CINEMA DE METIÊ / FANTASMAS
E AUSÊNCIAS
LARM: Acho que até agora a gente discutiu
alguns filmes que não têm uma circulação
muito ampla.
LCOJr: Isso é uma outra questão.
Quando a gente falava da reciprocidade entre a crítica
e o cinema, o que existe – e acho que nesse sentido
aquela pauta
da Cinética sobre curta-metragem marca um
capítulo – é o que eu venho chamando
de um “cinema de metiê”. Um cinema
que circula internamente ou circula de uma maneira muito
restrita. Tem a cena mineira, tem a cena cearense, tem
Estrada para Ythaca, A fuga da mulher gorila.
Filmes que só passam em festivais, mas que podem
ser vistos como o cinema brasileiro que “está
acontecendo”. Está-se lançando as
bases para um novo cinema brasileiro, mas isso está
acontecendo só para quem pertence ao metiê.
JGP: Mas eles também estão ganhando
espaço. Estão tentando ganhar espaço.
AF: Lá fora também.
TM: Mas aí volta a questão do novíssimo
cinema brasileiro. É um rótulo para legitimar,
que inventa um espaço onde não há
espaço a princípio. Um rótulo autoproclamado,
o que pra mim remete à questão do conceito.
Existe o conceito sobre o filme a ser feito antes do
filme existir. O que entra na questão do fomento,
do edital. Atualmente, antes de filmes serem filmes,
eles são projetos. Mesmo que as pessoas façam
o filme sem dinheiro, ou seja, com dinheiro próprio,
sem edital. As pessoas pensam nos filmes antes como
projetos que como filmes. Não estou pregando
filmar sem roteiro, claro. É a questão
do conteúdo ser a forma, a justificativa das
coisas. O que tem que ser a justificativa, no final
das contas? Qual é a justificativa para você
propor um projeto? Ora, quero fazer um filme!
LCOJr: Existe uma total falta de pragmatismo
no cinema e isso tem a ver com o sistema de editais.
Essa questão volta todo ano. Todo Cinema Falado
de que participei até hoje tem essa questão
de como está estruturada a produção
de cinema no Brasil. O filme está aí independentemente
do que vai ser sua repercussão, independentemente
de ele estabelecer um diálogo com o público,
ou com um público. Isso não vai
interferir na carreira desse cineasta, entende? Ele
não precisa garantir o filme seguinte a partir
do que ele fez agora.
LARM: Mas isso é geral.
LCOJr: Geral, mas convive muito bem com o cinema
de autor.
LARM: Mas o sistema de autor é hegemônico
hoje.
LCOJr: Para citar o autor-mor, o Godard: nos
anos 60 ele era perguntado por que fazia determinado
filme. “Para poder fazer o filme seguinte”,
ele dizia. Isso é o pragmatismo básico
de uma profissão. Você está ali
fazendo um filme para poder fazer o filme seguinte.
LARM: Eu discordaria da tese de que esse cinema
de metiê que rola hoje, que está um pouco
representado pelas curadorias e por essa promoção
de um novíssimo cinema, não seja pragmático.
LCOJr: Acho que não é pragmático,
é programático. É diferente.
LARM: Olha, mas o programático está
muito perto do pragmático.
LCOJr: Só na fonética.
LARM: Não só na fonética.
Penso que é pragmático porque há
ali uma consciência muito clara de que, de uma
forma ou de outra, você está estruturando
um pequeno núcleo onde idéias, filmes,
produção e crítica podem circular.
Claro que isso aí marca um espaço, marca
uma presença, fundamenta alguma coisa. Nesse
sentido eles são continuadores de uma história
que vem da Cinearte ao Cinema Novo.
LCOJr: Mas sobretudo Cinema Novo. Até
pelo perfil sócio-cultural das pessoas (classe
média, elite intelectual).
LARM: O único que deu certo e que construiu
um modelo de existência do cineasta brasileiro
foi o Cinema Novo, porque até hoje somos obrigados
a ser autores. Você é autor já no
edital.
TM: Não é só a questão
do autor, mas também do domínio dos meios
de produção. Você ocupar os lugares
estratégicos.
LARM: Nessa geração existem duas
vertentes de um pragmatismo, uma que é de fato
e outra que é de conceito, não sei, mas
que é tão pragmático quanto, só
que está elaborando por um outro lado. Uma é
a geração que está no poder, que
é o Newton Cannito, que é o Manoel Rangel,
que é o Alfredo Manevy. Eles estão aí
ocupando cargos oficiais na Secretaria de Cultura. Cargos
burocráticos. Eles foram por esse lado. Geração
da USP que conheci quando ainda eram estudantes e que
tinham um jornalzinho chamado Novo cinema. Tem,
por outro lado, essa perspectiva, mais carioca, de uma
certa legitimação cultural, de ocupar
cargos legitimamente, que passa pela curadoria, que
passa pela velha tradição de aliar prática
à teoria, ou seja, o crítico que teoriza
sobre o próprio filme e sobre o filme dos outros,
evidentemente não todos, mas apenas alguns, criando
uma espécie de vínculo entre filmes-irmãos,
um vínculo que no final das contas legitima toda
essa operação.
LCOJr: Não podemos esquecer que é
uma geração de cineastas-críticos,
ou de cineastas que se aliam à crítica
de alguma maneira.
LARM: Cineastas-críticos que se colocam
como cineastas-críticos, então não
é um rótulo que eu coloco neles. Eles
se colocam como cineastas-críticos, que têm
todas essas referências que a gente colocou no
início do papo. Isso é também uma
forma de trabalhar dentro de uma legitimação
cultural, dentro de uma legitimação política.
Eu vejo muito pragmatismo nessa postura, embora seja
um pragmatismo bem diferente do pragmatismo paulista,
mas eu identifico como uma atuação pragmática.
Se ela é de longo prazo, de médio prazo...
a curto prazo não é, mas a médio
e a longo prazo ela vai se configurar, como já
se configurou com filmes que vão para Cannes,
com filmes que passam na Semana dos Realizadores.
LCOJr: Com Tiradentes como uma plataforma de
circulação de “bons filmes”,
da boa safra do cinema brasileiro contemporâneo.
LARM: Da mesma forma que a Contracampo, quando
surgiu, se estabeleceu como um cânone, como uma
instituição. A Contracampo já significou
essa espécie de “plataforma” de legitimação
de um determinado gosto, de determinados conceitos,
de determinadas correntes. A tal ponto que se fizeram
revistas que nitidamente queriam alfinetar a Contracampo,
por exemplo, a Zingu, do Matheus Trunk, que aliás
é uma revista muito interessante e importante
pela quantidade de informações sobre o
cinema brasileiro que ela disponibiliza, entrevistas
com diretores e técnicos da Boca do Lixo etc
e tal. Mas a Contracampo, depois de um certo tempo,
deixou de ser essa plataforma, o que eu acho extremamente
interessante e saudável, porque, nesse processo,
ela volta a ser de fato um “contracampo”
do que está acontecendo. O que isso significa
em termos de um real debate com o “metiê”,
eu não saberia dizer aqui com certeza. De qualquer
maneira, me parece uma postura diversa do que simplesmente
exibir um acordo feliz entre crítica e prática
cinematográfica.
JGP: Ocorreu também uma glamourização da crítica. Uma certa
chantagem intelectual em que a crítica é a plataforma
de legitimação dos filmes. E não só filmes brasileiros,
ou só de um contexto do cinema brasileiro, mas ao cinema
(notadamente ao “cinema feito hoje”), em que a legitimação
da crítica, o carimbado dela, é mais importante do que
sua postura argumentativa, provocativa, especulativa...
LCOJr: De fato, rola uma glamourização
da crítica. Quando falei de cinema de metiê
e de critica de metiê, não soube me fazer
entender. O que se criou é um universo em que
crítica e cinema se imbricaram e você tem
essa geração da crítica que é
uma galera que cresceu junto...
LARM: Uma geração.
LCOJr: No princípio de tudo, as coisas
estão sempre juntas e depois elas se dividem.
Crítica e realização aparecem como
duas instâncias meio que coladas, só depois
que se separam. Hoje você tem esse circuito de
festivais o ano inteiro. Os críticos vão
aos festivais, é como se todo mundo fizesse parte
de um mesmo metiê, de uma mesma galera, os realizadores,
os críticos, os curadores. Se, por um lado, o
crítico não precisa viver na montanha
para ter a distância exata para julgar os filmes,
por outro lado é problemático quando ele
faz parte daquele momento, quando ele também
depende, de alguma maneira, da repercussão dos
filmes.
LARM: Isso é uma tradição
do Cinema Novo.
LCOJr: Quando surge O Anjo Nasceu, em
1969, você vê os críticos que fazem
o papel de porta-voz do Cinema Novo dizendo: esses sujeitos
(Bressane, Sganzerla) são parricidas, são
fratricidas, são os abortos do Cinema Novo. Esse
tipo de crítico é o cara que não
quer ver o metiê se esfacelar. Quando li a pauta
da Cinética pensei um pouco isso: é a
crítica e a realização se unindo
para não deixar o momento passar; combinando,
juntas, qual o cinema que elas querem ver desabrochar
nos próximos anos.
LARM: Você não acha isso pragmático?
LCOJr: Acho programático. É um
programa. Meu sentido de pragmático é
o cinema da Boca do Lixo.
LARM: Mas isso hoje em dia não existe.
Em ponto algum. A não ser As Brasileirinhas.
Acho que talvez aí existam cineastas pragmáticos.
LCOJr: Meu sentido de pragmático abarca
tudo: econômico, político, dramatúrgico.
AF: O que eu concordo com o Luís Alberto
é que as mesmas pessoas que criam os filmes criam
espaços de exibição e criam os
espaços de reflexão do filme, e nesse
sentido acho que é pragmático.
LCOJr: Pode ser, mas só nesse sentido.
Longe de querer desqualificá-lo, a questão
é: isso está abrindo esse cinema, ou está
fazendo ele continuar a circular entre as pessoas que
já pertencem ao grupo?
LARM: Mas, não sejamos ingênuos,
qual desses movimentos surgiu para abrir o cinema?
TM: Quero voltar a uma coisa que você havia
falado, Junior, de não deixar a coisa se esfacelar.
O que eu sinto, e senti isso um pouco com a cobertura
que fiz de Tiradentes esse ano, é que não
importa o quanto você queira brigar, as pessoas
não vão deixar que você brigue com
elas. Não adianta você bater porque não
vai ter briga. Porque não pode haver racha. Tenho
essa sensação de que é todo mundo
o tempo todo segurando as pontas. Isso não seria
tanto no sentido de “a gente tem que fortalecer
o movimento” – o movimento sendo o cinema
no Brasil. É mais o seguinte: “Não
estou interessado em embate, estou mais interessado
em estabelecer uma certa cena e fazer com que essa cena
seja estável para mim, já que eu a estou
promovendo.” Isso é muito prejudicial porque
estabelece um consenso.
AF: Voltamos ao início.
TM: Assim é impossível ter provocações
ou respostas, inclusive de um filme a outro. “Vou
responder ao filme do fulano”.
LARM: Mas aí acho o seguinte: não
são as pessoas que estão eventualmente
criando esse espaço ou ocupando esse espaço,
não são elas que vão permitir esse
embate de idéias ou esse choque. Elas não
estão lá para permitir nada. Isso vem
de fora.
LCOJr: Mas não tem o fora!
TM: Exatamente.
LARM: Aí entra um dos motivos de eu querer
participar desse Cinema Falado, que é querer
pensar a Contracampo. Acho que os últimos textos
que o Júnior e a Tati escreveram para a revista
são textos que contrapõem. São
textos de discussão, de contraposição,
são textos que não têm nada ver
com o tapinha nas costas habitual. Se eles se fecham
de um lado, isso é algo natural, esperável,
previsível. Mas a gente não pode ter essa
idéia de que eles estão lá para
dizer “olha, nos contraponham” – estou
me sentindo estranho falando aqui em termos de “eles”
e de “nós”... É que a gente
conhece a maior parte das pessoas, temos divergências
de idéias ou de posturas, e, mal ou bem –
não li tudo que se escreveu sobre os festivais
ou sobre os filmes que passaram nos festivais –,
a postura da Contracampo, embora a revista esteja passando
por essa enorme crise, tem sido uma postura de contraposição.
AF: Mas quem está respondendo a isso?
LARM: Acho que a resposta não vem para
legitimar a Contracampo, uma revista que não
está mais legitimada como já esteve. Não
é “legitimada” – usei a palavra
errada – mas “institucionalizada”.
O que existe é uma revista que está ali
falando isso e aquilo. A Tati recebeu e-mails de resposta
de realizadores que foram criticados por ela. Os caras
responderam. Então não existe um grupo
só, a coisa é mais dinâmica. Não
é pensar em termos “blocados”, como
se existisse uma corrente invariável de filmes
e críticos e cineastas e, de outro lado, meia-dúzia
de pessoas vendo problemas nisso tudo. Vejo uma coisa
mais dinâmica nesse processo, vejo pessoas, também,
não só grupos, e o fato de que as críticas
que a Tati fez possibilitaram algumas respostas, me
parece indicar que existem pessoas que também
estão dispostas a dialogar.
TM: Em grande parte, nessa crise interna da revista,
há também o reconhecimento de que boa
parcela das coisas que a gente está criticando,
de alguma maneira, foram defendidas pela Contracampo
em determinado momento, e acatadas. E essa produção
toda seja talvez alguma espécie de resultado.
LCOJr: Não sei se “resultado”.
TM: Usei uma palavra forte demais.
LCOJr: Eu não sei o alcance que a Contracampo
teve no sentido de influenciar pessoas que vieram a
fazer cinema e que de alguma forma se inspirariam. Mas
voltando à questão do “fora”:
embora os meus textos recentes, e os da Tati, exponham
esse olhar contestador, essa insatisfação,
essa provocação que é uma dimensão
indispensável da crítica, a Contracampo
não pode ser vista como fora porque ela também
é o dentro.
TM: Sim, claro.
LCOJr: É um grande problema você
analisar essa nossa geração e ver que
ela não tem um fora. Ela não tem uma pressão
externa moldando-a, dando porrada nela, no sentido de
“você não pode ser só isso
que você já acreditou que é”.
Não tem pressão externa. É uma
geração que cresceu dentro dela mesma,
está criando seus próprios espaços
– a exemplo da Semana dos Realizadores –,
o que é bom, por um lado. Mas, por outro lado,
você vê como é centrípeto,
que é uma expansão a partir de seu próprio
umbigo. Acho isso muito perigoso.
LARM: Eu estava lendo há pouco tempo um
livro do Jean-Claude Bernardet chamado Trajetória
crítica, que é interessante porque
ele publica as próprias críticas e as
analisa. Ele é rigoroso com ele mesmo. Lá
pelas tantas ele menciona uma crítica que causou
uma polêmica total no meio cinematográfico.
Ela dizia: “Vocês têm por um lado
a pornochanchada, e por outro lado um cinema-Academia-Brasileira-de-Letras”
– é aquele momento em que estavam se adaptando
os grandes autores nacionais – “e por outro
você tem cinema experimental. O radicalismo está
na pornochanchada e no cinema experimental.” Aí
dividiu, criou uma polêmica, etc. No texto, no
livro, Bernardet diz o seguinte: “Esse texto crítico
não criou essa polêmica. Essa polêmica
já existia. Esse racha entre os realizadores,
essa recusa que um tem do projeto do outro já
existe naturalmente. A crítica não provoca
isso”. No fundo ele está dizendo que a
crítica é inútil diante desse quadro.
O quadro já estava instalado. Esse quadro já
existia. E esse quadro é um racha. Uma coisa
que o Jr. está colocando, e que é muito
interessante, é o seguinte: ao contrário
dessa época, hoje você não tem racha
nenhum; você tem uma concordância geral.
É nesse momento que a crítica pode ser
útil, nesse momento é que ela pode rachar
e funcionar nesse sentido. Só para colocar como
as épocas estão diferentes. A gente estava
falando de Damas do Prazer, a gente está
com uma pauta “Clássicos e Raros”,
mas veja como a época é diferente, como
a gente está percebendo as coisas de uma maneira
diferente. E as relações do cinema de
metiê aí são outras.
LCOJr: Mas a pauta nasceu desse choque. Estar
vendo outra realidade, outro cinema. Vendo outra coisa.
O meu texto
é um relatório fiel do que foi a sessão
de Damas do Prazer pra mim. Algumas sessões
da mostra Clássicos e Raros, as de Gregório
38, Caveira My Friend ou Juventude Sem
Amanhã, foram tranqüilas, mas algumas
outras não foram, Damas do Prazer principalmente.
Eu não consegui simplesmente olhar e dizer: “que
cena, que filme!”. Tinha uma amargura de fundo.
E isso é horrível. Aí tem o que
discutimos a partir dessa pauta, que é estar
trabalhando no limiar do reacionarismo. Eu argumentei
que eu vejo nesse consenso, na forma como as pessoas
estão se esquecendo de fazer filmes para afrontar
o mundo, uma postura, aí sim, reacionária.
Criar uma contraposição a isso, portanto,
é ser contrário ao reacionarismo. E eu
diria que a conseqüência disso é uma
certa amargura. É ver Damas do Prazer
e, ao invés de simplesmente se deliciar com o
filme, ficar se revoltando porque isso é algo
impensável em termos de cinema atual.
TM: Uma coisa que eu falo volta e meia é
que estou extremamente decepcionada com a nossa geração,
que prometia muito e que já está desabrochando
meio podre. Essa sensação da amargura
de que você está falando, eu compartilho
completamente.
LARM: Então acho que isso é um
problema da geração.
TM: Esse é o momento da divisão
de que você falava, Junior: há um ponto
em que ou se embarca nesse projeto coletivo, ou se dá
um passo para trás, pára, olha e pensa:
“para onde a gente está indo?”.
LARM: Eu, por exemplo, que não sou etariamente
da geração de vocês, percebo o contrário.
Estou sempre percebendo as coisas que estão se
plasmando. Eu fico percebendo às vezes em pessoas
muito novas uma identidade de pensamento, uma identidade
de idéias que eu não tenho com pessoas
da minha geração.
TM: Não quero dizer que todas as pessoas
não estejam incomodadas. Vejo muita gente que
compartilha deste incômodo, que sente a falta
do “fora”. Mas a face visível é
a que se autoproclama, e é a que bem ou mal ocupa
os espaços.
LARM: Mas a face visível de 2010 não
é a face visível de 2006, de 2007. Estrada
para Ythaca [Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes
e Ricardo Pretti, 2010], que é um filme sobre
o qual a gente tem opiniões divergentes, ou convergentes
em vários aspectos, e que é um filme que
a maior parte aqui viu, não tem nada de oba-oba.
Ele pode ser isso ou aquilo, mas não é
um oba-oba. Não é um filme de celebração
de uma alegria vazia, etc. Ele pode ser criticado por
outros aspectos.
TM: Mas esse cinema de que a gente está
falando não é de oba-oba.
LCOJr: Pelo contrário. É de uma
melancolia...
TM: Não são os filmes que são
de oba-oba, mas sim a postura.
Liciane Mamede: Acho que Estrada para Ythaca
não tem nada de melancólico. É
oba-oba. Eles não conseguem transpor uma tristeza
no filme. Eles são tão amigos, se idolatram
e idolatram tanto o cinema, que querem ser cineastas.
Mas não conseguem transmitir nenhuma verdade
com aquele filme.
LARM: Mas é também uma curtição.
LM: Eles estão curtindo, pegando dinheiro
dos pais e fazendo cinema, e nesse sentido é
oba-oba. Eles não conseguem fazer um filme sobre
quatro amigos que perderam um amigo. Não tem
nada no filme que transmita uma verdade sobre a tristeza
da perda.
JGP: Verdade do quê, dos sentimentos deles?
LM: Não fico convencida de que eles estão
tristes porque perderam um amigo.
LCOJr: O filme é sobre fazer um filme.
É sobre quatro amigos fazendo um filme. Essa
é a história de Estrada para Ythaca.
TM: Quase todos os filmes hoje são sobre
fazer um filme. No caso, falo dos curtas-metragens e
longas-metragens sem orçamento oficial. Parece
que todos eles são filmes sobre fazer um filme.
LM: A coisa está tão no oba-oba
que eles não percebem que Ythaca é
um filme caseiro, amador. Não há nada
do filme em que eu acredite. Não entendo que
eles estão de luto.
LARM: Mas talvez aí a gente esteja recaindo
na questão da dramaturgia.
TM: Com certeza.
JGP: No filme que o Júnior citou, Apenas
o fim, não parece que eles já namoraram
ou estão namorando. Não tem nenhum sentimento.
Não é que o filme não consiga descrever
um sentimento – “o diretor não consegue
fazer uma boa interpretação com um ator
e não consegue transparecer aquele sentimento”
– não: o sentimento simplesmente não
existe. Essencialmente, ele não existe.
LARM: Tem um problema no Ythaca, que é
um filme do qual eu não desgosto tanto quanto
vocês...
TM: Eu também não desgosto.
LARM: O Ricardo Pretti esteve lá na UFF
e a gente passou o filme em aula e depois fez um debate.
O problema que eu vejo no filme é uma questão
conceitual mesmo, porque o Ythaca é um
filme que está muito dentro dessa linha de filmes
de conceito. Uma das cenas-chave é quando eles
são abduzidos e depois vêem a figura do
amigo deles. Aí baixa o Glauber no amigo deles,
o Glauber naquela cena de O Vento do Leste em
que ele aponta duas estradas, uma vai para o cinema
desconhecido, para o cinema da aventura, e outra vai
para um cinema perigoso, um cinema do terceiro mundo,
um cinema divino e maravilhoso. E quando eles são
abduzidos e voltam sem barba, eles vão direto
para o caminho do cinema do terceiro mundo. Pra mim
fica uma coisa confusa, cria um impasse. Quando o Glauber
aponta esse cinema do terceiro mundo em 1970, ele está
apontando para um cinema de indústria. Ele está
no meio de uma polêmica na qual ele diz: você,
Godard, que é um burguês, um cineasta europeu
decadente etc e tal, você quer destruir as câmeras,
enquanto nós, cineastas do terceiro mundo, nós
queremos construir o cinema; o nosso rumo é o
da indústria, o rumo de um cinema que vai se
afirmar. Então, quando os personagens de Estrada
para Ythaca seguem direto esse rumo apontado pelo
Glauber, eles estão seguindo o rumo de uma industrialização,
de um cinema que está querendo se afirmar como
indústria. Ao menos é assim que devemos
interpretar naquele contexto de O Vento do Leste.
O que significa que essas palavras (“aventura”,
“desconhecido”, “terceiro mundo”,
“cinema”, “indústria”)
ou mudaram completamente de sentido ou não estão
sendo entendidas. Esse é o momento, para mim,
em que o filme se desarticula. E eu fico me perguntando
o porquê dessa filiação imediata,
da parte dos realizadores do Ythaca, ao Glauber,
ou melhor, ao discurso do Glauber de 1968/69. Na verdade,
a questão é: o que é que o Glauber
(quer dizer, a “entidade” Glauber) está
fazendo naquele filme? E justamente um Glauber que está
propondo o cinema industrial em contraposição
ao cinema underground! Nesse ponto eu também
me divido: fico me perguntando se a questão que
eu coloco não é uma questão “antiga”,
também. Mas se ela for antiga, então aí
eu entendo menos ainda a menção a Glauber.
Não conheço todos os filmes que estão
sendo feitos no Ceará pelos cineastas mais jovens,
como os irmãos Pretti, vi alguns, um deles inclusive
eu gostei bastante, que é o Sábado
à Noite [Ivo Lopes Araújo, 2007],
um documentário pro DocTV, então eu não
sei se essa filiação glauberiana existe
em outros trabalhos. No Sábado à Noite,
pelo menos, essa filiação não existe,
como não existe também filiação
cega e mal-digerida com o Coutinho, o que é outra
coisa muito saudável em um documentário
atual. Estou insistindo nisso porque o Ythaca
se coloca, pelo menos a princípio, como um filme
que quer manter um diálogo de outra ordem com
a tradição do cinema brasileiro, ele não
me parece querer bater nas teclas mais tradicionais;
ao contrário, quer buscar outras referências
em outros autores, o que eu acho bacana. Mas de repente
você dá de cara com o “Glauber”
dizendo pra onde eles têm que ir...
LCOJr: Acho que é uma coisa ainda relacionada
a esse momento atual da cinefilia. Nesse grande oceano
de filmes em que as obras estão boiando, perdeu-se
um pouco o sentido histórico da coisa. Eu falei
para a Tatiana outro dia: precisamos urgentemente de
bons historiadores do cinema. Historiadores panorâmicos,
que não apenas se enfurnam numa época,
num aspecto, num cineasta, num conjunto de documentos,
mas que traçam uma visão panorâmica
da coisa. Só que se você fala isso hoje,
soa regressivo, reacionário, porque o paradigma
vigente é o do “plano de imanência”:
está tudo aí, está tudo na superfície
móvel do presente e você não tem
uma história do cinema no sentido de uma sucessão
de escolas estéticas, momentos, estilos etc.
O que se tem é um devir infinito, um conjunto
instável de forças, de potências,
o cinema como um conjunto de signos. E aí, nesse
plano de imanência, muitos filmes perdem o sentido
e o que resta deles é só o signo. A apropriação
que se faz desses filmes se dá apenas no plano
dos signos, dos significantes. Mas o sentido, o significado,
isso se perdeu. Aí se criam esses ruídos
bizarros, como essa citação de O Vento
do Leste no Estrada para Ythaca. Ninguém
sabe ao certo o que aquela encruzilhada significa, mas
aquilo baixa ali como se fosse um alien. É só
uma imagem que ficou de uma longínqua aventura
do cinema.
LARM: Aí eu me lembro do André
Sampaio contando que estava na platéia vendo
esse filme lá em Tiradentes e gritou: “Peraí!
Dá uma olhada na outra estrada, vê o que
tem pelo menos!”. [risos] Essa imagem da encruzilhada
representa essa nossa discussão, na verdade:
é o cinema da dramaturgia ou o cinema do conceito,
quer dizer, eu acho que ela representa exatamente o
que a gente está discutindo aqui desde o início.
TM: Não se sabe o que é essa encruzilhada
exatamente porque não se entende o que é
um conflito. A mesma coisa que você falou no caso
do texto do Bernardet: aquele conflito lá em
O Vento do Leste já existia, na verdade.
E como isso agora não existe, eles não
poderiam compreender o verdadeiro sentido dessa encruzilhada,
porque esse embate não existe na realidade de
produção, ou na realidade do meio no qual
o filme está sendo feito. Eles nunca vão
conseguir entender o peso ou o significado dessa encruzilhada.
Na verdade, hoje em dia não existe encruzilhada.
Aquilo, para eles, é de fato só uma imagem
com a qual você pode brincar e que não
tem grandes conseqüências. Eu acho que aquilo
é só uma brincadeira.
LARM: Mas é uma brincadeira solene.
TM: Pois é. Eu, quando vejo aquela encruzilhada,
aquela referência, a coisa adquire imediatamente
um sentido político. E a partir do momento em
que o filme não se posiciona diante da encruzilhada
de uma maneira conseqüente e política, eu
não entendo nada. O próprio efeito-encruzilhada,
o próprio efeito-citação se dilui
logo em seguida no filme, e você fica se perguntando:
então, por que citar? O filme não assume
as conseqüências de colocar aquela referência,
aquela citação, e de propor aquele discurso
– porque é um discurso. E aí o filme
se dilui e fica realmente parecendo uma brincadeira.
A gente volta àquela questão da brincadeira
do cinéfilo. Sendo que O Vento do Leste
é um filme do Grupo Dziga Vertov, tem um contexto
muito específico, muito radical. Não é
qualquer filme do Godard. Não é Uma
Mulher é uma Mulher.
LCOJr: Por ser Estrada para Ythaca um
“filme de grupo”, talvez eles não
procurem inocentemente citar um outro filme de grupo.
TM: Mas aí volta o que você estava
falando: não há história. O
Vento do Leste não é história;
é mais um filme do oceano de filmes.
LCOJr: É só uma reatualização
de signos. Hoje existe uma grande apologia da inocência,
do olhar inocente. Todos querem afirmar que estão
olhando para o mundo – ou para o cinema –
sem qualquer tipo de pré-concepção,
de pré-julgamento, é um reencantamento
do mundo através da inocência.
LARM: Como se o cineasta fosse quase um santo...
LCOJr: Quase um santo. Mas ver e citar um filme
do Grupo Dziga Vertov na base da inocência é
um tremendo contra-senso. O filme pede justamente o
olhar não-inocente, o olhar crítico, inquiridor.
Outra coisa que me intriga: e quando os personagens
do Ythaca aparecem sem barba, com rosto liso,
eles se tornaram o quê, anjos? É como se,
ao fim daquela jornada de purgação de
uma dor pela perda de um amigo, as pessoas se purificassem.
Depois tem a cena do bar, com o fantasma do amigo: a
ausência se presentifica. Eu vi esse filme no
festival de cinema latino-americano em São Paulo,
em seguida ao A Falta que Me Faz, da Marília
Rocha, e me impressiona essa coisa da ausência:
o núcleo dos filmes é uma ausência,
é alguma coisa que não está ali,
é o fantasma, é alguma coisa que assombra
o filme, que está no fora-de-campo.
LARM: Mas isso a princípio não
tem problema.
LCOJr: Tem problema a partir do momento em que
vira piloto automático. É uma certa moda
do fantasmático, do espectral. Essa coisa do
fantasma, da aparição, foi um dos fetiches
da década – fetiche da crítica,
inclusive. Todo mundo virou fantasma de repente. Isso
se explica, em parte, porque o fantasma vem ao encontro
da dissolução do peso das coisas. Vem
ao encontro dessa coisa de desmaterialização
do mundo. O fantasma vem a calhar. Ele é esse
estado etéreo.
LARM: Ele é a matéria conveniente.
JGP: Eu acho que isso pode ser bom.
LCOJr: Pode ser bom, claro. Não condeno
o fantasma como um elemento dramático, não
condeno o personagem-fantasma (que já rendeu
vários grandes filmes, de Mankiewicz a Rivette).
O que eu falo é que quando você pode fantasmatizar
tudo, como se você pudesse sempre trabalhar nesse
mundo etéreo, onde as coisas não têm
peso e estão aí só como um vapor,
uma sensação, então há algo
de estranho e é preciso tentar entender por que
isso está acontecendo. Os filmes me passam a
impressão de que se trata simplesmente de uma
moda: o fantasma aparece não porque impôs
sua presença por algum motivo ou sentido forte,
mas porque o diretor viu uma série de filmes
contemporâneos em que essa figura é recorrente
– Mal dos Trópicos, Brown Bunny,
Last Days, Adeus Dragon Inn, os últimos
filmes do Oliveira, Philippe Garrel, Eugène Green
etc – e aderiu a essa tendência. É
a moda do fantasma, da mesma forma que, num outro nicho,
de séries e filmes comerciais, existe a moda
do vampiro emo. Ou então, para repor uma
palavra recorrente na conversa, é um “conceito”.
AF: É uma dificuldade também de
lidar com a materialidade.
TM: De lidar com o conflito.
LCOJr: A presença implica o conflito.
Quando você pega aquele elemento que está
na origem de um sentimento, de um estado, e o coloca
no centro do quadro, e não no fora-de-campo ou
no lugar abstrato em que ele é só uma
dimensão virtual do filme, você necessariamente
obriga que se faça alguma coisa com aquilo. O
que você vai fazer com essa presença que
está aí? A presença cria um problema,
um conflito que precisa ser resolvido.
Um curta-metragem de que eu gosto, mas que eu acho que
esbarra nessa questão da ausência, é
o Rosa e Benjamin, do Cléber Eduardo e
da Ilana Feldman. O filme mostra um casal de terceira
idade que mora bem ao lado do aeroporto de Congonhas.
Surge na vida deles um novo vizinho, que é viúvo
(ou “sozinho”, como o Benjamin define).
Rosa volta e meia diz que encontrou o novo vizinho por
acaso. Benjamin sente ciúmes, mas não
enfrenta a questão. Ele faz comentários
evasivos e tal. Nas primeiras vezes em que o ciúme
invade a conversa, um avião abafa o som ambiente,
atrapalha o diálogo – é uma forma
de representar a pane emocional do ciumento. O vizinho
nunca aparece, é praticamente uma assombração
do fora-de-campo. A dúvida fica no ar. O mais
interessante do filme, pra mim, é o curto-circuito
que ele estabelece entre a catástrofe íntima
e a catástrofe coletiva, ou seja, entre o ciúme
reprimido do Benjamin e os dois grandes acidentes que
ocorreram em 2007 em São Paulo, separados por
mais ou menos seis meses, e que tiveram grande repercussão
na mídia: o desabamento daquela estação
de metrô que estava sendo construída em
Pinheiros e o desastre com o vôo que pousava em
Congonhas vindo de Porto Alegre. O desastre do avião,
por ser ali do lado da casa dos personagens, marca o
momento mais carregado da história. Tem uma imagem
instigante no filme, que é a do quintal lateral
da casa vazio, uma imagem que se repete à la
Ozu. Mas não tem confronto, o vizinho se evapora,
se muda do bairro da mesma forma fantasmática
que chegou. A exclusão do termo conflitante a
um extracampo radical torna obrigatório o tom
ambíguo do filme, a irresolução.
A narrativa é flat, minimalista (detalhes
de figurino e cenário constroem a trama), o drama
se cola na personalidade do Benjamin, calado, fechado.
Embora plenamente justificável dentro da proposta
do filme, isso nos faz voltar àquela questão:
o que acontece hoje que ninguém mais encara o
drama de frente? Impossibilidade real de confrontação
dramática ou prisão dentro de um modelo
(do minimalismo, da ambigüidade, da contenção,
do extracampo maior que o campo) que se oferece como
o mais pronto pra uso?
A facilidade que advém de lidar com o espectral
me incomoda profundamente. Isso está no Estrada
para Ythaca e de certo modo está também
no filme da Marília Rocha, conforme o nome já
diz: A Falta que Me Faz. O filme é sobre
uma falta. Foi engraçado o que ela falou no debate:
iria fazer um filme completamente diferente, um documentário
sobre uma atividade extrativista praticada ali naquela
região onde o filme se passa, mais especificamente
sobre as meninas que trabalham nessa atividade. No meio
do caminho, à medida que foi conhecendo as personagens,
a diretora viu que todas elas estavam passando por um
mesmo momento afetivo, que era a coisa de projetar o
grande amor da sua vida – e é natural que
elas estejam pensando sua vida muito em função
disso: são jovens de dezoito, vinte anos. Uma
vez que ela, diretora, também estava passando
por um momento assim, o filme se encontrou. Eu acho
que a Marília Rocha até se destaca do
restante da produção da Teia na medida
em que ela tem um interesse pelo Outro, ela tem um interesse
em buscar o que está acontecendo ao redor, e
não só se fechar no próprio universo
de sua sensibilidade. Por isso ela vai fazer esse filme
sobre as catadoras de uma plantinha que existe ali no
interior de Minas. Mas no meio do caminho descobre algo
que partilha com esse Outro, descobre o “afeto”.
Aí o documentário deixa de ser sobre uma
atividade econômica e passa a ser um documentário
sobre um estado afetivo, o que é automaticamente
paralisante. Todas as determinações –
políticas, econômicas, sociais –
são diluídas no plano afetivo. No afeto,
todo mundo se entende. O Outro só interessa de
verdade a partir do momento em que revela algo de você
mesmo.
Parte 1: O
consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito
Parte 3: Cinema
de gênero? / Os meios de produção
/ O paraíso do autor
Parte 4: A
conciliação / O paradigma do afeto e da
inocência / Alternativas de mercado
Parte 5: Personagens
da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"
Parte 6: Serras
da Desordem e O
Signo do Caos: ruídos / Considerações
finais
Setembro
de 2010
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