ano em que a telenovela diária (outro ícone da rotina audiovisual brasileira) completava 15 anos de existência, o mega-empresário das comunicações no país virava também personagem central de seus próprios noticiários, marcando lugar em discursos que foram do tom auto-complascente dos editoriais ao choro incontido de William Bonner em pleno Jornal Naciona. "Paladino da democracia" na boca de uns, "filhote da ditadura" na de outros – todo o circo das opiniões brasileiras pôs em cena e fez questão de participar desse curioso ritual de cristalização – como se todos tivessem que ter o que dizer sobre o defunto. Nesse movimento, o telejornalismo da Rede Globo viveu um de seus momentos mais curiosos dos últimos tempos: misturando a assepsia factual (em que são especialistas) com um tom confessional raro na emissora – um supra-videoshow para o horário nobre, protagonizado pelo mito particular de Roberto Marinho. Imagens de arquivo, a televisão como objeto de comentário, as transformações no telejornalismo brasileiro (mesmo que em tom ufano-evolucionista) criaram brechas raras na fachada platinada e inatingível da emissora. Do início apoiado pelo Plano Nacional de Cultura do governo militar à cristalização como grande baluarte de uma cultura nacional unificada e ordenada em padrões de qualidade e no mito do "coletivo imparcial"; a Rede Globo de Televisão se tornou, sob o comando de Roberto Marinho, o principal canal de representação do cotidiano no país, fruto antes de suas artimanhas empresariais do que de seu talento como comunicador, é importante frisar. A morte de nosso Kane tropical pode não representar nada de concreto na forma de funcionamento das organizações Globo, mas marcam, sim, ao menos simbolicamente, o envelhecimento de um projeto e formato de produção de televisão no Brasil. Em tempos em que a "qualidade na TV" volta à tona como questão discutida até por apresentadores de programas vespertinos (até João Kleber embarcou nessa), o desgaste e o inchaço do projeto de gigantismo e centralismo semi-estatal da Rede Globo, são inegáveis. Sua força diante das outras emissoras em nada descarta a idéia de que os padrões de "boa" televisão (projetados por Roberto Marinho e "sócios" há mais de 30 anos) não só se tornaram inférteis esteticamente (a última grande novidade depois de quase uma década são os "reality shows", importados "tim-tim por tim-tim" da Holanda – ??!!), quanto quase inviáveis em seu formato monolítico de produção (cortes de pessoal e vultosos incentivos do BNDES estão aí para provar). Qualidade e padrão (as duas colunas mestras do conceito "global"), indiscutivelmente, não são mais palavras tão fáceis de rimar.

9 – As qualidades do Gugu - SBT

E por falar em qualidade...Para quem acha as peças que Silvio Santos prega na TV não requerem prática nem sequer talento, é só lembrar da lambança que Gugu Liberato e sua equipe de produção fizeram esse ano com a "pegadinha do PCC": sem conseguir alcançar um mínimo de graça paródica ou qualquer capacidade de impacto jornalístico, o mico monumental do SBT em 2003 não conseguiu se realizar nem como graça (era esteticamente "frio" como uma reportagem "de verdade") nem como informação (o nível de precariedade da encenação impedia qualquer pacto de veracidade). A polêmica sobre a condenação de Gugu e a idéia de censura na TV aberta ocupou uma ou duas semanas da atenção da imprensa, e agora parece ter caído no esquecimento. Na esteira da polêmica, até João Kleber chamou atenção querendo lançar um "pacto pela qualidade na TV", forma canhestra de tentar driblar o olhar do Ministério Público sobre seu show vespertino. Felizmente, a idéia de censurar a televisão, em qualquer nível, não foi levada adiante – atitude que seria antes um sinal de fraqueza cultural do que de novos ares na TV. Obrigar a televisão brasileira a ter "qualidade" será sempre um ato de arbitrariedade, sem dúvida, principalmente a se verificar os padrões de linguagem limitados (e, paradoxalmente, vagos) que se tornaram referência para a qualidade da TV no Brasil. A questão é velha: tem gente demais clamando por uma "televisão de qualidade", e pouca gente interessada nas qualidades da TV. Após 50 anos de história, ainda se fala em televisão no Brasil como quem descreve um meio unilateral e massivo de comunicação, sem levar em conta linguagem (tem gente que vai dizer que televisão não a tem, pois é...), formatos e propostas de encenação. Poucas são as vozes que se interessam em olhar a programação de Tv por dentro dela, como expressão cultural com dinâmica própria e capaz de se reanimar através de suas potencialidades. No final das contas, todo esse burburinho acabou só funcionando para esvaziar a discussão em uma polaridade inócua que favoreceu a perpetuação incólume da carreira do empresário Augusto Liberato. De positivo, fica a certeza de que a possibilidade do novo na TV não passará nunca por uma atitude negativa de exclusão da programação, mas de uma possibilidade positiva de renovação: qual seja? Uma regionalização de fato e o aumento da porcentagem de programas independentes no espaço (público, é sempre saudável lembrar) da TV. Até porque, cá entre nós, a dita "programação de qualidade", e não é de hoje, também coleciona suas teias de aranha...

10 – E para encerrar...

...um comentário rápido e indispensável: 2003 marcou a entrada da televisão brasileira (especificamente a TV Globo) como nunca no mercado cinematográfico – nunca a televisão brasileira foi tão incisiva em sua aproximação com o cinema, seja na inter-relação de conteúdo, seja na massiva promoção de filmes. Assunto a ser discutido em pautas futuras, a relação TV/cinema brasileiro é objeto importante também do Cinema Falado (bate-papo anual dos redatores sobre o cinema brasileiro) que vai ao ar no mês que vem.

É isso. 2004 nos espera.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos Homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo);
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)