SERRAS DA DESORDEM E O SIGNO DO CAOS: RUÍDOS / CONSIDERAÇÕES FINAIS
LARM:
Eu acho
que a gente não pode deixar de falar sobre Serras
da
Desordem. O filme tem uma grandeza que extrapola o fato de
ser da
década; ele é importante para o cinema brasileiro
de um
modo geral, para a história do cinema brasileiro. A volta do
Andrea Tonacci ao longa em formato comercial é em si um
ruído
interessante. Serras da Desordem é
um acerto de contas com o próprio cinema brasileiro. Ele
trabalha dentro de uma temática totalmente tradicional:
oposição campo-cidade, o lugar do
índio na
sociedade etc e tal. Mas ele consegue, na verdade, comprometer o
cinema, pensar sobre o próprio ato de se fazer uma imagem, o
quanto isso é comprometedor: você está
se
responsabilizando e interferindo ao filmar. É muito
interessante relacionar esse filme com o do Valente, na medida em que
o Valente promove uma
coisa caleidoscópica que, no fundo, remete a ele mesmo,
porque
o caleidoscópio tem como centro aquele que vê. O
filme
do Tonacci não é um filme-painel: ele
é
centralizado num personagem, o índio Carapiru, mas
não
segue o ponto de vista do personagem. Isso é muito
interessante até pela trajetória do Tonacci, que
é
alguém que conviveu com os índios e procurou
levar ao
cinema o ponto de vista dos índios, mas que nesse filme
rompe
com isso. É estranho, mas eu faço uma
relação
desse filme com o próprio Coutinho. A
operação
do Coutinho é superestimada porque ele virou o
documentarista,
mas a operação
do Tonacci é comparável à do Coutinho,
talvez
até mais complexa. E os dois partem do mesmo ponto de vista:
romper com a própria cristalização da
linguagem.
Pra se ver o Serras da Desordem,
tinha que se ver o Conversas no
Maranhão [1979],
que é um filme que tenta levar pro cinema o tempo dos
índios,
a fala dos índios. Você como espectador
é
convidado a viver ali como um índio, ou pelo menos tentar
conviver com aquele tempo, aquela duração. Eu
diria que
o Conversas no Maranhão está
mais antenado hoje em dia com a proposta desse cinema contemplativo,
desse cinema asiático que está em moda, esse
cinema que
capta o real, do que o Serras da Desordem.
Ironicamente, o Serras
é um filme que trabalha muito mais uma linguagem voltada pra
construção, pro artifício,
não pra
realidade imanente, captável, mas pra realidade que
é
forçosamente construída e só existe
porque é
construída por um autor, por um realizador. É um
filme
mais contracorrente ainda. Ele desconstrói uma certa
relação
que o Tonacci tinha no Conversas no
Maranhão com
esse mesmo tema, com essa mesma imagem, que
agora já é outra. Serras
da Desordem investe na montagem, que é a ovelha negra do cinema atual.
Todo mundo hoje em dia segue de forma cega e redutora o Bazin:
“montagem proibida”.
LCOJr: Eu diria que existe uma figura de estilo de montagem dominante hoje,
que são as “desmontagens afetivas”. A
montagem, em
última instância, implica o quê? Corte,
conflito,
ruptura – as coisas precisam mudar em algum momento,
não
se pode viver a continuidade eternamente. O modelo de montagem mais
“em fase” com o mundo atual, entretanto,
é a
justaposição de blocos de
sensação –
as coisas não mudam, apenas variam em cima de si mesmas.
LARM: São gradações.
LCOJr: É
uma montagem em degradê; ton
sur ton.
[risos]
LARM: O
Tonacci está indo muito na contracorrente, de uma maneira
que
as pessoas não perceberam com a devida intensidade, porque
também não conhecem a obra do Tonacci anterior,
ou
tinham visto apenas o Bang
Bang,
que não é um filme que dialoga propriamente com o
Serras (o Conversas no
Maranhão dialoga muito mais). Essa é uma das razões por
que eu
acho Serras um
filme extraordinário, e que vai absolutamente na
contramão.
LCOJr:
Serras
da Desordem
tem
uma coisa em comum com O
Signo do Caos:
dentro do panorama do cinema que se fez nos últimos dez,
talvez quinze anos, esses filmes causam um ruído,
não
se encaixam, não se acomodam ali, não cabem
– não
vestem bem nesse cenário. Nesse aspecto, eles dois foram
únicos. Carlão, Bressane, Bianchi, mal ou bem,
nem que
seja no nível da textura, dos materiais utilizados para
conceber seus filmes, partilham o mesmo “retrato do
tempo”
visto nos outros filmes dos outros diretores.
AF: Cleópatra nem tanto.
LCOJr: Mas
tem lá a fotografia do Walter Carvalho, tem lá um
desenho de produção que não difere
tanto dos
demais. A palheta de cor não causa uma grande ruptura em
relação ao restante do que está sendo
feito. O
próprio A
Erva do Rato,
que é um filme muito mais escuro do que costumam ser os
filmes
brasileiros, e com uma decupagem absolutamente diferente de tudo que
você vê ao redor, mesmo assim é um filme
que não
destoa tanto do espírito do tempo em que ele é
feito.
LARM: Cleópatra eu acho que destoa, tem outra palheta de cor.
LCOJr: Confesso
que não me causou tanto estranhamento. Já
se forem mostrar Serras
da Desordem e O Signo do Caos pra um historiador do futuro que não souber suas datas, ele
não vai chutar anos 2000. Tem uma diferença de
textura,
de materiais, aquilo foi fabricado com outra matéria.
É
uma ruptura nesse plano radical. Serras
da Desordem é outra coisa, é até meio misterioso.
Ele
esculpiu aquele filme num mármore que ninguém
estava
usando nessa década.
LARM: Mas
é o quê? É a montagem, o olhar?
LCOJr: É
tudo. No caso do Sganzerla, ele fez O
Signo do Caos no
mesmo 35mm que muitos outros usaram, mas ele esgarçou aquele
preto-e-branco de um jeito único e impartilhável.
No
Tonacci, você pode argumentar que ele começou a
fazer o
filme com uma câmera de vídeo, mudou muito de
suporte,
isso pode ter ajudado com o estranhamento e tal. Mas esse argumento
dos suportes não é suficiente, é
superficial pra
tentar dar conta da maneira tão violenta como esses filmes
destoam do resto.
LARM: É
uma questão também de confiança no que
o cara
pode ousar em termos de narrativa.
LCOJr: São
filmes de dois caras que claramente não estavam participando
do processo do cinema brasileiro naquele momento.
LARM: Como
nunca estiveram, e nesse sentido eles são totalmente
coerentes.
LCOJr: Por
isso que eu digo: quando se revitaliza a obra do Sganzerla,
é
importante, é fundamental, tem que fazer isso mesmo, mas
deixando claro que não é pra criar a
ilusão de
que aquele cara maldito na verdade está falando com a gente
numa boa, a gente pode se reconciliar com ele. É a mesma
coisa
com a memória do cinema do Pialat na França:
não
tem conciliação não, o cara morreu com
os punhos
cerrados, e você precisa manter isso vivo na obra dele, do
contrário o sentido se perde.
LARM: É
uma questão de respeito.
LCOJr: Você
vai reapropriar O
Bandido da Luz Vermelha – que eu acho que é o filme do Sganzerla que mais sofre na
mão
das novas gerações –, então
precisa
entender o que aquele filme queria dizer profundamente, como postura
diante do mundo, não adianta ficar só na
brincadeira de
cinéfilo. A
Mulher de Todos também. Daqui a pouco, a obra do Sganzerla entra numa
instalação e fica valendo como imagens e sons...
AF: A Ângela Carne e Osso [personagem de Helena Ignez em A
Mulher de Todos]
já virou um aplicativo do FaceBook...
LARM: Outro
dia eu estava comentando: a gente saiu da Mulher
de Todos e foi parar na Mulher
Invisível.
Uma ausência total de personagem! [risos]
LCOJr: Você
sai da carne e osso e vai pra um fantasma. E é a Luana
Piovani, que tinha tudo pra ser um escândalo, uma
presença
carnal, mas está totalmente deserotizada. A cena dela de
calcinha e sutiã é tão picante quanto
um
comercial de lingerie.
LM: É
um filme que a classe média vai ver: é preciso
ter
respeito. [risos]
LCOJr: Eles encontraram a maneira de despir uma
mulher na frente desse público do cinema brasileiro
– que se dá ao respeito – sem constrangê-lo.
Ela é um fantasma e sua relação
com o cara é totalmente destituída de
tensão sexual. Isso pra não citar a cena
de sexo mais ridícula da década que é
aquela do filme do Walter Carvalho, Budapeste:
a cena da Giovanna Antonelli em cima do Leonardo Medeiros,
com aquela luz azul, uma musiquinha brega... ela está
praticamente em cima do joelho dele, é a coisa
mais fake do mundo. A cena é absolutamente
ridícula.
JGP: Houve um momento em que eu ia falar do Filmefobia
[Kiko
Goifman, 2008]
LARM: Que
eu acho um filme interessante: um documentário sobre o
Jean-Claude Bernardet.
LCOJr: Eu
acho a presença do Jean-Claude, escalado pra ser o
acadêmico
de plantão e falar do conceito...
LARM: ...reveladora!
LCOJr: É um
filme-conceito, né?
LARM: Ele
é o
filme-conceito.
LCOJr: Dispositivo,
conceito... Há
quatro ou cinco anos, a gente estava aqui elogiando O
Prisioneiro da Grade de Ferro porque
era um filme que sabia muito bem como construir o seu conceito e o
seu dispositivo. É engraçado que, com o passar do
tempo, a gente tenha de certa forma vilanizado isso, quando percebeu
que certos filmes se esvaziavam a partir do dispositivo e do
conceito.
JGP: Mas sobre o Filmefobia:
não há medo nenhum no filme.
LARM: A
grande fobia do filme é a fobia à imagem.
LCOJr: O
filme não tem a imagem-fobia, pra fazer aí um
hífen
deleuziano. A imagem-fobia não aparece nunca no filme.
LARM: Mas
a fobia do filme é construir essa imagem.
LCOJr: Aí
vira masturbação conceitual.
LARM: Mas
o filme é muito significativo. Eu não sei nem se
eu
gosto dele ou não.
LCOJr: Eu não sou contra o conceito, evidentemente – mas
ele
precisa vir preenchido por uma experiência de verdade (como
em
Philippe Grandrieux, Gus Van Sant). A experiência de Filmefobia é de laboratório.
LARM: A
gente está identificando de que modo os filtros
são
mais prejudiciais do que qualquer outra coisa: você tem o
conceito, você tem o afeto...
LCOJr: As ciências sociais e humanas ajudando a construir um
estofo...
LARM: É um cinema acadêmico-autoral.
LCOJr: Quando eu fiz um elogio da crueldade no texto de Damas
do Prazer,
não falei uma coisa que, no entanto, é importante
colocar agora: crueldade tem a mesma origem etimológica de
crueza. Quando você vê crueldade em Mizoguchi, em
Satyajit Ray, é porque eles conseguem um acesso a um
determinado momento do mundo em que aquilo está sendo
mostrado
sem filtro; é uma coisa crua, sem os preparos a que estamos
acostumados. Você toma contato com uma dimensão
tão
concreta da vida que chega a ser cruel.
LARM: Bazin faz esse elogio, de um cinema da crueldade...
LCOJr: Bazin
defendia um cinema que não mediasse as coisas
senão
pelo olhar mecânico da câmera, esse olhar que nada
sabe
acrescentar à realidade bruta. Ele queria a crueza, logo a
crueldade. Não é à toa que gostava
tanto de Jean
Renoir.
JGP: Teoricamente, o conceito do filme do Kiko Goifman poderia permitir
encontrar essa nudez que tem a ver com o medo. E o que eu acho que me
fascina nesse filme é exatamente o fato de que eu
não
vi nada. Surgem pessoas com os maiores medos, mas tudo parece
ficção-científica, até por
aqueles
cenários, aquelas instalações,
maquinarias...
LARM: Mais
uma vez o dispositivo do reality
show.
Uma câmera-aquário.
LCOJr: Parece um pouco o lado do mal dessas gincanas do Big
Brother.
Uma gincana que trabalha com o lado escuro do sentimento. Tem uma
cena interessante no filme, quando o Mojica está comentando
as
imagens. Mas é tudo mediado, o próprio Mojica
é
uma mediação, o filme perde os momentos e precisa
do
Mojica pra comentar.
LARM: Linkando
mais uma vez com o “Ninfas do Prazer”...
LCOJr: Ninfas
Diabólicas!
Você criou um híbrido. Mas a gente podia fazer
esse
filme aí, “Ninfas do Prazer”...
LARM: Ou
“Damas Diabólicas”, que hoje em dia
seria um casal
jogando damas. [risos]
TM: O casal estaria mexendo no destino da pessoas.
LARM: A
sinopse seria: “Damas. Destino. Pôr do
sol.”
[risos]
LCOJr: “Acordar e sentir o mundo.” [mais risos]
LARM: Ou então aquelas metáforas que citam um verso que
ninguém consegue entender: “na medida do caos, eu
renasço”. [mais e mais risos]
LCOJr: Pior que você vê muito isso em sinopse de curta...
JGP: É engraçado esse fenômeno da sinopse...
LCOJr: É
uma relação publicitária com o cinema,
porque
você cria um slogan. Antes de ver o filme, você
já
sabe qual o slogan que os “conceptores” do filme
lhe
deram.
LARM: Um dos caras que primeiro fez isso, até onde me lembro, foi
o
Paulo Sacramento, no filme Juvenília,
cuja sinopse é: “Uau”. [risos]
LCOJr: Mas
aí tem uma coisa escrachada. Essas sinopses de que a gente
está falando se levam a sério! É
algo como: “esse filme está na esfera do
indefinível”.
LARM: Que sinopse maravilhosa: “na esfera do
indefinível”.
JGP: Fazer uma sinopse falando “a história do meu filme
é
isso, acontece isso e aquilo” virou obsceno.
LCOJr: É
obsceno, é banal. É como se você
informasse pro
espectador: “meu filme é uma merda qualquer,
acontecem
coisas, acontecem fatos”. É o avesso
cúmplice
daquele outro fenômeno: depois que o filme passa e
você
vê aquela coisa completamente abstrata, aqueles
diálogos
com coisas totalmente ininteligíveis, aí no
debate o
diretor vem e fala: “Não, isso que vocês
acabaram
de ver é uma
ficção-científica, é
um filme de aventura. Eu quis fazer um filme de
ação,
porque estava vendo muito capa-e-espada do Jacques Tourneur, do
Michael Curtiz, muito faroeste do Delmer Daves”.
LARM: Eu identifico na nossa geração – quer
dizer,
estou me colocando aqui de contrabando – uma
distância
assustadora do cinema artesanal. Eu agora estou escrevendo um texto
sobre o Roberto Farias para a Filme
Cultura.
Ele fez 14 filmes como assistente de direção do
Watson
Macedo, do J.B. Tanko, do José Carlos Burle. Depois ele fez
filmes como Rico
Ri à Toa
[1957] e No Mundo
da Lua [1958],
que eram duas chanchadas que tiveram um retorno de público e
isso o credenciou a fazer o Cidade
Ameaçada [1960],
que não foi bem de público, mas o credenciou
junto à
crítica. Depois, quando ele fez Um
Candango na Belacap [1961], a crítica caiu de pau, mas foi um grande sucesso de
bilheteria. Ao mesmo tempo, ele foi o cara que fez Selva
Trágica [1963]...
A gente está falando de uma série de
longas-metragens
que o cara fez, e de uma possibilidade que ele teve – tudo
bem,
é o Roberto Farias, mas outros também tiveram na
mesma
época – de experimentar mesmo, de fato, de errar,
de
fazer um filme horrível ou um filme muito bom, enfim, uma
existência cinematográfica. Vários
realizadores
estrearam da retomada pra cá, mas eu tenho a
impressão
de que uma real existência cinematográfica
até
hoje foi pra pouquíssimos. De resto, a gente vê um
salve-se quem puder.
LCOJr: E é por isso que você vê a tentativa da
afirmação
de um metiê. De certo modo, as pessoas precisam manter essa
idéia de que o cinema brasileiro está
aí, está
acontecendo, está rendendo bons frutos. Porque se
você
der mole, todo mundo esquece. Não existe na
população
uma necessidade de
cinema brasileiro, no sentido de: “eu preciso ter filmes
brasileiros aqui, porque isso é uma forma de lazer, de
conhecimento...”. Essa necessidade não conseguiu
ser
criada. A estrutura impede que ela seja criada, inclusive.
Aí
as pessoas do metiê têm de transformar o cinema num
evento, promovê-lo, criar um slogan, manter a cena acesa.
NM: Na
falta de filmes conjuntores, você tem o grupo, a panela.
LCOJr: Você tem o momento, a “cena”.
Parte 1: O
consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito
Parte 2: Cinema
de metiê / Fantasmas e ausências
Parte 3: Cinema
de gênero? / Os meios de produção
/ O paraíso do autor
Parte 4: A
conciliação / O paradigma do afeto e da
inocência / Alternativas de mercado
Parte 5: Personagens
da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"
Setembro de 2010
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