CINEMA DE GÊNERO? /
OS MEIOS DE PRODUÇÃO / O PARAÍSO
DO AUTOR
LCOJr: Sem querer sobredeterminar os filmes por
aquilo que os diretores estão falando, há
uma coisa que rolou no debate do Estrada para Ythaca
que eu gostaria de destacar. Alguém da platéia
perguntou sobre referências, sobre filmes que
os inspiraram. Um dos diretores, não lembro qual,
falou que eles estavam vendo muitos filmes de sessão
da tarde. O que eu entendo por um filme sessão
da tarde é um filme pautado no entretenimento,
que tem uma leveza mas ao mesmo tempo trata de um momento
crítico na vida de um jovem, quando ele precisa
tomar decisões – os filmes dirigidos e/ou
roteirizados pelo John Hughes seriam paradigmáticos
nesse sentido. Mas aqui estou simplificando bastante,
perigosamente até, pois há uma gama mais
variada de aspectos. Em outros tempos, um filme do Lubitsch
ou do Jerry Lewis, ou mesmo do Cottafavi (lembro que
vi Hércules na Conquista da Atlândida
num sábado à tarde na extinta Rede Manchete,
quando era criança), podia ser sinônimo
imediato de sessão da tarde. De todo modo, são
filmes basicamente de entretenimento, talvez seja esse
o elemento unificador do “gênero”
sessão da tarde. E aí fica muito esquisito
isso aparecer como referência principal de um
filme, Estrada para Ythaca, que parece seguir
um dogma: é proibido entreter o espectador. O
sentido de aventura, de fazer você embarcar numa
aventura, está interditado. Ou você partilha
um estado afetivo ou não partilha. Talvez haja
um discurso de “ah, mas quem disse que esse cinema
tem a ambição de furar a redoma do metiê
e dialogar com o público?”. Ora, mas os
filmes de sessão da tarde dialogam amplamente
com o público, é uma fruição
prazerosa. Essa contradição me espanta.
JGP: Estou curioso para saber qual é a
relação com a ficção-científica
nesse filme... Há uma relação concreta
com o cinema de gênero ou não?
TM: É conceitual.
LCOJr: O cinema de gênero vem sendo empunhado
como um discurso, mas não como uma prática.
O cinema fantástico é freqüentemente
reaproveitado enquanto efeito de superfície.
CN: Em A Fuga da Mulher Gorila [Felipe
Bragança, Marina Meliande, 2009] é a mesma
coisa. Eu fui ver o filme há pouco tempo e, no
debate, a Marina Meliande disse que eles estavam muito
interessados em melodrama e musicais. No entanto, de
musical o filme não tem nada – pelo menos
não em termos de dramaturgia. A menina fica cantarolando
uns versinhos ali, e só. Ou então, me
parece, há uma confusão entre o que seria
uma citação e uma influência. Qual
a dramaturgia que impera no filme? Aqueles planos longos,
os personagens inapreensíveis, que se esvaem
e povoam aquele espaço com uma melancolia na
ponta da língua. Antes de ser uma ficção
influenciada por musicais ou melodramas, o filme é
esse corpo maleável típico do cinema contemporâneo
LARM: Mas essa é a tradição
do Godard, né? O Godard quando diz que “apenas
quis fazer um filme policial”, e você vê
o filme e ele não tem nada de policial. “Mas
a única coisa que eu fiz foi um musical”.
Aí você vai lá e não tem
nada disso. “O Vento do Leste é
um faroeste”. Ele já vendeu O Vento
do Leste como um faroeste! E tem cenas efetivamente
de faroeste, mas ao mesmo tempo não tem nada
do gênero faroeste. É uma tradição
que impregnou o cinema de autor.
TM: Mas você também tem que levar
em consideração o aspecto irônico
e provocador das falas do Godard, que não me
parece existir aqui.
LCOJr: A própria “política
dos autores” consistia, em grande parte, em pegar
o cinema hollywoodiano, um cinema que o restante da
crítica francesa desprezava ou até combatia,
e falar: enquanto vocês ficam perdendo tempo com
Claude Autant-Lara, deviam estar vendo filmes de aventura
do Howard Hawks.
LARM: Mas isso os críticos.
LCOJr: Críticos que depois fariam filmes.
A Nouvelle Vague – que eu não pretendo
defender ou legitimar aqui como a “boa maneira”
de fazer um cinema citacional – é uma primeira
geração de cineastas cinéfilos,
ou que estão fazendo filmes-que-citam-filmes
de forma sistemática. Aquela coisa: o vermelho
do Godard é de quem viu Minnelli e Nicholas Ray.
Mas os primeiros filmes da NV não se destinavam
apenas aos cinemas de arte e experimental, eles alcançavam
sucesso nas salas de grande público, faziam 400,
500 mil espectadores (os primeiros filmes, depois foi
caindo). O que ocorre hoje em dia, por outro lado, é
um retorno aos grandes gêneros, seja a ficção-científica,
o melodrama, o cinema fantástico ou o cinema
de aventura, que se dá apenas no plano do efeito
discursivo. São filmes que precisam de um debate
com o diretor depois. Você chega e fala: esse
filme esquisito que eu fiz não passa de um melodrama,
de um musical, de um filme sessão da tarde. Em
outras palavras, eles querem dizer que isso não
é só mais um filme que vem no filão
do cinema contemporâneo. Assim você alimenta
a crença de que faz algo novo, diferente do que
já está rolando por aí, porque
aquilo que já entrou no rótulo “cinema
contemporâneo” corre o risco de já
estar fora de moda, de ser visto como requentado, então
é preciso criar algo diferente, ainda que se
trate da mesma coisa. Remetendo ao passado distante
do cinema clássico, ou ao vulto mitológico
dos grandes gêneros, você se livra da pecha
de ser apenas mais um contemporâneo. Sem falar
na estratégia de dizer que seu filme é
popular, despretensioso, quando na verdade não
é. Estrada para Ythaca tem uma influência
forte de Brown Bunny e Gerry – e
eu não vejo nenhum demérito nisso, não
há nenhum problema, a priori, em dialogar com
um filme contemporâneo que foi badalado pelos
críticos ou por quem está teorizando esse
cinema. Mas negligenciar isso e apontar o cinema clássico
como influência é tentar se colocar como
algo novo.
LARM: É porque hoje em dia é muito
mais cool ser clássico do que ser experimental.
Acontece que as pessoas só conseguem ser experimentais.
É muito mais difícil hoje em dia ser clássico-narrativo.
Por isso que o clássico-narrativo é uma
matéria com a qual as pessoas estão tendo
uma atenção extraordinária e estão
procurando entender por que não conseguem fazer
o básico, que é, por exemplo, contar uma
história com personagem e essa história
ter um mínimo de interesse dramatúrgico.
LCOJr: Você percebe isso claramente em
A Fuga da Mulher Gorila. Na cena que precisa
ganhar contornos de melodrama, quando ela encontra o
rapaz e o bebê (a família que deixou para
trás), a decupagem é toda desajeitada,
a cena não tem clima, há uma gritante
inabilidade em lidar com a construção
dramática. Não me interesso minimamente
pela história daquela personagem. Já se
você lembrar de uma cena anterior, com elas num
posto de gasolina na beira da estrada convidando as
pessoas para o espetáculo, ali o filme está
se aventurando na fronteira ficção-documentário,
no registro do presente puro, e há uma força,
uma intensidade. O filme parece à vontade nesse
registro. Nas sobre-impressões também,
que são o plano-intensidade por excelência.
A dificuldade surge na hora de passar da captura de
intensidades para a dramaturgia propriamente dita.
Mas queria voltar àquela questão de que
o sentido dos filmes do passado se perde e fica apenas
o signo. Há uma certa recorrência do cinema
fantástico como fonte de ícones e “motivos”
(no sentido em que se fala de motivos pictóricos).
Mas o que sobrou do cinema fantástico para os
cineastas que tentam dialogar com ele artisticamente
é uma espécie de bibelô estético,
é só uma cor.
JGP: É um pouco na linha das intervenções
fantásticas do Apichatpong, esse desvio repentino,
de uma coisa que está fora do real.
LCOJr: Outro dia eu vi Starman, do John
Carpenter. Tenho certeza de que se trata de um dos filmes
mais bonitos da história do cinema. Aquela cena
do Jeff Bridges ressuscitando um animal silvestre na
beira da estrada – que, aliás, lembrou
Apichatpong – é tudo que a “veia
poetizante” dos novos autores gostaria de encontrar.
Só que para chegar ali, o fantástico não
pode ser apenas um conceito, precisa ser outra coisa,
algo mais.
TM: Esse uso do conceito não vai na essência
da coisa, é como se ele pegasse só o invólucro.
O Apichatpong vai na essência das coisas. Essa
reapropriação de certos ícones
do cinema contemporâneo, me parece, não
é uma questão internacional, é
uma questão brasileira. Você não
verifica isso dessa maneira no cinema internacional.
LCOJr: Sei não... Acho que o Raya Martin
tem uma relação com o cinema mudo parecida
com essa que alguns cineastas brasileiros têm
com o cinema fantástico. Ele pega o cinema mudo
como uma capa, um invólucro. É como se
ele descolasse esse papel de parede – literalmente,
porque em Independência ele trabalha com
cenários de fundo falso, de trompe l'oeil.
Os signos plásticos se emancipam dos sentidos
que outrora veicularam.
TM: É, tem razão. Eu estava pensando
mais no cinema europeu.
LCOJr: Mesmo no cinema europeu, podemos pensar
num Bertrand Bonello, num Christophe Honoré...
E outra coisa: essa mania de dizer que tudo é
um filme político. Independência
se esconde atrás de pretensos temas históricos
e políticos só para não se entregar
como um exercício formalista vazio – o
que ele talvez seja, embora nem me tenha desagradado
(gosto bastante da seqüência da tempestade
à la Sjostrom/Stiller). A crítica em geral
compra facilmente essa coisa do filme político,
mas não deveria. Banalizou-se muito a idéia
do filme político.
LARM: Nas discussões que precederam este
Cinema Falado, uma coisa que você achava absurda
era o discurso sustentado pelos realizadores de Estrada
para Ythaca de que era um filme barato.
LCOJr: É preciso fazer um parênteses
aqui: surgiu uma pergunta na platéia a respeito
de quanto o filme havia custado, o diretor respondeu
que custava R$ 1.780,00. Ele não falou num tom
de quem estava levantando uma bandeira. Mas a platéia
aplaudiu. O que me deixou chocado foi a platéia
aplaudir.
LARM: Bom, então a tua questão
é com a platéia.
LCOJr: É com o fato de que as pessoas,
ao aplaudir o cara que tem dois mil reais sobrando para
fazer um filme, estão defendendo isso como um
modelo de produção. Isso é elitizar
o cinema ainda mais. Ao aplaudir, eles disseram: esse
é o caminho.
TM: Mas num filme feito assim, eles não
pagam o profissional, não se trata de uma atividade
econômica.
JGP: Eles não pagam o profissional, eles
fazem o filme com a câmera que já compraram...
LCOJr: É a forma mais elitizada de fazer
cinema que você pode imaginar: o cara tem o equipamento,
tem os meios e está com grana e tempo sobrando
para fazer aquele filme sem ganhar nada, só gastando
dinheiro, comprando o direito de ser um cineasta.
TM: Essa questão dos meios de produção
atravessa na verdade a história da arte. Depois
que a arte deixa de ser fundamentalmente funcional,
num determinado momento há os mecenas, ou os
artistas que morrem de fome, etc. E há também
as pessoas que, especialmente no cinema, ao longo do
século XX, tinham outros empregos e no seu momento
livre usavam dividendos do seu trabalho oficial para
se dedicar à sua arte. É uma questão
do lugar da arte na sociedade, em termos de plano econômico.
Na literatura também é assim, só
que ninguém fala do cara que tem um emprego público
e pega os domingos para escrever um romance. A questão
é um pouco semelhante, e remete a esse ponto
essencial que pra mim está sendo muito mal discutido.
LARM: É preciso colocar a questão
não só dos meios de produção,
mas também do porquê desses filmes serem
tão mal distribuídos.
TM: Pois é, você poderia fazer um
filme nas suas horas vagas com ambição
de dialogar com o público e então tentar
uma distribuição. Acho que o Apenas
o Fim, bem ou mal, foi por esse caminho.
LCOJr: Mas a maioria dos filmes de que estamos
falando, no curta e no longa-metragem, é feita
para agradar curadorias e críticos.
LARM: A forma como você colocou a questão
da produção é ótima de se
pensar isso porque se contrapõe a uma idéia
comum de que esse “acesso aos meios” seria,
na verdade, uma democratização. Eu acho
isso muito interessante, e queria deixar como uma direção
possível pra discussão, porque bate de
frente com o mito das novas tecnologias. O modelo pautado
nesse mito inviabiliza um filme como Damas do Prazer,
porque essa dramaturgia do Damas do Prazer você
não pode fazer com mil reais, e no entanto você
não precisa de seis milhões. Você
só precisa de um milhão e meio, ou dois
milhões. Eu acho que para fazer legal, e pagando
bem as pessoas, já que estamos falando de pagar
as pessoas, precisa disso.
LCOJr: Cinema é caro e isso é fato.
Podemos discutir a desgraça que foi a importação
da tabela de preços da publicidade, mas aí
já é outra história.
LARM: Mas qual a possibilidade de se fazer um
Damas do Prazer hoje? É quase nenhuma.
E já não estou mais falando de quanto
custa, de quanto se vai pagar às pessoas. Você
está sujeito ao edital, e portanto ao conceito.
Todo edital é conceitual hoje em dia.
LCOJr: Você não vai conseguir convencer
as pessoas que estão avaliando esse projeto de
que é “importante”, é “relevante”
fazer um filme sobre um grupo de putas sem qualquer
blablablá sociológico no meio.
LARM: Como é o edital do baixo orçamento?
O primeiro campo que você precisa preencher é:
“conceito do longa-metragem”. É o
diretor precisando explicar o motivo pelo qual ele,
universitário – porque quem tem conceito
é acadêmico –, quer fazer esse filme.
E aí a gente coloca essa questão, que
interfere sim na dramaturgia. Mas me parece que é
importante também – estou tentando enxergar
a questão de todos os ângulos – destacar
o lado positivo, que resvala nesse clichê de pegar
a câmera e fazer por você mesmo etc e tal.
E concordando com a Tatiana: você pode inclusive
fazer alguma coisa que seja “popular”. Agora,
vai circular onde?
TM: Pode-se tentar uma distribuição,
nesse caso. E há os editais de distribuição.
Nesse caso, realmente, não sei como eles se pautam,
mas é uma possibilidade. Aliás, o investimento
deveria ser maior e muito mais atento neste ponto. Agora,
voltando à questão da reação
da platéia lá no debate do Ythaca:
a reação da platéia legitimou uma
postura que vai no sentido de vangloriar o baixo orçamento.
Trata-se de uma platéia de festival, que é
restrita. Não há, a priori, um público
mais amplo para discutir isso, e vai ocorrer uma retro-alimentação
novamente: na próxima vez em que ele falar do
orçamento, talvez gaste um pouquinho mais, 2.500
no próximo filme, ele talvez já vá
falar levando em consideração que isso
é um valor, porque na primeira vez isso foi reconhecido
como um valor.
LCOJr: Um valor artístico... Quando não
é. Tamanho de equipe e tamanho de orçamento
não é valor artístico. Isso não
interessa ao espectador, ou melhor, interessa, mas de
outra forma. O Rohmer disse e depois o Rivette repetiu
ou vice-versa, e acho que o Serge Daney também
reproduzia isso (uma pá de gente, na verdade):
“todo filme é um documentário sobre
os seus meios de produção”. Tudo
Vai Bem [Godard/Gorin, 1972] levou isso ao paroxismo
meio como forma de provocação: os cheques
vão sendo assinados, o filme vai “se gastando”
na nossa frente... Enfim, o que eu quero deixar claro
ao retomar essa frase é o seguinte: não
há necessidade de exibir uma cartela informando
ao espectador, por exemplo, a quantidade de gente que
tinha na equipe (A Fuga da Mulher Gorila faz
isso). O essencial, o que o espectador precisa saber,
já está impresso nos planos. Uma das diferenças
entre uma simples imagem e um plano – para
voltar àquela minha dicotomia entre plano e imagem,
que venho desenvolvendo em textos recentes – é
que a imagem não diz nada sobre o que aconteceu
na sua elaboração, enquanto o plano nos
remete à realidade da filmagem, à presença
real do espaço e dos corpos que estavam no set.
LARM: Mas eu vou contrapor um pouco uma questão:
a frase “câmera na mão, idéia
na cabeça” já não era um
slogan que se colocava como questão artística,
quando na verdade é uma questão de produção?
CN: Mas quando você assiste aos filmes
do Cinema Novo, você não pensa nisso, não
é essa a questão.
LARM: Claro que pensa. Estamos falando de uma
coisa muito próxima, que é um trabalho
de legitimação cultural. No momento em
que isso aconteceu, foi sim uma questão que batia
direto na produção.
LCOJr: Isso é uma das afinidades do momento
atual com o Cinema Novo, que, aliás, era também
elitizado. Não foi um cinema que efetivamente
se alçou para fora de uma elite intelectual.
O Cinema Novo rima com esse estado atual em certa medida...
Mas eu acho que o buraco é mais embaixo. Quando
todo mundo fala nas entrevistas, meio no automático,
que hoje qualquer um pode fazer cinema, qualquer um
pode com uma câmera digital e um computador fazer
um filme, é impressionante como está fora
de cogitação uma pessoa que não
tem uma câmera digital e um computador poder querer
fazer um filme. E, além de não ter o dinheiro
e os meios próprios, essa pessoa pode também
não ser um acadêmico que vai saber defender
conceitualmente seu projeto no edital. E aí?
Não filma? Ou seja, não existe essa história
de que todo mundo pode fazer um filme.
LARM: Eu me lembro daquela mesa-redonda que tem
no Revolução do Cinema Novo, com
Straub, Miklós Jancsó, Glauber, Pierre
Clementi... E o Clementi lá pelas tantas diz:
“qualquer pessoa hoje pega uma câmera super-8
e faz um filme”. Aí o Glauber vira e diz
assim: “as pessoas que têm dinheiro”.
Então isso é uma questão antiga.
Sempre houve a possibilidade de uma alternativa técnica:
o 16mm, o super-8, depois o digital etc. O problema
é que se trata também de um impasse: ou
você “se adapta” às regras
oficiais de produção, e aí tenta
fazer por meio dos editais, ou você tenta fazer
na raça. A gente sabe que edital é uma
loteria, você não tem certeza alguma de
que vai conseguir fazer. Uma outra questão, mais
grave ainda, mas que nem se coloca porque ela é
da ordem de uma situação industrial, que
a gente definitivamente não vive, é a
questão da continuidade. Ou seja, você
até pode fazer um filme, mas qual é a
garantia de que vai conseguir fazer um segundo? Isso
se torna uma situação angustiante para
qualquer um, e cada um resolve ou se salva como pode.
Volto a insistir nesse ponto: o filme médio,
de dois milhões, dois e quinhentos, só
é possível ganhando editais ou então
num lance extraordinário de sorte. O “mercado”,
essa outra entidade do cinema brasileiro, que também
está muito mais pra fantasma do que pra alguma
coisa de concreto, esse “mercado” não
estimula, pelos seus próprios mecanismos, o filme
médio. Mas os editais possibilitam o filme médio,
que é o filme que paradoxalmente não tem
saída no “mercado”. Fica uma semana,
depois entra em um horário e some. Isso no meu
entender limita enormemente a possibilidade que os novos
cineastas têm de mergulhar justamente na dramaturgia,
de ousar mais. Então o que se faz? Junta-se os
amigos, uma câmera e pronto! Isso é um
erro? Claro que não, é uma necessidade.
Não discordo de você, Júnior, quando
você critica a questão dos modos de produção
como um valor em si, mas me parece que a questão
é mais complexa, ela se move às vezes
independente dos discursos, ela pode se refletir e resultar
em algo significativo, mais adiante. Em muitos momentos
a única coisa que te resta é mesmo juntar
os amigos e filmar, até pra não enlouquecer.
LCOJr: Eu não sou contra a pessoa juntar
os amigos, fazer uma vaquinha e produzir um filme. Meu
receio é que isso se transforme em bandeira.
LARM: Não sei se há mesmo um perigo
em transformar isso em bandeira. Em determinadas situações,
só há mesmo uma maneira de se fazer um
filme, e isso acaba sendo sim uma coisa inerente ao
filme.
LCOJr: Mas a partir do momento em que isso é
colocado como uma declaração de princípios,
cria-se um discurso dos “justos”, o discurso
do “correto”: o correto é fazer filmes
assim.
TM: Meu problema maior é que isso passa
ao largo da necessidade de enfrentar a questão
do fomento à produção. É
como se fosse assim: é, tem esse problema aí,
mas eu não vou enfrentar.
LARM: Mas a Belair também partia disso.
Os filmes eram feitos apesar do mercado.
LCOJr: O Júlio Bressane nunca escondeu
que começou sua carreira com a tal herança
que ganhou. Mas você já viu ele botar uma
cartela num filme dizendo “esse filme foi feito
com dinheiro meu”?
LARM: Não, mas o João Silvério
Trevisan, em Orgia ou O Homem que Deu Cria, lá
pelas tantas fala: esse filme custou tanto, a equipe
comeu sanduíche, não foi paga etc e tal.
Isso era naquele momento uma forma de você dizer:
“ô Embrafilme, ô Cinema Novo, nós
fazemos filmes independentemente de vocês”.
TM: O que eu ia dizer é justamente que
defender isso em relação ao Estrada
para Ythaca ou a qualquer filme feito neste espírito
hoje não é nem de longe a mesma coisa.
Não é uma encruzilhada, não é
um embate, não é nada disso. Não
se está atacando a Ancine, o sistema de editais
nem nada.
JGP: Está atacando um pouco os editais.
TM: Não. Está-se chorando a impossibilidade
de ganhar os editais. Essa é a verdade.
LCOJr: Minha questão é só
essa: não deixar transformar num valor artístico
em si essa coisa angelical de se fazer um filme só
com o dinheiro próprio. Porque isso, no fundo,
dialeticamente ou não, remete à burocracia
da qual você supostamente estaria se livrando...
É a própria artimanha da indústria,
da estrutura, invadindo a maneira como você vai
apreciar um filme... Eu quero apreciar o filme como
esteta, não como fiscal de gastos públicos
(ou privados, no caso). Pode parecer uma posição
aristocrática minha, mas não é.
LARM: Não é mesmo, pelo contrário.
A sua posição é francamente capitalista,
no sentido concreto: você fala da necessidade
de uma produção em que os filmes precisam
se pagar. Você não tem mais essa figura
do produtor que faz filmes para se pagar. Os filmes
surgem pagos.
LCOJr: Quando eu citei o Godard, que dizia que
fazia um filme pra possibilitar o filme seguinte, eu
estava querendo falar disso: ele fazia um filme para
se pagar e permitir continuar filmando. Isso o Godard,
que é a figura do cinema de autor por excelência!
LARM: Agora, por exemplo, uma questão
que eu coloco: hoje em dia, engessado da forma como
a gente está, nem o grande sucesso de público,
ou melhor, até o sucesso de público, é
inútil. Porque o máximo que um sucesso
de público consegue fazer é alimentar
as majors que investiram, eventualmente os produtores
e uma mínima cadeiazinha ali. Quando você
tinha uma situação de enfrentamento do
cinema brasileiro com relação ao cinema
estrangeiro, isso nos anos 70, 80, você dizia:
“bom, os grandes sucessos de bilheteria são
importantes pra abrir o mercado pro cinema brasileiro”.
Hoje em dia, você não tem isso. Os grandes
sucessos não abrem mercado pra nada. Eles simplesmente
são grandes sucessos para quem investiu. E se
eles não forem sucessos, tanto faz. Ironicamente,
a gente está vivendo o paraíso do autor.
Porque eu posso tanto fazer o filme comercial, como
eu posso fazer um filme em que passo duas horas filmando
a minha estante. Você pode optar por um ou por
outro, e na verdade não tem compromisso de que
esse filme vá reverter futuramente numa determinada
relação que você tem do filme com
o mercado, com o público. É muito diferente
da época da Embrafilme, em que fazer um sucesso
de bilheteria significava mesmo uma pressão em
torno de um determinado mercado.
JGP: É engraçado, porque aí
volta a questão do autor, como definido na Cahiers.
Aquele autor da década de 1950, que conseguia
ser autor apesar das concessões que ele tinha
que fazer... Ou melhor, apesar não: por isso
mesmo.
LCOJr: Ele é autor, dentro dessa lógica,
porque mesmo sob as pressões dos grandes estúdios,
dos grandes produtores, sob a pressão do dinheiro,
do capital, da necessidade de fazer um filme que vai
dar público, que vai dar retorno financeiro,
e com todas as regras técnicas implicadas, mesmo
assim ele exerce um controle sobre a mise en scène
e sua expressão artística individual sobressai.
Nos estúdios americanos era uma loucura, você
tinha um limite de abertura e fechamento do diafragma,
coisas assim. Há todos esses códigos e
mesmo assim o cara vai lá e faz um filme que
tem uma visão autoral, que tem uma visão
particular de mundo. O diretor consegue ser um artista,
ter um estilo.
LARM: Mas isso é uma operação
da crítica, e antes você tem que comprar
essa idéia de que existe essa visão de
mundo e de que uma coisa está ligada à
outra, que um filme está ligado a outro e significa
a continuação dessa visão de mundo.
LCOJr: A questão interessante é
que um filme não está ligado a outro porque
ele retoma a mesma linha temática. Ele está
ligado a outro porque você vê ali o mesmo
estilo.
JGP: Eu estava querendo falar só o seguinte:
ele consegue trabalhar com as concessões. E eventualmente
as concessões o fortalecem. É o caso do
Losey. Aí depois o Losey vai pra Inglaterra...
Eu, por exemplo, acho O Criado uma maravilha,
mas enfim... Tinha essa visão de que o autor
às vezes até se fortalecia com as concessões.
LCOJr: Com as “limitações”.
É porque você está brigando. O lado
bom de você às vezes ter uma pressão
– sem querer fazer uma apologia de que o caminho
é o cinema dos estúdios – é
que cada plano é uma luta sua pra imprimir uma
visão pessoal num sistema formal constituído.
CN: Mas aonde você queria chegar com isso
aí, João?
JGP: O Luis Alberto falou do negócio de
que o cinema brasileiro é um “balneário”
do cinema de autor. Pois eu acho que a discussão
passa um pouco por isso: “ah, o cara não
precisa responder a ninguém, o filme já
está pago”. Ou então ele faz o filme
com o próprio dinheiro. A própria questão
do conceito visa o diretor, o diretor-produtor, que
traz essa visão do cinema de autor. É uma questão
que já existe desde a década de 50 na crítica.
LCOJr: É, ele é o beneficiário
último desse processo.
LARM: Ele não precisa se sustentar. Não
há briga. Há apenas um vestibular que
você precisa concorrer. Se passar para uma federal,
você tranca a matéria na hora que quiser.
Você está feito. [risos]
TM: Aí é a fala do Carlão
naquele debate em Ouro Preto em 2009, em que ele disse:
“É um absurdo um cineasta como eu ou Nelson
Pereira dos Santos termos que fazer um vestibular para
filmar.” O que eu acho uma fala maravilhosa. E
outra fala em relação a esses mecanismos
que eu também acho muito boa, e que tem a ver
com a questão de transformar os 1.700 reais em
bandeira, é do Guilherme de Almeida Prado. No
genial debate pós Perfume de Gardênia
na Cinemateca Brasileira, dentro da mostra Clássicos
e Raros, ele falou longamente sobre o assunto, colocando
tudo em seu devido lugar: “de um lado é
o vestibular, de outro é a iniciativa particular.”
A fala era algo assim:
“Eu já fiz filme na base da amizade, não
pagando quase nada à equipe, como esse Perfume
de Gardênia, feito logo após a morte
da Embrafilme na era Collor. Eu sei que se eu quiser
eu posso chamar as pessoas e elas provavelmente vão
topar, mas o problema é que isso não está
certo. Até quando vamos fazer isso? Eu quero
poder viver de fazer cinema, porque foi isso que eu
escolhi fazer. Eu não posso passar a vida toda
fazendo filme na garra. Isso você faz uma vez,
duas vezes, no início, ou quando não tem
outro jeito e você precisa muito realizar aquele
projeto. Só que não existe um programa
de continuidade. Não importa quantos filmes você
já fez, se você tem uma história,
nada garante que você vai poder fazer o filme
seguinte. Você está na mesma situação
que alguém que está fazendo o seu primeiro
filme. E os editais não são de cinema.
São de qualquer coisa menos de cinema. É
preciso ter estratégia, tem que escrever da forma
adequada. Não importa se você vai filmar
aquilo de fato. Ninguém diz que você tem
que filmar exatamente o que está lá. Mas
esse malabarismo mata.”
Então, a questão talvez seja a seguinte.
Se você faz um filme com 1.700 reais, todo mundo
diz “Beleza, você tá fazendo um filme
de galera, você tá fazendo um filme na
garra.” Mas isso é um improviso, não
pode ser advogado como modelo produtivo. Você
não sobrevive com isso. Nem materialmente, nem
como artista a longo prazo.
LARM: Você não sobrevive fazendo
um cinema de seis milhões de reais... Quer dizer,
você até sobrevive, mas durante um tempo.
Se você não conseguir mais fazer o seu
filme de seis milhões...
LCOJr: Os cineastas brasileiros do final dos
anos 90 perceberam isso e aí começaram
a fazer aqueles elefantes brancos em que o salário
deles era 500 mil. Você vivia cinco anos bem.
LARM: Mas isso é um problema das próprias
leis de incentivo.
TM: Mas é disso que eu estou falando.
O sistema de editais não ataca de fato esse problema,
e não há confronto contra essa estrutura
quando você chega e fala “Ah, beleza, tá
ruim mas eu vou resolver aqui...” Porque isso
também não te garante uma continuidade
pro seu trabalho. Da mesma forma que os editais não
garantem a continuidade ao artista veterano.
LARM: Ou seja, a situação atual
não garante continuidade para ninguém.
A rigor, nem para o Cacá Diegues.
LCOJr: Mas essa coisa de um “paraíso
do autor” implica que o profissional cineasta
não exista.
LARM: São poucos. O artesão mesmo
não existe. Conseguiram matar e enterrar o artesão.
CN: Mas o Daniel Filho também está
nessa? Ele não é um artesão [profissional]?
LCOJr: O engraçado é que o Daniel
Filho ficou como a figura do diretor que emplacou, que
descobriu a fórmula do sucesso. Sendo que na
verdade ele fez três filmes que emplacaram: Se
eu fosse você 1 e 2 e Chico Xavier.
O resto é dois copos de gelo, um balde de água...
[risos]
Parte 1: O
consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito
Parte 2: Cinema
de metiê / Fantasmas e ausências
Parte 4: A
conciliação / O paradigma do afeto e da
inocência / Alternativas de mercado
Parte 5: Personagens
da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"
Parte 6: Serras
da Desordem e O
Signo do Caos: ruídos / Considerações
finais
Setembro
de 2010
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