PERSONAGENS DA ERA LULA /
"É TUDO ABSTRATO HOJE EM DIA"
LARM: Uma coisa que eu acho muito interessante –
linkando com o papo sobre a fantasmagoria –
é uma determinada recorrência de filmes
que estão aí hoje em dia trabalhando com
esses personagens fantasmas, essa dramaturgia construída
em torno de personagens fantasmagóricos, mas
de um outro ponto de vista: é desde A Mulher
Invisível até Chico Xavier.
Uma certa fantasmagoria, uma cera imaterialidade. O
que eu acho interessante – só colocando
uma questão em relação ao Chico
Xavier – é que o filme me pareceu altamente
materialista, altamente concreto.
NM: Um cinema da matéria.
LARM: Não, não... É que,
apesar do Chico Xavier falar do espiritismo, não
existe ali uma tentativa de criar personagens fantasmagóricos.
O que existe ali é uma coisa muito real: é
um drama de um cara que tem uma característica
que é ver espíritos, ele precisa se adaptar
a essa situação, que é uma situação
que diferencia ele do resto, e o drama é isso,
é o drama de um cara que tem esse destino, não
pediu para ter esse destino, mas ele vai ter que assumir
esse destino. Esse drama, no fundo, é um drama
que está sendo recorrente nos últimos
tempos, que é o drama do personagem que não
pediu para nascer, mas nasceu. E nesse sentido o Chico
Xavier é como o Lula, o Filho do Brasil.
Os dois têm um destino, os dois nasceram para
alguma coisa, não queriam aquilo – ou pelo
menos não faziam questão de ter aquilo...
LCOJr: E foram cooptados pela vida.
LARM: E foram cooptados pela vida. É o
drama do personagem passivo, na verdade.
LCOJr: Dois filhos de Francisco também
é assim.
LARM: Exato! Então existe uma série
de filmes, agora não estão vindo outros
na cabeça, mas eu tenho quase toda certeza de
que existem outros filmes que trabalham com esse personagem
que não queria ser o que ele é, mas acaba
sendo e na verdade isso se reverte adiante como uma
glória.
LCOJr: Existe um roteiro do destino...
LARM: Um roteiro do destino, eles foram cooptados
pela vida, e a vida reserva a eles um lugar de honra.
Isso é o Lula, é o Chico Xavier, isso
é Dois filhos de Francisco.
AF: Isso é a nossa cultura sebastianista.
LARM: E há também isso no documentário.
É o Loki... Há vários nomes
e vultos da arte e da política brasileira que
chegaram lá, ou que acabaram indo para
aquele ponto.
LCOJr: Um culto à personalidade, de alguma
forma?
LARM: Mas ambíguo, porque é uma
personalidade que na verdade não queria ser essa
personalidade. Ela é passiva.
LCOJr: Algo como: até o herói do
Brasil é por acidente?
LARM: Não. É o Brasil que está
predestinado a dar certo. É um cinema altamente
positivo.
LCOJr: Positivista, até.
LARM: Espírito positivista. Porque o Brasil
nunca foi tão espiritualizado no cinema brasileiro
quanto agora, em todos os sentidos, isso é no
documentário, isso é na ficção.
O grande personagem épico hoje em dia é
o personagem que não queria estar, mas está
na situação simplesmente porque se tocou
que o Brasil é maior do que ele.
LCOJr: É como se o Brasil tivesse se reconciliado
com aquele horizonte grandioso para o qual ele estava
destinado, e no entanto do qual a História o
havia afastado durante muito tempo. É como se
ele retomasse um fio da meada do progresso, do futuro,
da predestinação.
LARM: O que é muito diferente quando você,
por exemplo, vê O Príncipe ou mesmo
Deus é Brasileiro, que eu acho que é
o filme da era Fernando Henrique Cardoso, é a
biografia dele. Mas o Deus brasileiro é o quê?
“Eu estou de saco cheio e preciso de um substituto.
A desgraça é que não há
quem me substituta”. De qualquer maneira, um personagem
como Deus é um personagem ativo, afinal de contas
ele criou o mundo, ele fez alguma coisa. Mas esses personagens
– o Lula, o Chico Xavier, o Luciano e o Zezé,
quer dizer, os personagens da era Lula – são
passivos. São personagens que foram alçados
pela História ao que eles são. É
um tipo de leitura que não tem a ver com a esquerda
dos anos 60.
LCOJr: É verdade. Podemos incluir também
o Matias do Tropa de Elite. Ele é esse
personagem passivo, que a circunstância coloca
num lugar que ele acabará ocupando.
LARM: “Eu não queria estar ali,
mas eu estou, acabei ali.” Um personagem como
O Invasor é um personagem completamente
diferente disso, ele vai para outro lado; no caso de
O Invasor, o personagem do Paulo Miklos, o Anísio,
se mete em ambientes aos quais não foi chamado,
se posiciona, atropela os outros, se coloca e ocupa
um lugar. Não é um personagem passivo.
Há outros personagens assim também, não
sei, não estou me lembrando, mas que enfim, não
têm essa linha da passividade, do estou-aqui-porque-fui-predestinado,
sou uma vítima da circunstância. Mas, por
exemplo, um filme como Simonal – Ninguém
Sabe o Duro que Eu Dei: um cara que é predestinado
para o sucesso, mas aí a História o condenou
porque ele não cabia naquele momento da maneira
como ele era.
LCOJr: Volta a um assunto que a gente já
abordou aqui. Numa década que começou
sob a égide da conciliação, é
interessante mapear uma galeria dos não-reconciliados.
LARM: Muitas vezes esses personagens não-reconciliados
são tratados de formas reconciliadoras pelos
cineastas, pelo próprio fato de ser uma homenagem.
LCOJr: No documentário tem muito isso.
O personagem que sofreu com a história do país,
ou que não foi tão reconhecido da forma
como merecia, ou um personagem que foi taxado de louco
como o Arnaldo Batista, agora você presta homenagem
a ele.
LARM: É o momento do reconhecimento.
JGP: Ele é o “loki” –
“tudo bem, sabe?”.
LCOJr: É o “loki”, mas a loucura
é potência. Você positiva isso pelo
viés da potência artística. Mas
tem uma perversão terrível nisso, porque
não interessa se você está reconhecendo
ele como artista ou não – o cara já
se ferrou muito por conta de pessoas como as que agora
o estão homenageando...
LARM: Nesse sentido, quando se homenageia o Sganzerla
hoje, é um pouco isso.
LCOJr: Eu também acho. Você mata
o cara, asfixia o cara, e aí quando ele morre,
você fala “ah, ele foi um grande”...
Isso é uma lógica perversa da cultura.
Esse negócio de você pegar o cara que é
maldito e dizer “não, tudo bem, agora a
gente sabe que ele é gênio”.
LARM: Eu acho que a obra do Sganzerla tem mais
é que ser difundida mesmo, mas a questão
não é o Sganzerla ou outro, a questão
é o sintoma que está regendo esse tipo
de coisa e que pode ser com qualquer um: foi com o Glauber,
o Sganzerla, o Simonal. Eu li uma pichação
em Curitiba sensacional: “as idéias precisam
voltar a ser perigosas”. Eu achei isso revelador
– as idéias hoje em dia são totalmente
inofensivas.
LCOJr: Eu lembro que no Clássicos e Raros,
antes de começar a mostra, eu peguei o folder
e li todas as sinopses. Havia uma assim: homem se torna
amante de sua madrasta, eles assaltam um banco, o assalto
dá errado...
LARM: Os Desclassificados, Clery Cunha.
LCOJr: Aí você constata: isso aqui
está correndo o risco da ficção.
É um filme que está correndo o risco de
contar uma história.
LARM: O problema é que hoje em dia não
se corre o risco nem do documentário, quanto
mais da ficção.
LCOJr: Você lê as sinopses dos filmes
[de hoje] e é assim: “Um lugar. Uma tarde.
Uma conversa ao crepúsculo”. Os diálogos
também são coisas completamente abstratas.
No curta Areia, do Caetano Gotardo, tem aquele
casal na beira da praia, aí eles falam: “Seu
nome é fulano: dá pra comer, mastigar
esse nome. Seu nome é fulana: dá pra vestir,
usar como uma roupa”. É o afeto em estado
puro. É o cinema do carinho.
JGP: Mas é como se ele pudesse tocar mesmo
o afeto, como se o afeto fosse algo concreto –
ao invés de vago e disperso como na maioria dos
outros “filmes do afeto” já mencionados
aqui.
LCOJr: Só acho impressionante como não
há erotismo nenhum. E não interessa se
são fantasmas: são antes um homem e uma
mulher numa praia deserta! Acho incrível que
o contato sexual esteja completamente ausente desse
filme.
JGP: Mas eu acho que esse filme não se propõe
a isso. É um filme abstrato.
LCOJr: É tudo abstrato hoje em dia. Eu
acho até que o Areia tem coisas bonitas.
Mas esse diálogo que mencionei, assim como aquela
fotografia de estúdio em plena praia, aquela
luz de publicidade, isso me desagrada – embora
conceitualmente você possa justificar essa escolha
fotográfica: o filme é todo feito em externa,
mas é filmado de um jeito que pareça interna,
porque na verdade é o espaço abstrato,
paisagem interior, é o espelho da interioridade.
LARM: O cinema brasileiro vai mudar quando os
editais pedirem: “conte a história do seu
filme”, “descreva a trajetória do
personagem do seu filme, com começo, meio e fim...
E não esqueça das tensões que existem
entre os personagens”. “Aponte clímax
e desenlace do seu argumento.”
NM: Isso seria uma política cultural.
LCOJr: O problema dos filmes-de-conceito é
o seguinte: tudo bem, colocou a dramaturgia de lado,
beleza, vamos ver o que o cara vai dar em troca. Mas
aí quando você vê o que vem em troca....
tudo perfumaria.
NM: É que tudo vem de uma insegurança,
ninguém quer se expor, todo mundo tem medo de
levar um “não”, e vai sempre pelo
mais seguro. As coisas não aparecem, ficam na
elipse.
LARM: É elegante não filmar.
LCOJr: Essas figuras de evanescência e
desaparição se tornaram uma praga.
NM: Isso é uma tendência, é
algo recorrente. Denota um medo de não colocar
a cara para quebrar. Isso é a escolha mais fácil,
mais segura.
Parte 1: O
consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito
Parte 2: Cinema
de metiê / Fantasmas e ausências
Parte 3: Cinema
de gênero? / Os meios de produção
/ O paraíso do autor
Parte 4: A
conciliação / O paradigma do afeto e da
inocência / Alternativas de mercado
Parte 6: Serras
da Desordem e O
Signo do Caos: ruídos / Considerações
finais
Setembro
de 2010
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