Contra-regra Retrospectiva 2003 Fim de ano, momento dos departamentos de telejornalismo de todo mundo brincarem de enciclopédia em intermináveis retrospectivas dos "fatos mais marcantes". Como essa é uma coluna sobre televisão (e não sobre fatos), me pareceu interessante lançar esse dispositivo de enumerações sobre alguns dos programas/passagens mais marcantes de 2003, seja por sua vivacidade estética, seja por seu impacto cultural no cotidiano televisivo brasileiro. Um breve recorte, olhadela transversal, por dentro do meio; fixando na TV aberta (inclusa a UHF, MTV) nosso foco de interesse. Para um universo tão avesso à memória (ao menos àquela que dure mais do que os oito meses de uma telenovela), nos parece um exercício interessante essa pequena lista dos 10 destaques televisivos de 2003. Vamos a primeira parte; os outros 5 destaques, vem na próxima semana. 1 – Gilberto Braga voltou – TV Globo Uma das coisas mais importantes acontecidas na televisão esse ano foi, sem dúvida a volta com carga total de Gilberto Braga ao horário nobre – os resultados estéticos e o peso de sua crítica (no sentido amplo, não da negatividade) do conceito de "celebridade" no Brasil hoje, faz de Celebridade um objeto de raro na televisão. Da escolha do elenco à direção de Dennis Carvalho, a telenovela leva os códigos do folhetim às últimas conseqüências, estabelecendo uma farsa de ironia inimitável, manipulando dispositivos narrativos para além dos vícios naturalistas. A montagem/narração, recheada de elipses e cortes bruscos, convida o espectador a uma relação de jogo frenético com a narrativa pouco comum num gênero que se acostumou a ser sinônimo de estética mastigada. Já bem comentada aqui na coluna, essa telenovela merece muito mais escrita do que esse pequeno parágrafo e muito mais atenção do que a crítica audiovisual brasileira costuma dar ao gênero. Vejamos como ela se sai nos seus próximos quatro meses no ar e se sobrevive à maratona cruel da repetição. 2 – O arraiá do Ratinho – SBT E por falar em repetição, está aí um programa que só ganha com ela e sabe disso. O arraial anárquico montado pela equipe do SBT para as peripécias de seu apresentador continuam superando seu próprio moralismo bronco e levando o programa a um tom circense único na televisão brasileira hoje. Temas como os testes de DNA, traição cinjugal, problemas sexuais, são tratados de forma tão burlesca que ultrapassam o utilitarismo barato ou a exploração sádica de João Kleber e Márcia Goldsmith. O programa monta um picadeiro de tal forma, e convida seus participantes "verídicos" a entrar no jogo, que o espetáculo deixa de lado seu lugar de banalização dos problemas cotidianos e se transforma numa paródia improvisada, imitação da vida, como num folguedo popular, numa quadrilha de São João, em que pai de noiva corre atrás de noivo fujão, marido corno persegue o Ricardão da vez, e tudo termina numa espécie de farra de passos marcados, em que o que importa não são os resultados práticos (como o cinismo de Márcia Goldsmith e seus "especialistas" de plantão querem vender), mas a encenação desses problemas como auto-crônica massificada. Uma paródia familiar da classe média empobrecida. Inimitável.
3 – A morte de Silvio Santos – SBT, CNT e RedeTV! (A Globo não – é claro...) Inimitável também é esse senhor. Genialidade em arte em arte está associada à capacidade de invenção de momentos únicos, irrepetíveis, perfeitos em sua internalidade estética e expressão. Na televisão, porém, essa possibilidade de criação de momentos únicos costuma ficar amenizada, rotinizada, deixando pouca margem para o excepcional, para o novo. Mas não para o senhor Silvio Santos. O homem responsável pelo antológico episódio final de Casa dos Artistas (2001), inventor de um dos tipos mais intrigantes da televisão brasileira em todos os tempos, deu, em 2003, mais uma prova de sua aptidão intransferível para a criação de farsas, de jogos televisivos. A entrevista, falsa (?), em que dizia que estaria morrendo e que teria vendido o SBT para o Boni (ex-chefão da TV Globo) entra para a antologia de anedotas do apresentador se juntando a outras peças geniais pregadas ao público. "No Domingo que vem, no Show do Milhão, não serei eu lá apresentando – será alguém muito parecido comigo, que terá a minha voz, e o meu rosto, mas não serei eu...", dizia Silvio numa gravação propagada pelos quatro cantos do mundo (mesmo). Não é difícil lembrar da figura de Andy Kaufman (imortalizado no belo filme de Milos Forman) ao ver tamanha habilidade para sobrepor camadas de significação e tirar do espectador (e da imprensa) o chão possível do fato jornalístico: Silvio Santos coloca o telejornalismo em curto-circuito em meros dez minutos de iluminação, fazendo ao mesmo tempo uma paródia do sensacionalismo (tão em voga) e uma rasteira da rede de informações asséptica que se tornou o sistema mundial de "agências de notícias" – (e ainda diz que foi sem querer...) A despeito das biografias exultantes que existem por aí, Silvio Santos merece um estudo que saiba dar a ele não apenas o lugar do "homem de sucesso" tão aclamado nos cursinhos de "marketing pessoal", mas do gênio audiovisual que ele é. Se alguém conhecer algum bom trabalho nesse sentido, por favor, me indique. 4 – Marcelo e a morte – RedeTV! E por falar em manipulação...Entre as inúmeras urgências e brasis que inundam os finais de tarde da televisão brasileira, uma figura se destaca pelo grau de cinismo com que constrói suas narrativas de sensações. Se o velho Datena é um mestre em construir suspense ao vivo, em transformar ações da polícia paulistana em filmes do Charles Bronson, é Marcelo Rezende quem pratica a mais asquerosa proposta de telejornalismo hoje no Brasil: seu Repórter Cidadão, de produção mais discreta do que o barulhento Brasil Urgente de Datena, é uma das máquinas discursivas mais pernósticas que já apareceram pelas telas de nosso país. A forma com que o ex-repórter da TV Globo induz seus convidados, a forma como ele se arvora do papel de defensor da sociedade, a forma como ele costura fragmentos de depoimentos (pré-gravados) para vender ao espectador as idéias de justiça pautadas por sua equipe, alcança níveis extraordinários de dirigismo do espectador. O caso do assassinato do casal de adolescentes no interior de São Paulo por um menor de idade foi o estopim para uma das séries de programas mais obscuros de 2003: em menos de 24 horas, Rezende tinha conseguido extrair da boca de gente de todo o país (que ia de Bispos ao cantor de música sertaneja Zezé de Carmago) de que a pena de morte era a única solução para o problema dos crimes hediondos. Sempre se dizendo estarrecido, Marcelo Rezende é capaz de espremer a família das vítimas até a última gota de suas forças, condensando no discurso do ao vivo, do imediato, a sua ferramenta para se chegar a uma suposta "verdade" da dor. Uma verdade onde a cidadania se descreve como prática da moral familiar e da punição exemplar. Um dos programas mais perigosos da televisão brasileira, não faz sequer jornalismo sensacionalista (coisa do Datena), mas uma espécie de sermão diário sobre a culpa e a punição (a semelhança com a retórica e o tom de voz dos programas evangélicos da Record não é coincidência), pouco se interessando pela descrição de "causos" policiais, mas na constituição do programa como canal através do qual a sociedade (representada por ele) faria suas reivindicações. Se Datena é um repórter esportivo que narra assaltos com a berraria com que se narra a final de um campeonato, Marcelo Rezende é mais malicioso: se faz de pastor, de homem comedido, de cidadão gentil que perderia a calma somente diante do mundo de perversidade e maldade que ele (como repórter-cidadão que é) teria obrigação de condenar. Bizarro. 5 – Regionalização de butiquim – TV Globo Falando em brasis, falando em cidadania...Que diabos foi esse Brasil Total, projeto da Globo vendido como tentativa de regionalização da produção da emissora? Regina Casé e Hermano Vianna podem ser bem intencionados e humorados, mas fazer pequenas equipes de jornalismo macaquearem o jornalismo da Globo e se espalhar por regiões diversas do país se pautando nos mesmos clichês (do popular, da arte e da música como "relevâncias culturais") que pautam o olhar populista da emissora carioca, por favor, nada mais é do que um embuste embrulhado prá presente. "Brasil Total", a começar pelo titulo, se mostrou como um equívoco que, se tem um futuro promissor pela frente, ainda não mostrou nem um pouco a que veio. Repetir o Programa Legal dos anos 90 em pequenas pílulas no Fantástico e com verniz de que "estamos damos voz ao povo" não pode ser a pretensão de um projeto anunciado com tantas bocas cheias de orgulho. E aí? Em que pé está essa regionalização? O Brasil Total vai ficar só nessa de ilustrar nossa gente faceira e cheia de modas como num almanaque museológico? (O ano que começa será crucial para que o projeto tente sair dessa profunda esterilidade). Felipe Bragança Textos da semanas
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