O CONSENSO / "CINEMA DE QUALIDADE" / FILMES DE CONCEITO
Luiz Carlos Oliveira Jr.: A gente podia começar
falando sobre a questão do bom gosto institucionalizado.
Essa lista de melhores filmes brasileiros da década
que foi publicada na Revista de Cinema [nº 98,
março/abril de 2010], pelo consensualismo que
ela demonstra, indicaria um pouco daquilo que se configurou
ao longo dessa década, e que já era uma
das minhas fontes de atrito no texto "A
publicidade venceu": a crítica se acomodou
com o cinema brasileiro, encontrou uma forma de convivência
pacífica, e isso se reflete numa certa previsibilidade
do gosto 1. Nesse
fechamento de ciclo, quando as pessoas param para compilar
a década, fazer suas listas e tal, a gente percebe
que é tudo muito previsível, não
tem muita margem de manobra.
Tatiana
Monassa:
E eu acho que isso vale também para a
realização.
Pra mim essa previsibilidade está no panorama de longas e
curtas que estão sendo realizados e exibidos. Por mais que
se
proclame que têm coisas novas acontecendo no cinema
brasileiro,
eu não as vejo, até porque o que anunciam como
coisas
novas, pra mim são uma grande mesmice. O novo
está
completamente previsível – e o que é
imprevisível, o que é uma surpresa,
são coisas
completamente esporádicas e, na maior parte das vezes, fora
do
contexto geral. Existem alguns óvnis, de pessoas que
estão
fazendo trabalhos interessantes, propondo alguma coisa que talvez se
possa chamar de novo; mas todo o novo que é
autocelebratório,
na verdade, é previsível. E mais grave do que ser
previsível, é ser no fundo
não-propositivo.
Luís
Alberto
Rocha Melo: Eu acho que tem que esmiuçar o que
é
essa previsibilidade. Eu não entendo bem qual a
referência
quando vocês dizem que a produção
é
previsível. E eu acho que mesmo que ela seja
previsível,
essa produção está muito
distribuída em
circuitos diferentes, ela nasce de pólos de
produção
diferentes, de situações de
produção
diferentes, então eu não entendo muito bem quando
vocês
dizem que há uma previsibilidade da
produção. Eu
entendo quando você, Júnior, afirma que tem uma
previsibilidade da crítica, isso eu entendo; da
produção,
não consigo entender. Não estou nem discordando,
nem
concordando – estou mais querendo entender esse argumento,
porque não sei o que vocês querem dizer com isso.
LCOJr:
Há
uma coisa aí quando a Tati fala em
“celebração”.
De uns dois anos pra cá, existe uma certa expectativa em
torno
de uma renovação, em torno de uma
geração
nova que está no curta-metragem ou começando a
passar
para o longa, e da qual se pode esperar uma
renovação
estética, uma nova proposta, um novo espírito,
uma nova
maneira de se fazer cinema. Já se criou um
rótulo, o do
Novíssimo Cinema Brasileiro, e ao criar esse slogan
você está garantindo para as pessoas que vem algo
de
novo. É nesse sentido que a Tati está querendo
dizer
que o cinema que vem sob essa lógica é, na
verdade, um
cinema previsível.
TM: O Luís Alberto colocou uma questão
importante: tentar definir que panorama é esse,
fazer uma cartografia. A produção explodiu
na última década, especialmente nos últimos
anos e no curta-metragem, por causa do digital e de
toda uma política (governamental, inclusive)
de incentivo à produção, assim
como de expansão de núcleos produtivos,
que passa também pela chamada inclusão
social. Portanto, além da produção
fruto de editais, temos o contingente crescente de quem
produz por conta própria, de forma caseira, e
temos as milhares de oficinas de vídeo... De
forma grosseira, estas seriam as principais linhas produtivas.
Só pra dar um exemplo da expansão incentivada
de que falei, a Rede Mais Cultura não foca apenas
no cineclubismo, eles também promovem oficinas.
E aqui no Rio, tem o caso do Nós do Morro, que
já se tornou uma escola. Então a famigerada
inclusão social está passando por aí.
Enfim, eu acredito que no fundo isso tudo contribui
para o aumento e consequente diversificação
da produção, mas não é exatamente
disso que a gente está falando aqui. No caso
específico desses filmes frutos de iniciativas
de inclusão social, acho que posso dizer que
eles pouco circulam, então seguem sendo uma produção
mais marginal mesmo. Mas, mesmo nesses casos, me impressiona
o fato de que, no fim das contas, eles não diferem
tanto assim, em tema e linguagem, de outros feitos em
outras circunstâncias.
LCOJr:
Tem um
link que a gente não pode perder de
vista, que é
esse entre o consensualismo da crítica e a
emergência de
um Novíssimo Cinema que parece responder à
expectativa
da crítica.
LARM:
O problema
começa aí, que tem a ver com a curadoria, que tem
a ver
com os festivais...
João
Gabriel
Paixão: Essa previsibilidade tem a ver com a coisa
do “bem
feito”. O edital, os filmes que vão passar para o
edital, a maneira como você vai produzir seu filme dentro do
edital, esse fomento da inclusão social, tudo passa por esse
“bom cinema”, o cinema bem realizado. Inclusive, o
próprio público responde: “ah, agora o
cinema
brasileiro é bem feito”. E a crítica
responde de
uma maneira complacente, e é “bem feito”
não
só porque a fotografia está bonita, mas pela
seriedade,
pela sensibilidade.
LCOJr:
Um cinema
para ser levado a sério. Um cinema de bom tom.
JGP:
Eu acho que
é só isso que a Tati estava querendo dizer com
previsibilidade.
LARM:
Mas aí
a gente tem que fazer também a cartografia do que
é
esse “bem feito”. Porque isso remete
àquela
discussão antiga da forma e conteúdo.
Às vezes,
quando a gente vê um filme se destacando, é porque
tem
um tema X, mas não necessariamente está em
questão
a forma do filme, naquela divisão absurda entre forma e
conteúdo. Às vezes me parece que a gente volta
hoje à
discussão de colocar de um lado a forma, de outro o
conteúdo.
JGP:
Eu não
separei as duas coisas.
LARM:
Não,
você não separou. Mas às vezes parece
que essas
discussões são pautadas por isso.
JGP:
Quais
discussões?
LARM:
Discussões
em torno dos filmes que estão sendo feitos, que
estão
aparecendo... Muitas vezes os
debates giram em
torno dos “temas” que os filmes apresentam e isso
parece
ter um peso muito maior do que as questões formais. Isso
é
comum, por exemplo, nessa produção que a gente
mencionou, dos “excluídos”. Ou
então em
filmes que abordam “grandes temas”, temas
biográficos
ou acontecimentos reais recentes. Às vezes é o
contrário, todo o peso é dado à forma
escolhida
pelo diretor, porque “não faria sentido”
se
prender ao que o filme conta, à
“história”
ou ao “tema” do filme. É o caso dessa
produção
mais recente, dos cineastas mais jovens, desse novíssimo
cinema brasileiro. Não é propriamente um problema
dos
filmes, isso que eu estou tentando colocar aqui, mas da
própria
crítica, de como a crítica hoje vem abordando
essas
diferentes produções. São facilidades
que a
crítica cria para si mesma: diante desse filme, é
melhor falar do “tema”; já desse outro,
não,
é melhor falar da “forma”. E
é melhor,
muitas vezes, porque é mais conveniente.
Então, mesmo que essa divisão arcaica, de
“forma”
e “conteúdo”, não seja
abertamente
assumida, fico achando que ela tem pautado a abordagem da
crítica
ao que se tem feito hoje no cinema.
LCOJr:
Quando
você cria um estereótipo do bom gosto, quando
você
cria aquilo que o pessoal dos Cahiers du Cinéma
detonou
nos anos 50 e chamou da “tradição de
qualidade”
do cinema francês, você automaticamente cria uma
hierarquia dos grandes e dos pequenos temas, das boas e das
más
mensagens. O que os Cahiers propuseram
lá atrás
é que não importa o tema, não existem
maus
temas, não existem grandes e pequenos assuntos, assunto
irrelevante ou assunto importante – o que existe é
a
mise en scène, o que importa
são os meios
empregados por um artista para expressar seja lá qual tema,
seja lá qual assunto. Então ali já se
tentou
abolir essa distinção entre forma e
conteúdo.
Quando o cinema brasileiro voltou, de meados dos anos 90 pra
cá,
quando o cinema brasileiro “retomou”, houve uma
renovação
tecnológica, um incremento tecnológico, uma
procura
cada vez maior por um aprimoramento técnico que é
inegável. Mas a retomada engendrou também um
retrocesso: separou-se novamente a forma do conteúdo,
já
que o bom acabamento técnico de um filme passou a ser
valorizado independentemente da forma como essa técnica
está
sendo empregada para exprimir um assunto. E restabeleceu-se a antiga
hierarquia entre bons e maus assuntos, no que os editais tiveram peso
enorme, já que o cara precisa elaborar um projeto que visa a
convencer um comitê selecionador de que seu filme
é
relevante, importante, aborda um tema que precisa ser destacado. A
questão é: você não pode
transformar esse
incremento tecnológico e essa seleção
dos temas
“corretos” num critério de valor dos
filmes; isso
não significa que os filmes melhoraram. Essa
situação
mostra também de que modo o cinema brasileiro recalcou
aquela
coisa do filme “mal-feito”, de um cinema
tecnicamente
precário, deficiente. Quando vem o cinema da retomada e se
torna um cinema novo rico e renovado tecnologicamente, ele
reintrojeta aquele recalque – a gente até falou
algo
assim no livro Cinema brasileiro 1995-2005: Ensaios sobre uma
década – e se torna aquela coisa de
querer fazer um
exibicionismo técnico, usar aquela fotografia que aprendeu
no
último workshop, aquele último filme que a Kodak
acabou
de lançar no mercado e tem uma cor bizarra, uma palheta de
cor
absolutamente absurda, todas essas peripécias –
é
esse recalque do mal-feito.
TM:
A ironia
disso é que parece que todo mundo esqueceu da
estética
da fome.
Calac
Nogueira:
Você pega a fotografia dos 10 filmes dessa lista e vai
lembrando: Cidade de Deus, O Invasor,
Cinema,
Aspirinas e Urubus, Lavoura Arcaica, Madame
Satã,
Amarelo Manga. Todos poderiam ter sido feitos pelo
Walter
Carvalho.
LCOJr:
Eu acho
Cinema, Aspirinas e Urubus um protótipo
do que é
esse cinema de qualidade.
TM:
Mas quando
ele surgiu, esse nicho não estava configurado.
LCOJr:
Surgiu
como ruptura. Assim como O Céu de Suely.
TM:
O Céu
de Suely não, eu diria Madame
Satã. O Céu
de Suely já veio num segundo momento.
LCOJr:
Mas
é engraçado: O
Céu de Suely
acabou sendo um filme muito mais influente para os anos seguintes do
que Madame Satã.
JGP:
O Céu
de Suely eu não acho, nunca achei um filme
diferente.
CN:
Por que
Cinema, Aspirinas e Urubus era um filme diferente?
TM:
No momento
de Cinema, Aspirinas e Urubus, ninguém
fazia filmes
daquela forma, centrados num drama de um personagem, num drama
íntimo, tentando articular isso com o espaço, mas
agora
virou padrão.
JGP:
O road
movie, a vagueza da narrativa...
LARM:
Eu queria
colocar uma questão: eu sei que a gente está
discutindo
o cinema da década, mas isso que o Júnior colocou
aí
desse recalque do mal-feito não é de agora, isso
vem
desde que o cinema brasileiro existe, isso surgiu junto com o cinema
brasileiro. Quando as pessoas falavam: “ah, parecem
até
as vistas internacionais”.
LCOJr:
Humberto
Mauro já é uma resposta a isso.
LARM:
Esse
recalque é uma característica do cinema
brasileiro.
TM:
Por mais que
essa questão sempre tenha existido, eu acho que durante
muito
tempo existiram os filmes mal-feitos, e hoje eles não
existem.
LARM:
Aí
é que a gente tem que ver. Primeiro porque a gente tem que
tentar definir o que seria esse “bem feito”. Porque
o
“bem feito” do Cinema, Aspirinas e Urubus
não
tem nada a ver com o “bem feito” do Cidade
de Deus.
Então não é possível que
existam esses
dois “bem feitos” dentro de um mesmo
critério. Se
há esses dois “bem feitos”, existe
aí uma
diversidade que a gente está reduzindo ao Bem Feito.
LCOJr:
O bom
acabamento técnico seria um primeiro elemento. Um outro
seria
o fato de que o filme fala a um público que está
disposto a entrar na sala de cinema e levar o filme a sério.
A
“entidade” cinema brasileiro da retomada se orgulha
muito
de fazer um cinema que não possui mais filmes que as pessoas
vão só pra ver mulher pelada e ouvir
palavrões.
O cinema brasileiro nunca foi tão conservador e
tão
orgulhoso de seu conservadorismo.
LARM:
Tem esse
lado pudico. Então a qualidade aí tem a ver com
conservadorismo.
LCOJr:
Aburguesamento.
TM:
O bom
acabamento técnico é um quesito que vale tanto
para o
Cidade de Deus, o tal “cinema
publicitário”,
que é uma coisa completamente estéril, quanto
para os
filmes em que isso não é o principal,
não é
o carro-chefe, mas é parte integrante, o acabamento
técnico
está lá. Não basta ter um bom assunto,
uma boa
maneira, um bom olhar, você também tem que ter um
bom
acabamento técnico, essas coisas vêm juntas.
Alice
Furtado:
Mas a gente também não pode demonizar o bom
acabamento
técnico.
TM:
A questão
é como isso está colocado no filme.
LARM:
Como isso
virou um senso comum.
LCOJr:
Fetiche,
virou fetiche.
LARM:
E uma
expectativa previsível na crítica e na
produção.
JGP:
E o último
filme do Mojica, por exemplo?
LARM:
Tem um
ótimo acabamento técnico.
TM:
É uma
questão do filme: ele não é sujo o
suficiente,
acho isso um problema. De alguma forma é como se
traísse
a própria ordem
do filme, pois
esse acabamento é algo que não é
necessário
ali.
LARM:
Mas isso é
uma questão de conservadorismo do filme? Ou é um
conservadorismo nosso, que estamos pedindo que o Mojica seja o mesmo
Mojica de 1964?
TM:
Não
acho que seja uma questão de conservadorismo em nenhum dos
dois aspectos. É uma questão de
adequação.
Volta a questão do consenso, de que não existe
outra
forma para se fazer um filme. O Mojica vai fazer um filme hoje dentro
dos conformes do que é fazer um filme hoje, naturalmente.
LARM:
Mas aí
a gente tem que colocar em pauta a presença do Paulo
Sacramento na história, que foi um dos caras que desenhou a
produção de Encarnação
do Demônio,
e que tem um filme muito “feio” no sentido de uma
qualidade da imagem, uma feiúra que é
esteticamente
significativa no filme, que é O Prisioneiro da
Grade de
Ferro.
TM:
Taí,
esse, pra mim, seria uma grande e honrosa exceção
nessa
história toda.
LCOJr:
Acho que
houve uma aposta de que o Mojica atingiria um público
considerável se ele fizesse um filme bem acabado, se ele
não
fizesse um filme sujão, se ele não usasse aquelas
gírias anacrônicas...
LARM:
Como
antigamente ele tinha que colocar mulher pelada... É uma
questão de contexto.
JGP: Não sei se é só uma questão
de conquistar
um público – que, no final das contas, ele nem
conquistou, o filme só teve uns 50 mil espectadores. Na
verdade, eu tenho a impressão de que todo o desenvolvimento
do
projeto pressupunha que viabilizar um filme do Mojica seria algo,
novamente, de “bom tom”, algo para
“enriquecer a
cultura brasileira”. Não realizar um filme do
Mojica,
rejeitá-lo, é ir contra uma
canonização
que o Mojica ganhou (e o cinema brasileiro atual não rejeita
cânones sob qualquer condição
– vide também
o caso Sganzerla após sua morte), é
não perceber
que ele é uma “lenda viva” da nossa
memória,
da história do cinema brasileiro, etc e tal. Por outro lado,
já que é de bom tom aceitar, tolerar um filme do
Mojica, isso só pode se dar desde que ele não
seja uma
ofensa ao cinema de hoje em dia, uma ofensa a pessoas que, mal ou
bem, o legitimaram e o colocaram nas páginas da nossa
história. Se o Mojica fizesse um filme tosco, seria obsceno,
e
seria também inevitável perceber que ele
está
“datado” (que pecado!), ou seja, que ele
não
responderia de nenhuma maneira à
produção atual.
AF:
Mas
adaptá-lo ao presente não foi suficiente para o
filme
ter público. Por outro lado, ele não é
um filme
conservador como a gente está falando aqui.
TM:
A questão
não é conservadorismo. E eu acho que a gente
está
apontando essas coisas não necessariamente para jogar pedra,
mas para tentar mapear.
LARM:
Eu mesmo
estou querendo entender, eu não tenho uma
posição
cristalizada em torno disso.
LCOJr:
Eu não
estou aqui para defender um cinema rústico, um cinema
rupestre, eu não acho que todos os bons cineastas
brasileiros
precisam ter a selvageria, no bom sentido, de um Candeias.
LARM:
Que é
um artista sofisticadíssimo.
LCOJr:
Sofisticadíssimo em termos estéticos, em todos os
termos, mas, para os padrões de bom gosto do cinema
brasileiro
de hoje, seriam filmes mal-feitos. Se os irmãos Gullane
fossem
produzir um filme do Candeias, ele ia ter que fazer um filme
limpinho. Não foram eles que produziram o Mojica? Mas a
questão é: se por um lado ninguém
está
aqui para exigir um cinema sub-tecnológico, por outro lado
–
e isso eu vejo principalmente no curta-metragem –
há um
fetichismo da técnica, como se garantir aquele bom
acabamento
fosse garantir um bom filme. Você vê uns filmes que
não
são nada, absolutamente nada, mas são de um
profissionalismo na sua feitura, na sua
realização,
como se fosse o portifólio do cara para já se
tornar um
profissional de cinema. E esse é o perfil das escolas de
cinema no Brasil hoje.
LARM:
Isso é
meio anos 80.
LCOJr:
É
bem anos 80, não só o “filmar
bonito”, mas
também uma característica que retornou e que era
muito
forte no curta-metragem da época, que era aquela coisa do
cara
falar “ó, eu sou cinéfilo,
viu?”. Se você
pegar os cinemas falados antigos da Contracampo, é
recorrente
uma anedota de que o cineasta brasileiro não vai ao cinema,
ou
só vai para ver filme de amigo e, assim, acaba desaprendendo
a
fazer cinema.
LARM:
Se seus
amigos fazem maus filmes...
TM:
Mas agora,
além dele ir ao cinema e estar por dentro do que rola no
cenário internacional, tem aquela coisa do auto-feedback.
Talvez, portanto, o cineasta brasileiro continue, essencialmente,
indo ao cinema ver os filmes dos amigos.
LCOJr:
A
retroalimentação: seu universo de
inspiração
é se ciclo, o seu metiê (eu quero voltar a essa
palavra
depois). Mas completando: eu diria que um dos traços
distintivos dessa nova geração que
está no
curta-metragem, começando a fazer longa, é que
ela vai
ao cinema.
LARM:
Ou baixa
muitos filmes.
LCOJr:
Ou baixa
muitos filmes, lê muitos livros, ouve muita
música, tem
muita referência cultural.
LARM: Muito maior do que a da geração
dos anos 80.
LCOJr: É o caso de Apenas o fim,
que não tinha como ser mais emblemático:
um filme dentro do pátio da faculdade, no qual
toda a relação do casal é mediada
pelos signos, pelas referências culturais (o João
Gabriel até falou disso na crítica).
Tudo que vem para criar uma brecha no huis clos
da ficção conjugal é para o rapaz
falar do bonequinho que ele coleciona, do desenho animado,
do filme que viu na pré-adolescência...
LARM:
O
Bandido da Luz Vermelha, quando ele surgiu, não
era isso?
LCOJr:
Não
sei. Era? Eu acho que não. Eu acho que no caso do Sganzerla,
do Tonacci – e aí você pode pensar
não só
em O Bandido da Luz Vermelha, mas no curta Documentário
–, o cinema que eles vêem é,
em poucas linhas,
um cinema que se propõe como uma ferramenta de
relação
com o mundo. Os caras estão vendo o filme como uma forma de
conhecimento do mundo. Não é uma forma de
você
necessariamente se cultivar.
TM:
Eu acho que
existia também uma questão de pegar
referências
que estavam no mundo, circulando ao redor, na rua. Não
referências que apontam diretamente para uma determinada
cultura específica, como no caso do Matheus Souza.
LARM:
Não,
mas quando os dois garotos lá [em Documentário]
estão falando que não agüentam mais
filme
neo-realista, ou filme preto-e-branco, isso aí é
uma
determinada cultura... E o Bandido
também. Quando ele
cita um plano de A Marca da Maldade, logo depois
corta para um
de O Cangaceiro, ele está lidando com
referências
que não necessariamente são populares.
LCOJr:
Mas é
um filme para implodir o bom gosto. É um filme para falar
que
a cultura cinematográfica é uma bobagem, para
falar
que, se você vir o cinema somente através da lente
do
bom gosto, sua cinefilia será uma bobagem. Tem que pegar o
cinema e estilhaçar.
LARM:
A
referência ao Orson Welles não é uma
referência
a uma bobagem. Pode ser uma referência bem humorada, mas ele
constrói cânones.
LCOJr:
A bobagem
que ele combatia era, por exemplo, a de quem defendia os
“cineastas
da alma” e desprezava os “cineastas do
corpo”, para
citar as duas categorias que o Sganzerla criou e sempre mencionava em
seus textos críticos. O cinema do corpo que ele defendia, e
que incluía Lang, Fuller, Hawks etc, era já uma
forma
de desmistificar a “essência” do cinema,
de dizer
que ela está inscrita na vulgaridade do corpo. Mas o humor
talvez seja o eixo central da coisa. Vigor e humor. Quando ele cita
Godard (Made in USA, Pierrot le fou),
o tom é
despojado.
LARM:
Eu acho
que os filmes hoje não se avacalham.
LCOJr:
Não
mesmo. Os filmes de hoje não têm humor nem
erotismo. Que
o diretor deixe clara sua referência cinéfila,
acho
normal. O problema é que você tem hoje uma coisa
que
tende ao solene...
LARM:
Aí
eu concordo totalmente.
LCOJr:
Uma
solenidade do tipo: “esse é um plano que dialoga
com
Tarkovski”. Ou então é uma coisa de ter
referências cinematográficas e
retrabalhá-las no
seu filme como uma forma de criar uma elevação,
uma
arte elevada. O Sganzerla não tem nada de arte elevada, pelo
contrário, ele é o cara que vai lá
rebaixar. É
todo um submundo da cultura urbana que entra em jogo.
LARM:
Essa
ausência de humor nas gerações novas...
LCOJr:
Ausência de humor e de modéstia. Um
crítico da
Positif, o Roger Tailleur, falou uma coisa bem
bacana nos anos
1960: “o humor também é uma forma de
modéstia”.
TM:
É a
questão do se levar a sério, é tudo
muito
solene, todo mundo se leva muito a sério o tempo inteiro.
Não
sei se cabe aqui, mas enfim... Na edição do FBCU
deste
ano passou um filme que já é um dos mais nocivos
da
última safra – apesar de ser totalmente inocente:
Projeto Silêncio [Bruno Caticha, 2010].
É um
filme com a nova cara da FAAP, que é agora o que a ECA era
–
ao passo que a ECA virou a FAAP. O filme é o seguinte:
é
um cara com a obsessão de captar o silêncio, e
tenta
captá-lo de dentro do seu quarto.
LARM:
Realmente
é muito aristocrático. Um filme dedicado a
Adorno.
[risos]
TM:
Ele isola o
quarto, mas sempre tem um elemento que está fazendo barulho.
Aí ele vai lá e desativa aquele elemento.
É a
lâmpada, é o relógio que
está fazendo
tique-taque, e no final das contas, quando parece que ele conseguiu
eliminar tudo, tem o coração dele. E
aí ele
coloca uma roupa para isolar o seu próprio corpo, para ele
poder gravar o silêncio.
LARM:
Isso é
um manifesto.
LCOJr:
Um
diagnóstico.
TM:
E aí
eu queria completar com o seguinte: a projeção
não
estava boa, a sala estava com problema de som, claro... E o que
aconteceu no debate subsequente? Ele foi a primeira pessoa a pedir a
palavra, e começou falando que estava muito chateado, que
ele
esperava passar o filme como ele foi concebido... E ficou um
tempão
bradando sobre como o filme tinha sido estragado pela
projeção
do festival universitário. Estava muito incomodado porque as
pessoas da sessão não viram o filme dele de
verdade,
afinal ele editou o som com tal e tal equipamento...
JGP:
Ele nem
falou que as pessoas não viram o filme direito, ele falou
que
as pessoas nem chegaram a ver o filme. Ninguém viu o filme.
LCOJr:
Ou seja,
o filme é escravo da sua preciosidade técnica.
Olha, eu
acho que um dos melhores filmes dessa década tem um som dos
piores captados, que é o Jean Charles
[Henrique
Goldman, 2009]. É um filme que pega um som na rua, estilo
documentário...
Nikola
Matevski:
A dublagem fica visível, inclusive.
LCOJr:
Fica
mesmo, e é ótimo que fique. O filme tem uma
força
enorme nesse personagem do Selton Mello – Selton Mello, esse
ator que ninguém agüenta mais ver (mas
aí é
que entra a individualidade dos filmes: o Júlio Bressane
também escalou o Selton Mello e realizou um filme, A
Erva
do Rato, que me fez esquecer que era com aquele mesmo ator
que eu
estava vendo todo ano). Jean Charles é
um bom filme. O
filme todo é centrado na esfera do trabalho. O cara
está
precisando ganhar a vida. E o som acompanha essa pegada, ele
também
parece estar disputando com a precariedade da existência.
Hoje
em dia, em filme brasileiro, o personagem está em plena
Avenida Brasil e o som direto parece que veio de um estúdio,
uma coisa perfeita, essa limpidez da captação...
É
como se o rumor do mundo não interessasse mais.
Você tem
essa esterilização da realidade.
TM:
Isso rima
com outra coisa recorrente no curta-metragem recente, que é
a
de filmar a cidade vazia. Não agüento mais. Se
alguém
precisa filmar o centro do Rio de Janeiro, vai filmar no domingo
cedo, 8 horas da manhã. Eu não consigo entender
isso –
aquela não é a cidade na sua forma viva, digamos
assim.
LARM:
A não
ser que ele queira fazer uma coisa fantasmagórica.
TM:
Mas o
problema é querer fazer uma coisa fantasmagórica.
Só
existe isso, entende?
LCOJr:
Não
é o Lili, a Estrela do Crime [Lui
Farias, 1989], onde
claramente se quis pegar o Rio de Janeiro e estilizá-lo,
torná-lo um cenário anacrônico, no qual
você
está vendo aquela cidade vazia que pode ser o Rio de Janeiro
dos anos 1930 ou de 2050. Não, nos filmes atuais,
é
para ser a cidade do Rio de Janeiro, ponto. Em tese, é a
cidade do Rio de Janeiro que você conhece no dia-a-dia. No
próprio Meu Nome Não é Johnny,
que está
longe de ser um filme dos piores, as cenas externas são
sempre
fechadas – aí você pode usar a desculpa
de que o
filme se passa nos anos 1980, o que acarreta uma questão de
produção, mas convenhamos que qualquer cineasta
minimamente criativo sabe muito bem como criar um espaço e
passar por cima desses problemas de anacronismo. A
solução
cênica encontrada foi muito pobre: se o cara vai filmar uma
cena na rua, fecha o quadro. E é um gênero
cinematográfico, o filme policial, que está muito
associado historicamente a essa coisa de você ver a rua, o
movimento, o caos dos tecidos urbanos.
LARM:
Eu me
lembro de uma das saídas da mostra Clássicos e
Raros –
vou até fazer esse link com a pauta –, quando a
gente
estava falando justamente disso. Como as pessoas filmavam a rua! E
filmar a rua não era uma coisa excepcional. Simplesmente os
personagens estavam na rua e andavam pela rua. Isso não
significava um evento extraordinário. A ida daquela
personagem
em Damas do Prazer [Antônio Meliande,
1978] que pega o
metrô e vai visitar o filho deficiente, aquilo é
uma
coisa que a gente não vê no cinema brasileiro
atual há
muito tempo. Porque ou você faz o Jogo
Subterrâneo
[Roberto Gervitz, 2005], ou você não filma no
metrô.
TM:
E eu acho
que se, daqui a 50 anos, as pessoas quiserem ver, numa
ficção,
como eram as cidades hoje no Brasil, elas não vão
poder. O aspecto “documental” inerente ao cinema
está
sendo sistematicamente sabotado.
LCOJr:
As
pessoas vão ver o retrato dos artistas e cineastas: eles
estavam trancados no quarto. Logo, não há as
ruas, há
imagens projetadas, uma abstração.
LARM:
Nesse
sentido, eu menciono um filme interessante e sintomático que
é
A Concepção, do Belmonte. Um
filme que se isola
completamente de qualquer relação com o exterior,
e
concentra toda a dramaturgia no apartamento. Se antes nós
tínhamos a favela, o sertão, você tem
agora o
apartamento como o espaço número um da
dramaturgia.
LCOJr:
E aí
entram os prolongamentos virtuais.
TM:
E o que eu
acho irônico é se falar tanto que o filme
é sobre
Brasília.
JGP:
Mas pode
ser um retrato de Brasília.
LARM:
É
exatamente isso que precisamos perceber, porque senão fica
aquela argumentação da polícia do
realismo. Eu
já ouvi pessoas discutindo isso, “ah, mas
não
aparece Brasília”.
TM:
Não é
questão de realismo, mas de que você
não vê
de fato Brasília, porque ele se recusa a filmá-la.
LARM:
Mas isso
eu acho que pode ser significativo do que é
Brasília
hoje. Eu não moro em Brasília, mas eu percebo que
as
pessoas estão muito em apartamentos hoje, e isso de alguma
forma pode ser representado.
AF:
É, eu
acho que isso é importante, porque a vida das pessoas
está
assim também.
LARM:
Talvez uma
forma de representar a rua seja não filmar a rua. Eu lembro
de
um filme do Luiz Rosemberg, que é o Crônica
de um
Industrial, em que ele filma as obras de metrô e
não
há um só operário. Num momento em que
você
tem o filme do Ruy Guerra, A Queda, e
vários filmes
operários, inclusive no ABC, ele vai lá e filma
uma
construção sem operários. Quer dizer,
naquele
momento, isso era ir contra uma determinada corrente, hoje
não.
NM:
A questão
é que num contexto isso é político e
crítico
e, em outro, isso é apolítico e
acrítico. O que
você tem hoje é que esse tipo de
manifestação
gera um bem estar.
LARM:
Mas não
o filme do Belmonte; o filme do Belmonte cria um mal estar.
JGP:
Apesar de achar que, em A
Concepção,
a ausência da rua seja pertinente com o que o Belmonte quer,
não acho que, de maneira geral, a gente tem que se limitar a
valorizar determinadas opções só pelo
contexto.
O contexto pode ser elucidativo para uma questão
historiográfica e tal, mas ele não
está nos
filmes. O filme do Belmonte pode ser bom ou ruim, mas nele o
enclausuramento nos apartamentos é, pelo menos, propositivo.
Tem muito filme aí que se filma em apartamento apenas por
filmar, apenas porque o cineasta não conhece qualquer coisa
do
mundo fora daquele ambiente. O “filme de
apartamento” é
um verdadeiro gênero do cinema universitário. E
não
só no cinema universitário – filmes
como Cão
Sem Dono e O
Amor Segundo B. Schianberg, do Beto
Brant, Nome
Próprio,
do Murilo Salles. De qualquer forma, tem uma coisa muito
sintomática,
que são essas dramaturgias do enclausuramento, de que A
Concepção certamente
faz parte, mas também Ensaio
Sobre a Cegueira,
Estômago,
O Cheiro do
Ralo,
Filmefobia,
os últimos filmes do Coutinho etc.
LCOJr:
Mas a
questão do filme do Belmonte não é ver
ou não
ver Brasília, porque a cidade é um conceito. Ele
pega
esse lado que se pode comparar com a história de
Brasília
– que nasce como um conceito, um plano, uma cidade inventada
–
e aí ele inventa sua imagem particular da cidade. Pra mim,
é
muito claro que não há o espaço de uma
geografia
concreta, uma geografia física. O que você tem ali
é
uma abstração.
LARM:
Mas a
gente não fica confortável com essa
abstração.
LCOJr:
Tudo bem,
mas eu acho que o principal a destacar aqui é a
questão
do conceito. Isso virou uma coisa muito constante, e podemos
extrapolar para uma questão que não é
só
do cinema brasileiro, é questão do cinema de
maneira
geral: o filme precisa ter um arcabouço conceitual.
Há
várias coisas que estão implicadas aí.
CN:
Edital...
LCOJr:
Passa
pelo fato de que tem que defender o filme num edital, tem que criar
uma formulação teórica. E passa pelo
fato de que
o caldo intelectual de onde as pessoas estão surgindo se
pauta
menos pela dramaturgia, pelas fontes literárias e
dramatúrgicas, do que por referências
filosóficas
ou ensaísticas. O arcabouço conceitual das obras
está
muito mais na fenomenologia, em algumas filosofias da moda, do que na
dramaturgia. É uma incapacidade total de se articular filmes
em cima da construção do personagem e da trama.
Uma das
coisas que nos motivou a antecipar essa conversa – que a
gente
só ia fazer no fim do ano – e juntá-la
com a
pauta dos Clássicos e Raros, é que a gente se
impressionou ao ver filmes que têm uma história,
um
personagem, um pragmatismo. O cara filma um plano para possibilitar,
viabilizar o plano seguinte. Não é um plano que
encerra
em si um conceito, e cuja lógica dentro do filme
é uma
amarração plástico-conceitual.
Não, o que
esses filmes nos mostraram diz respeito a uma dramaturgia.
LARM:
Aí
a gente está falando de um cinema
clássico-narrativo.
TM:
Não
necessariamente.
LARM:
Não
só, mas também, e não há
mal nenhum
nisso. Eu acho ruim essa expressão
“clássico-narrativo”,
estou usando aqui como uma facilidade... Nós sentimos hoje
uma
necessidade de uma amarração, uma necessidade
dessa
dramaturgia, que eu não vou aqui denominar.
LCOJr:
Existe
dramaturgia em Straub. Ele vai partir de Hölderlin, por
exemplo.
LARM:
Mas você
não vai ver [em Straub] determinadas
amarrações,
determinados planos pragmáticos dos quais a gente hoje
talvez
sinta falta. Eu vou mencionar um filme que eu vi recentemente e me
surpreendeu: O Magnata, com roteiro do
Chorão, direção
do Johnny Araújo que é um cara de videoclipe, e
com o
Paulo Vilhena que é um ator que eu sempre detestei. Olha,
achei o filme muito bom perto dos outros que eu estava vendo,
sobretudo porque o filme tem personagem – eu achei isso
incrível. O filme tem personagem muito mais do que muitos
filmes que a gente está vendo aí. O filme te
deixa
preocupado com o destino do personagem, preocupado com o que vai
acontecer. Você fica colado a isso, fica com uma certa agonia
do que vai acontecer com o personagem. Isso é uma coisa
extraordinária.
LCOJr:
Virou uma
coisa extraordinária o que era uma premissa
básica: se
interessar pelo filme.
LARM:
Depois as
relações entre os personagens têm
importância,
têm importância dramatúrgica.
Não é
uma coisa que tem importância porque eu quero que tenha, mas
porque entre um e outro existe uma relação,
estão
acontecendo coisas. E apesar de ser um filme todo estiloso, clipado,
que tem toda uma roupagem para vender, ainda assim é muito
melhor do que, por exemplo, A Mulher Invisível,
que eu
vi no mesmo dia. É muito melhor, muito mais eficiente, do
que
muitos filmes.
JGB:
Só
para não ficar como se fosse uma questão de
regressismo
à dramaturgia: o problema do conceito não
é ter
o conceito. O conceito de que o Júnior queria falar
é
um conceito sem diagnóstico, sem crise, um conceito que
é
só um conceito em si mesmo.
NM:
Um conceito
apolítico, acrítico.
TM:
Não é
um conceito que está respondendo a alguma coisa.
É como
se fosse um conceito criado em laboratório.
LCOJr:
Exatamente.
Criado in vitro.
LARM:
Conceito
asséptico.
LCOJr:
Os filmes
da mostra Clássicos e Raros chamaram a
atenção
da gente por conta disso. Você vê um personagem em Damas
do Prazer. A mulher briga com o cafetão porque o
cara não
está repassando a grana direito, e ela precisa pagar o
aluguel
no final do mês.
LARM:
É
simples!
LCOJr:
Quando
você consegue ver um filme brasileiro em que o personagem
precisa pagar o aluguel no final do mês e isso não
é,
assim, “um conceito”? Não é
porque “eu
quero trazer para o filme a questão do dinheiro”.
É
uma questão existencial.
JGP:
É
uma questão materialista.
LCOJr:
Materialista. Os filmes brasileiros ficaram...
LARM:
...
espiritualistas.
LCOJr:
Freud e
Marx desertaram o cinema. Não há mais o sexo, o
trabalho e as determinações materiais e
psíquicas
como as forças motrizes da existência. Eu estou
para
redigir um manifesto que vai se chamar “Freud, Marx e um
pouquinho de Griffith”. [risos]
TM:
Eu quero
voltar ao que o Luís Alberto tinha colocado no
início,
que é a questão da forma e do
conteúdo. Pra mim,
o conteúdo passou a ser um pouco o conceito, passou a ser a
forma. E o conteúdo deveria ser algo que você quer
expressar e aí não importa a forma: pode ser
moderna,
pode ser uma linguagem de choque, pode ser o que for, mas o
conteúdo
é o que você quer expressar pra além
disso, o que
determina como todo o resto irá se articular. É
um
sentido, um pensamento, enfim. O que se quer vender? Se quer vender o
conceito que se fez sobre determinada coisa, mostrar um
posicionamento, que seja, e não vender algo embalado numa
forma-conceito.
LCOJr:
Pra citar
uma dupla de cineastas de que a gente gosta – eu gosto dos
curtas –, que são o Marco Dutra e a Juliana Rojas:
o
último filme deles, As Sombras,
é um pouco isso.
É um filme cuja matéria é sua
própria
plasticidade, sua técnica. A razão de ser do
filme é
a maneira como aquela noite americana vai ser filmada, são
as
suas formas plásticas.
TM:
O curta
anterior deles não era assim. Um Ramo
é uma
mulher e o que ela está sentindo, fazendo, como ela reage...
LCOJr:
Um
Ramo é um filme de dramaturgia. E é um
filme que
termina com uma cena, no chuveiro, que remete claramente à
Dama na Água, do
Shyamalan. Sombras tem
umas cenas de noite, com a mulher se embrenhando na floresta, que
lembram A Vila. O filme é dedicado a
Walter Hugo
Khouri, àqueles dramas psicanalíticos do Khouri
dos
anos 70. E lembra Bergman, Gritos e Sussurros:
um zoom
que sai lentamente de dois rostos femininos em primeiríssimo
plano, o tique-taque do relógio, o clima pesado. Ou seja,
é
um cinema permeado de referências cinéfilas.
LARM:
Você
acha que esse filme representa uma tendência?
LCOJr:
Não
sei. Vou explicar rapidamente o filme e talvez aí me
faça
entender melhor. Tudo se passa numa casa no meio de um lugar
retirado, com duas mulheres e um homem, sendo que uma das mulheres
está passando por um tratamento psiquiátrico.
Essa
personagem é a mesma de Um Ramo. Dessa
vez não
nasce um pedaço de planta no seu corpo, mas ela se mistura
ao
mato e chega a acariciar uma árvore como se fosse um ente
querido. Ocorre um plano-seqüência no meio do filme
que
resume o que estou querendo dizer. É numa das escapadas
noturnas da personagem, quando ela é perseguida por
presenças
misteriosas que se mexem atrás dos arbustos. O plano
começa
como um plano de filme de suspense, uma câmera
instável,
quase persecutória, à espreita da personagem, no
meio
da floresta, de madrugada. De repente, o registro muda para a
câmera
subjetiva, quando entram os outros dois personagens e se aproximam
dela, que é a mesma atriz de Um Ramo, a
atriz-fetiche
deles [Helena Albergaria], e aí vira um psicodrama no
sentido
clássico, em que ela começa a ter um acting
out.
Tudo aflora naquele momento, mas o filme perde um pouco a
força.
Enquanto ele estava querendo flertar com o cinema de suspense,
enquanto ele estava pautado pelo efeito-cinema, estava funcionando
muito bem. No momento em que o filme precisou fazer essa
torção
interna e mudar para esse registro dramatúrgico em que a
personagem tem um acting-out, é
impressionante como ele
se fragiliza.
LARM:
E essa não
era a intenção?
LCOJr:
Não,
esse é o clímax, é o ápice
do filme, era
pra ser sólido. Enquanto eles estão querendo
trabalhar
os elementos plásticos do filme, eles são muito
competentes (os quadros em cinemascope e a fotografia em noite
americana das cenas externas são sem dúvida muito
bonitos, e a paisagem sonora é imersiva, incrementa o lado
atmosférico e sensorial do filme). No momento em que
precisaram fazer uma transição de um flerte com o
cinema de suspense para um conteúdo psicológico
forte,
o filme não se sustenta tão bem. Mas eu acho
ótimo
que o Dutra e a Rojas levem aquele plano-seqüência
ao
paroxismo, pois é sinal que eles querem desenvolver e
desafiar
a personagem, não querem se limitar a truques de dispositivo
ou exercícios de estilo.
Na
mesma sessão
em que vi As Sombras, vi um curta que foi muito
celebrado, O
Muro, do Tião. É um filme muito
reverenciado. Mas
eu acho que é o filme experimental mais careta que pude ver
nos últimos anos. Ele usa uma montagem de choque que
não
choca, que não provoca nenhum desarranjo
psicotrópico,
nenhuma excitação sensorial fora do comum. Eu
até
resisto em chamar de experimental. Não tem nada sendo
experimentado de fato. É tudo em prol da boa qualidade. Ele
está mais preocupado com o “filmar
bonito” que com
a experimentação propriamente dita. O que um
Peter
Tscherkassky ou um Brakhage fizeram é justamente o que
você
nunca vai ver num filme como Muro: raspar a
película,
sujar o negativo, riscar, intervir diretamente, levar o espectador ao
limite da percepção. Imagina, isso vai estragar
todo
aquele material caro comprado com o intuito de fazer imagens bonitas.
É o paradigma do sensível. É um filme
experimental sensível.
LARM:
Você
está falando da palavra mais ...
NM:
... xarope!
LARM:
... que
tem circulado no cinema nos últimos anos.
LCOJr:
É
a “sensibilidade”! Está todo mundo muito
sensível!
Todo mundo consegue ver os interstícios da realidade, esse
mundo proliferado em detalhes assignificantes, onde você
não
tem o núcleo duro do filme, não tem objetividade,
mas,
em contrapartida, tem afeto pelos personagens, tem uma
relação
afetiva com aquilo que filma. O grande tema dos filmes, cada vez
mais, é a sensibilidade de quem está filmando.
JBP:
O que não
deixa de ser um conceito.
LCOJr:
Em
matéria de experimentação, prefiro o Danças,
do Fernando Watanabe – que, aliás, é um
curta que
não faz a menor questão de se definir como
“experimental”. Mas tem um lance ali com a
montagem, com
o raccord,
que é da ordem do experimento. Ele inventa toda uma
lógica
própria de ligação entre planos
aparentemente
sem se filiar a nenhuma “escola” da montagem.
É
“cinema de invenção” mesmo.
Por falar
nisso, há uma cena no centro de São Paulo que
dialoga
visceralmente, verdadeiramente com o cinema marginal. Não
é
uma cena feita com signos que ele comprou na butique do cinema
marginal. É uma cena que simplesmente retoma aquela
idéia
da performance corporal avacalhadora, da
amplificação
caricatural do gesto, da presença visceral dos atores em
cena
etc. O lado melancólico do filme, encarnado no personagem do
soldado, não me agrada tanto. Mas todo o resto é
muito
bom, um dos melhores curtas que vi recentemente, ao lado do Nº
27 [Marcelo
Lordello, 2008]. Esse
também me pegou. É uma tragicomédia
muito bem
construída. O moleque se borra todo no banheiro da escola e
descobre que acabou o papel higiênico. Tem um belo plano
alongado ainda no início que lembra os “planos de
banheiro” do Tsai Ming-liang: plano geral, o garoto se mexe
lá
dentro da cabine, a gente percebe que ele está em
dificuldade,
mas não sabe exatamente por quê, ele sai, procura
papel
em tudo quanto é canto, não acha. São
os
pequenos acidentes de um corpo que não se entende com a
situação espacial em que ele se encontra. Mas meu
plano
predileto é outro: depois que o adolescente avisa ao
inspetor
que está com diarréia (“eu fui ao
banheiro e me
melei”, ele diz) e seu problema se torna público,
ele vê
bem à sua frente uma caixa cheia de papel-toalha.
Há um
plano-detalhe com o vento balançando levemente o
papel-toalha.
É a ironia trágica: quando ele descobre o que
poderia
ser a solução de seus problemas, a merda
já está
literalmente feita. Não curto o plano em câmera
lenta e
sem som, quando ele sai do banheiro, achincalhado pela turba que se
amontoou ali, acho uma opção facilitadora demais.
Queria realmente ver e ouvir aquele momento. Mas é um
problema
menor. Nas cenas seguintes, na sala de aula e na reunião com
os pais e a diretora da escola, os planos ficam fechados sobre o
rosto do garoto: o mundo faz uma pressão enorme sobre ele
naqueles planos. Um filme de mise
en
scène.
1. Eis a lista publicada na Revista de Cinema: 1) Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), 2) O Invasor (Beto Brant, 2001), 3) Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), 4) Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007), 5) Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), 6) Santiago (João Moreira Salles, 2007), 7) Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001), 8) Madame Satã (Karim Ainouz, 2002), 9) Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), 10) Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003).
Parte 2: Cinema
de metiê / Fantasmas e ausências
Parte 3: Cinema
de gênero? / Os meios de produção
/ O paraíso do autor
Parte 4: A
conciliação / O paradigma do afeto e da
inocência
Parte 5: Personagens
da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"
Parte 6: Serras
da Desordem e O
Signo do Caos: ruídos / Considerações
finais
Setembro de 2010
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