CINEMA FALADO, PARTE 4

A CONCILIAÇÃO / O PARADIGMA DO AFETO E DA INOCÊNCIA / ALTERNATIVAS DE MERCADO


LCOJr:
Queria discutir um pouco mais algumas palavras que estão retornando bastante aqui na conversa. A primeira delas é o “afeto”, que no mais das vezes está ligado a uma narrativa meio solta, vaga. Eu vejo filmes de pessoas talentosas do ponto-de-vista artístico, plástico, mas que estão trabalhando numa certa zona de indiferença estética, ficam só numa relação efêmera com o personagem, numa narrativa flutuante. Eu senti isso um pouco no filme da Marília Rocha, A Falta que Me Faz, embora seja um filme até interessante, sobretudo no momento em que uma das personagens entrevistadas começa a afrontar a equipe e fala: “E você aí, o que você faz?”, e o cara diz “Eu cuido do som”, “Como assim? Que som?”. Eu acho que o filme vale por esse momento aí, quase epifânico, em que, na falta de alguém que cutuque a personagem, ela mesma vai lá e cutuca a equipe. Ela começa a falar assim: “Você aí que fica andando de um lado pro outro, o que você faz? Pra que você serve? Você é casado?”, “Sou casado pela terceira vez”, “Que safado que tu é, hein?”. O filme, anteriormente, perguntava: “ Você tá grávida, né? E você namora?”, “Namoro”, “Então ele, o pai, não teve problemas para assumir?”, “Não, mas o pai não é esse que eu estou namorando não, o pai é outro, é um ex-namorado”. O filme vai colocando isso como uma aproximação somente afetiva, tentando dizer que não há preconceitos. A personagem, por sua vez, desmonta sem entraves a rede de afetos. O cara fala que foi casado três vezes e ela diz: “Então tu é um safado”. Eu acho que o filme ganha muito ali. Ela é o contracampo em todos os sentidos do filme.

NM: Mas o filme tem uma afetividade muito falsa também.

TM: O que me incomoda no filme é que ele fica filmando mãos e cachos de cabelos e não sei que outros detalhes... Porque eu concordo que ela tinha uma matéria-prima muito boa ali.

LCOJr: O filme termina com um plano conciliador. Uma música romântica, um casal numa moto, meio O Céu de Suely (que é talvez o modelo principal de narrativa flutuante).

LARM: Conciliação é outra palavra chave da década, porque eu acho que o que caracteriza essa geração nova é a conciliação.

LCOJr: Mas agora é uma conciliação pelo afeto. Você tinha no começo da década o debate em torno dos filmes conciliadores, como Central do Brasil – que não é nem dessa década, é do final da década passada –, que trabalhavam na chave social e histórica. Falou-se muito de uma estética de conciliação: essa coisa de um país que está no limiar de um novo capítulo da sua história e começa a querer conciliar o Brasil profundo com um Brasil metropolitano, ou o passado com o presente, como naqueles filmes históricos, aqueles monumentos irrisórios de Guerra de Canudos, Mauá... No Central do Brasil, a conciliação é entre centro e periferia, classe média e interior pobre, rural, religioso. Conciliar a metrópole maldita com o sublime daquele Brasil profundo. Amélia [2000], da Ana Carolina, já problematiza essa lógica da conciliação: ela vai falar de História e presente, ou melhor, do Brasil do presente a partir de um episódio fictício da passagem da Sarah Bernhardt pelo Rio de Janeiro no começo do século XX, confrontando o Brasil moderno e o ultrapassado, a capital europeizada (o Rio de Janeiro da bela época, a “Paris dos Trópicos”) e o interior de Minas Gerais (o Brasil espoliado, explorado em séculos anteriores), a Europa civilizada e o Brasil arcaico, selvagem. Ela confronta tudo isso para depois expor a marca mal cicatrizada de uma conciliação não conciliatória, naquele espetáculo no epílogo do filme, com madame Sarah usando uma perna de pau e as matutas mineiras vestidas de índio, numa encenação de I-Juca Pirama em francês num palco europeu. São mundos inseparáveis, interdependentes, mas não reconciliados.

LARM: Há dois lados que foram colocados. Um está condensado numa palavra que o Ismail Xavier gostava de usar, que é “contaminação”. E o outro é a “conciliação”. Mas eu acho que as duas palavras vão para caminhos às vezes até bem diferentes. A contaminação pelo menos pressupõe uma certa briga de um organismo com o outro.

LCOJr: Um belo filme não reconciliado é O Príncipe, do Ugo Giorgetti. É um filme que num Cinema Falado antigo da Contracampo sofreu muitas críticas, por ser um filme que “não se contaminava”. Mas eu acho que ele se contamina sim, e muito. A narrativa é centrada naquela figura lá do cara que é o intelectual que volta da França com aquele padrão europeu, civilizado, e chega em São Paulo e vê uma cidade completamente modificada, uma cidade degradada, na visão dele – e é um filme de ponto-de-vista, acima de tudo. É um filme de não reconciliação. O cara vai embora mais revoltado ainda: o abismo, a distância que o separa do Brasil, da São Paulo de hoje, só aumentou.

LARM: E poderia ser um filme desastroso, porque poderia ser um filme episódico, em que cada personagem que ele encontra vira um episodiozinho. Mas não, vira uma saga, uma odisséia que é pequenininha mas que é significativa.

LCOJr: Tem uma cena muito forte, no final, em que ele encontra uma mulher na fila de embarque no aeroporto de Guarulhos. Ele está indo embora, voltando para a França, do tipo “Desisti de vez”, e uma mulher começa a se engraçar para ele: “Ah, você está indo ou voltando?”, “Voltando.” Aí ele fala que na verdade mora lá na França, e ela fica ainda mais ouriçada: “Ah, você veio aqui a quê? A passeio ou a trabalho?”, “Não, eu vim para um enterro”, acho que ele fala isso, porque é a coisa do primo, que está doente e que se mata. E aquilo é acachapante. É um filme para não reconciliar nada, é para rasgar a ferida que já estava aberta. Nesse sentido eu acho que foi um dos filmes interessantes da década, porque é um filme de 2002, num momento em que ainda se estava falando de uma estética de conciliação, que tinha sido forte nos anos 90, e esse filme chega para dizer: “Esse aqui é o ponto-de-vista do não reconciliado.”

TM: Eu acho que existe este mesmo ponto de vista no Solo [Ugo Giorgetti, 2009], que é do ano passado. Porque o Giorgetti é essa figura da não reconciliação total. E é isso, o filme é muito amargo, não tem mais possibilidade, não tem horizonte.

LCOJr: Mas a figura da conciliação saiu de moda, na academia parou-se de falar. E se você pode falar de conciliação agora de alguma forma, eu acho que ela passa por essa coisa da afetividade. É o Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo [Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, 2009], é o ultimo plano do filme da Marília Rocha ser o casal andando de moto com uma música fofinha. É essa coisa de, no fundo, estar todo mundo protegido pela bolha de afeto. O que eu acho que é o principal defeito do filme do Valente, No Meu Lugar, que é um filme que tem uma proposição forte, que parte de um tema e de um conflito dramático muito fortes, mas que peca justamente no momento em que não assume um ponto-de-vista. Ele embaralha tudo naquele sistema retórico que a montagem cria para que a ação não tenha uma conseqüência. É essa incapacidade de falar: eu vou arriscar um ponto-de-vista aqui, eu vou arriscar em um determinado momento talvez não ser mais justo com esse personagem, ser cruel, mas, no entanto, eu vou arriscar ir além. Cria-se, ao contrário, essa zona de indiferença, esse relevo muito plano onde você não tem um acidente – é preciso haver um acidente para você trabalhar aquela matéria que é forte em todas as suas possibilidades.

LARM: A questão é que o filme é construído a partir de um acidente. De um acidente não, de um acontecimento trágico. O problema é que isso se dilui, a tragicidade do filme se dilui.

CN: Ela está sempre no fora-de-campo.

TM: Ela é desarticulada, na verdade. O filme é todo fundado na negação de uma afirmação da causalidade e de uma pseudo-verdade unívoca.

LCOJr: Eu acho que ele consegue complexificar a questão no sentido de que ele consegue traduzir a dificuldade de você enxergar a origem, os motivos. Ele não trata de uma forma leviana a violência, esse problema do conflito da classe rica com a favela, que está ali do lado, que participa da mesma topografia urbana. É sintomático a casa ser no alto. É uma região de mansões de elite situada no morro, perto de uma favela. E ele consegue não transformar isso numa coisa leviana, não criar articulações bobas e frouxas. Mas, ao mesmo tempo, ele dilui muito, dissolve tudo nesses anti-clímaxes do filme. E eu acho que aí ele perde a chance de não apenas fazer um filme que se sustenta como discurso, mas fazer um filme que proponha algo além do discurso. De alguma forma, eu acredito que tem coisas, e esse tipo de violência é uma delas, que você tem que realmente tentar entender a fundo. Naquele texto seminal sobre o Samuel Fuller, o Luc Moullet fala uma coisa que eu nunca esqueço: “apenas o ponto de vista sobre o fascismo de alguém que se sentiu tentado é digno de interesse”. O mesmo se pode dizer da violência entre as classes: você precisa admitir essa violência como uma coisa sua também, para só então arriscar entendê-la.

TM: Por outro lado, eu também não acho que o filme funcione numa chave da perplexidade. Porque ele poderia ser um filme perplexo nessa impossibilidade de apontar uma origem, de se conseguir fechar um sentido, no espírito de: “pô, mas por que uma coisa dessas acontece?”.

LCOJr: É porque não tem o sentido da tragédia.

TM: Exatamente, ele não busca apontar nada, mas ele também não constrói essa perplexidade, essa mudez.

LARM: A cena de que eu mais gosto, e que não tem nada a ver com o resto do filme, é a cena da conversa do tio com o cara. É a cena de que eu mais gostei porque é uma cena que investe na direção de ator, que tem essa preocupação. É um filme bem-realizado nesse sentido, e em outros também – no sentido técnico, por exemplo. Tem um investimento nessa coisa do ator. E eu acho que tem inclusive uma maturidade na direção dos atores que num certo sentido surpreende bem.

LCOJr: Você falou tudo: o filme tem uma maturidade na direção de atores que é surpreendente. O filme tem certas nuances de atuação, em que o personagem está tão bem construído no seu modo de ser que de repente a maneira como ele acende um cigarro ali naquela situação em que ele está oprimido, em que ele está tenso, aquilo dá toda uma densidade, uma espessura existencial ao personagem, o que eu acho muito legal. Tem um certo trato do rapaz entregador com a mãe dele que é muito interessante também. Você consegue ver alguma vida que se criou ali.

LARM: Mas, por outro lado, eu acho complicado o fato de eu gostar dessa cena. No sentido de que ela está um pouco à parte do conjunto do filme. É como se eu tivesse gostado de um outro filme dentro daquele filme. É como se eu tivesse gostado de um momento, que não é propriamente o filme.

JGP: Mas o filme é isso, ele quer achar outros filmes.

LARM: Tudo bem, mas ao sentir isso eu me incomodo. Por mais que eu ache que a cena ficou legal, eu acho que é uma cena que não necessariamente está contribuindo organicamente para o filme.

TM: Mas aí é que está. O filme não é nada orgânico.

LARM: Mas se isso é uma proposta do filme, não ser orgânico, eu também acho complicado. Porque no fundo, uma outra coisa com que eu me bato também no filme, é que querendo ou não, ele acaba afirmando certos estereótipos. Por exemplo, uma classe média vitimizada, uma favela violenta, um favelado que no final das contas é um assassino, um policial que é mais ou menos vítima e mais ou menos vilão. Ou seja, no fundo, os estereótipos afloram muito mais do que a tentativa de não estereotipar – uma tentativa que eu acho que existe no filme. Isso me incomoda também profundamente. Com o título No meu lugar, eu achava que a idéia de vários pontos-de-vista iria aflorar no filme, mas você tem um ponto-de-vista só, você tem o lugar lá de quem criou o filme, mas não dos outros personagens. Como eu não leio críticas antes de ver os filmes, e portanto não li nada em relação ao filme, fui vê-lo no escuro e senti isso, me surpreendi um pouco com essa rigidez e, no final das contas, com os estereótipos a que os personagens acabam respondendo. Mas essa cena do diálogo com o tio eu achei que extrapola o filme. Mas se isso por um lado é uma qualidade do filme, é uma cena boa, por outro lado é problemático. Porque aponta para um filme que não é o filme, para algum outro filme que poderia estar incluído ali.

NM: Eu concordo, o problema do filme é o conjunto que ele cria. Você reage a alguns efeitos específicos de registro, de dramaturgia, de encenação. Mas é só isso. E o que isso forma, o que isso representa em termos de conjunto? E eu acho que o Eduardo Valente tinha uma vontade de dizer algo sobre o Rio de Janeiro, resolver uma questão dele com a cidade, fazer um olhar sobre a cidade, e pra mim isso não existe no filme, eu não consigo entender isso no filme. Pelo menos eu não. Eu não consegui juntar essas coisas.

LCOJr: Eu consigo identificar ali alguma coisa de uma classe média da zona sul do Rio. Alguma coisa no modo de sentir a cidade...

LARM: Sinceramente, eu acho que o que atrapalha o filme é o afeto. É o afeto como filtro.

LM: A relação do policial com a filha dele me incomoda muito. É uma coisa extremamente afetuosa, parece até meio incestuosa.

LCOJr: É proposital: você só vai descobrir que ele é pai dela depois de algum tempo. Eles dormem na mesma cama. Está lá essa ambigüidade do incesto. A questão que me desagrada é a inocência imposta a tudo: a relação dela com o pai é inocente, tudo é inocente.

CN: Mas o filme é todo pautado pela inocência.

TM: Não tem safadeza.

LCOJr: É mais do que safadeza, é você entender que o mundo é atravessado por forças obscuras.

LM: Mas também não é querer colocar uma forma de viver da classe média? Vai ver, toda essa afetuosidade existe nas famílias de classe média e ele queria inseri-la dentro daquele pessoal do subúrbio – o policial, por exemplo.

LCOJr: Por isso identifico o filme a um certo modo de sentir de uma classe média da zona sul do Rio, de uma geração Los Hermanos, onde existe uma rede de afetividade, um afeto circulando no ar. Isso pode funcionar muito para certas famílias de classe média, onde o filho tem um carinho muito grande pela mãe, etc. E é interessante falar também da nossa geração como a geração que se reconciliou com os pais. No sentido de que aquele atrito geracional que existiu, que tinha inclusive como figura dramática clássica o filho dando soco em ponta de faca porque ele quer buscar um outro lugar que não é o que os pais estão querendo construir para ele, esse embate geracional é uma coisa que a gente não vive, existe uma reconciliação dos projetos. O nosso projeto não é um projeto que bate de frente com o dos nossos pais. Eu acho que um filme que versa sobre isso é esse da Laís Bodanzky, As Melhores Coisas do Mundo. É um filme sobre uma geração que vive no aquário e que, de repente, vê aquele bem-estar que ela herdaria por osmose ameaçar se perder. Alguma coisa aconteceu àquele bem-estar. O pai é gay, namora o orientando dele. Mas o filme vai lá e reconcilia isso. Inclusive em termos de roteiro o filme é uma tosqueira das maiores que a gente viu recentemente. O namorado gay do pai lê assiduamente o blog do personagem do Fiuk. Aí ele interpreta as postagens dele e descobre que o menino vai se suicidar, e avisa à família. Esse elemento que havia separado a família, em tese, é o que vai ser o agente conciliador. Ele desagregou a família mas ele vai lá e salva o garoto. E é engraçado que na cena final, do hospital, está todo mundo lá dentro do quarto menos ele, o namorado. Ele juntou a família, ele vai ser aceito, porque a gente está falando aqui de uma sociedade que é tolerante, que quer conviver em paz com as diferenças, então, beleza, a gente aceitou o seu namoro com ele, mas a reunião de família é sem o cara. E isso fala muito, inconscientemente, sobre a hipocrisia de uma sociedade conservadora que quer mostrar que já absorveu as revoluções sociais.

JGP: Tem toda essa questão do namorado. Mas desde aquela cena em que o pai fala para os dois filhos que é gay, a única coisa que o Fiuk diz é: “Ah, mas como é que você pode?”. Mas não parece realmente que ele está se batendo com o pai. O filme só se interessa em mostrar a incompreensão momentânea dos filhos em relação à homossexualidade do pai. Isso vai ser conciliado. Como vai ser conciliado, eu não sei. Mas não importa. Você vê aquela cena e quase não é uma fagulha dramática, algo que você diz: “Ih, quando é que eles vão se reconciliar?”. Você vê e já sabe que eles vão se reconciliar. Não é uma trama. A questão nem é se o filme é previsível (“sei que, alguma hora, pai e filhos se reconciliarão”), é que não há nem a vontade de os personagens encarnarem uma violência dramática, de forças antagônicas – o interesse parece mais sociológico do que dramático. Você vê pela reação do cara, é só um neném chorão.

LCOJr: É isso, um neném chorão. Porque não existe nenhuma ferida social, moral, com o passar do filme. E é um filme que mostra essa mudança de paradigma em que o garoto só vai fazer aquilo que o adolescente naturalmente está destinado a fazer, que é ir arrumar uma namorada, ele só vai fazer isso, na verdade, e tem uma coisa bizarra aí, quando ele vê que aquele bem-estar da família dele, do casulo, foi comprometido de alguma maneira. Aí o cara vai tentar buscar o território da sua própria vida. Tem também o filme do Heitor Dhalia, À Deriva, outro draminha de divórcio, onde tudo o que a menina queria é que aquela família continuasse ali alegre, funcionando, acordando cedo, abraçando mamãe, dando beijinho na testa do papai, tomando café todo mundo junto e conversando depois sobre como foi o dia. E essa perturbação da ordem vira uma catástrofe. Mas o filme vai arrumar um jeito de salvar aquela imagem da propaganda de margarina. Esses filmes não querem destruir a imagem da família vendida pela publicidade. Pelo contrário: eles querem sustentar o bem-estar que a publicidade vende, mesmo face às dificuldades que os comerciais escondem e que o cinema mostra.

JGP: Imagina se o Fiuk virasse um skinhead. Ia ser muito mais interessante. [risos]

LARM: Pode ser um delírio, mas eu acho que de alguma maneira isso representa um estado político. Aí fazendo mais um link com um filme que eu adorei do Clássicos & Raros, que é o Ninfas Diabólicas. Esse é um filmaço. E é a destruição do comercial de margarina, da família feliz. O filme destrói essa imagem, toda essa imagem que a gente vê hoje em dia sendo ardentemente desejada pelos cineastas, e aí a gente vê na verdade um grande muro de lamentações do tipo “por que nós não somos unidos?”. E no filme tem o seguinte: vamos destruir essa imagem que no fundo é hipócrita, dessa união que no fundo não quer dizer nada. Isso vindo de um filme da Boca do Lixo, roteirizado pelo Ody Fraga, fotografado pelo Ozualdo Candeias e dirigido pelo John Doo. Só a nata. É porrada em cima da classe média. E esses filmes atuais que a gente vê, eles partem de uma outra perspectiva. E aí, mais uma vez, a questão dramatúrgica. Um filme como por exemplo Cão Sem Dono, do Beto Brant. Eu acho que o Cão sem dono é um filme que assume a dramaturgia do reality show.

LCOJr: Curiosamente, depois ele faria um filme que aborda isso.

LARM: É, mas começa no Cão sem dono. Qual é a dramaturgia do reality show? É um conceito, é a dramaturgia como dispositivo. Um filme como Cão sem dono é um filme com uma dramaturgia construída a partir daí, ou seja, a partir dessa substituição da dramaturgia pelo dispositivo. Portanto, é uma dramaturgia do dispositivo em que você tem o conflito não propriamente como uma coisa que nasce, mas como uma coisa que é imposta, ou seja, como um teorema. Então você tem o seguinte: este é o quadro, essas são as regras. Você tem na verdade regras, limites, pode-se filmar assim, dessa forma, você só pode fazer isso, você tem que ficar assim, você deve fazer isso. São regras propositivas, e você capta o que nasce daí. A cena chave do Cão Sem Dono é justamente a do diálogo do pai com o filho, na praia. Ali você tem a conciliação, ali você tem o afeto e ali você tem o murmúrio, que é a chave da dramaturgia do reality show: alguém murmurando com a outra pessoa uma coisa.

LCOJr: E é um plano inexpressivo, ele tem essa neutralidade da câmera de vigilância.

LARM: Eu estava conversando com o João Gabriel, a gente estava falando dos anos 80, e eu falei para ele: “Nos anos 80, o ser humano saiu de moda. Só nos anos 90 é que ele voltou”. E nos anos 2000, ele ficou aprisionado pelo 1984. No Cão Sem Dono até tem crise histérica, mas a câmera está lá impassível, e colocada em cima, quase como uma câmera de vigilância. Isso é tão perverso porque isso é imposto pelo próprio governo, na medida em que estimula o baixo orçamento, e o baixo orçamento estimula poucas locações, e poucas locações estimula você a filmar num apartamento. Então você acaba juntando a fome com a falta de apetite.

LCOJr: O Cão sem dono é um filme de que gostei muito quando vi pela primeira vez. Esse ano eu revi e ele caiu bastante. E passa muito por várias das questões que você colocou aí. Esse último filme dele [O Amor Segundo B. Schianberg], que é uma continuidade bem evidente do reality show, pega esse lado de que o cotidiano, o cotidiano de dois jovens de São Paulo, é uma obra de arte em potencial. Isso exime você do ponto-de-vista, isso exime você da construção.

LARM: É o afeto-instalação. [risos]

LCOJr: Passamos do plano-afeto ao afeto-instalação. E o engraçado é que o Brant veio com esses dois filmes depois de ter feito Crime Delicado, que é um dos grandes filmes da década sobre ponto-de-vista, sobre indagação moral.

LARM: E de afeto também, mas um afeto que não é esse afeto bonitinho e domesticado.

LCOJr: É um afeto que guarda esse lado cortante, perverso.

LARM: Coisa que não existe, no meu entender, em No Meu Lugar nem em vários outros filmes.

LCOJr: Sim, na maioria. São as leis da afecção. Em 2006, o Stéphane Delorme, que é o atual editor da Cahiers du Cinéma, escreveu um texto de que eu gosto muito, que se chama “As leis da afecção”. Ele fala dessa situação em que “cada personagem é um momento do afeto” e as narrativas se trocam por flutuações. O que você tem na verdade são esses estados afetivos se revezando ao longo do filme. E ele cita até o Abel Ferrara como alguém que reintroduz uma porrada nisso, uma cesura ficcional. Uma bomba explode e isso faz com que você tenha que sair desse regime afetivo e ir para um outro regime, um regime dramático. Aí não tem jeito, o mundo pede para que você saia dessas leis da afecção e caia numa outra rede, que é uma rede onde você tem forças obscuras, forças vampirizando o personagem, e você precisa lutar contra isso. É um mundo em luta. Mas essa coisa das leis da afecção, isso rege realmente uma parte considerável da produção – e aqui sim a gente pode tranqüilamente extrapolar o Brasil e falar de um world cinema, que é feito todo ele sob o signo da afecção. Um retorno triunfal – e triunfante – da tal imagem-afecção, que é quando o personagem absorve um estímulo, uma ação exterior, e reage a ela interiormente. Aquela coisa do plano da pessoa lá, no ônibus, no carro, com o vento no rosto.

JGP: Passam uns três ou quatro curtas assim por sessão de curtas que a gente vê por aí.

AF: A minha mãe fez um comentário genial: “Eu odeio esses filmes que ficam filmando a pessoa pensando”.

LARM: É porque em geral a gente não tem voz over para entender o que o cara está pensando.

LCOJr: Não é igual à novela, em que a pessoa chega e diz: “Eu ainda vou apanhar esse patife...” [risos]

LARM: Quando não isso: “O quê? Ele deixou uma carta?” [risos]

LCOJr: Eu gosto quando é assim: “Ah! Então... então ele é o pai da fulana! Ele matou ciclano!!” [risos]

LARM: Porque você pode ter perdido 200 capítulos da novela e você entende.

LCOJr: Mas isso é muito engraçado. Outro dia eu estava vendo essa novela das oito, a Passione. É impressionante: a matriz dramatúrgica-estética do Projac é a Pathé do início do século passado. Eu vi uma cena em que estavam lá dois personagens falando do personagem do Gianecchini e tramando alguma coisa contra ele, e aí ele aparece no fundo do cenário e percebe que estão falando dele. Há um móvel qualquer, algum elemento cenográfico, e ele fica ali escondido ouvindo. E faz aquelas caras, aquelas expressões. Isso é filme de 1908, são os primeiros filmes da Biograph.

LARM: O David Bordwell daqui a pouco vai estar analisando as novelas da Globo no site dele.

LCOJr: A função da cenografia é a mesma. E a relação dos personagens com os cenários, em níveis profundos, é a mesma do drama burguês primitivo, lá na Pathé.

LARM: Hoje em dia as novelas estão melhores que o cinema brasileiro.

LCOJr: Outro dia eu estava vendo Zorra Total e teve uma esquete que, talvez por ser uma comédia física, que obriga a uma relação física do ator com os cenários, com os espaços cênicos, trouxe um comentário sobre a nova classe média que eu ainda não vi em novela nem em filme nenhum. Era uma esquete de um casal recebendo dois casais amigos para jantar e ninguém cabia no apartamento. E ele falava: vai entrando, tem espaço para todo mundo. E as pessoas amontoadas, se roçando uma na outra. Tem uma hora em que o cara fica preso entre a porta e o fogão e a mulher abre a geladeira e dá na cara dele. Um comentário, toda uma construção em cima de um novo modo de habitar da classe média brasileira. E é aquela coisa, aquela dramaturgia: botou umas três câmeras no cenário e fez tudo num fôlego só, talvez duas tomadas pra pegar os melhores ângulos, e acabou. E é uma parada que fala sobre um certo modo de habitar hoje, fala sobre a arquitetura. Nas novelas, não importa se o cara é pobre ou rico, ele sempre mora num cenário enorme. Os interiores são sempre enormes, para você evitar problemas de logística. Enfim, eu achei genial essa esquete.

NM: Sabe quem passa Zorra Total em aula de direção? Fernando Severo.

LCOJr: Ah, o Fernando Severo! Ele tem um curta que eu acho um dos melhores filmes da década, o Visionários.

NM: Visionários é filmão. O Severo tem um longa que passou em Gramado, o Corpos Celestes. É um projeto conjunto dele com o Marcos Jorge. O filme venceu o edital do governo do Paraná, foi realizado, mas circulou pouco. Eu não vi. Passou uma vez, em Gramado, e depois em Tiradentes. Até onde lembro, é uma ficção que ao lado de uma trama de personagens desenvolve um interesse por astronomia ou cosmonáutica, incluindo efeitos pesados em CGI. No contexto de Gramado, o Eduardo Valente e o Rodrigo de Oliveira estavam entusiasmados com o filme.

Mas o Severo sempre reclamou da dificuldade de fazer filmes. Acho que em algum momento ele tacou o foda-se e decidiu fazer projetos que pudessem ser feitos, ou seja, ele parou de eternamente esperar que surgissem as condições ideais para se fazer o que se quer. Tem um pouco a ver com o que falamos de profissão: para ser cineasta é preciso fazer filmes, e cineasta que não faz filmes talvez vire cineasta de cartão de visita, cineasta cujo filme você não lembra, mas cujo nome você ouve falar quando é preciso fazer alguma articulação política. Então ele se meteu em projetos que sinceramente acho fracos. Mas não é que ele seja inconsciente sobre o que ele está fazendo, não é isso.

LARM: Uma coisa que talvez seja só um parênteses mas que talvez dê para linkar com isso aí que você está falando: o Severo é de Curitiba, ou pelo menos radicado em Curitiba. E a gente está falando dele porque é um cara que teve um filme em Tiradentes e tal. Você levantou uma questão com ele. Eu estou pensando que a gente está discutindo determinados filmes do Ceará ou de outras regiões única e exclusivamente porque eles estão nesse circuito. E isso é interessante, porque isso é uma repercussão, e no fundo só é uma repercussão porque eles estão vindo para um circuito do Sudeste.

LCOJr: A vitrine ainda é aqui.

LARM: É só um parênteses. Porque eu me lembrei do cinema de Cascavel por exemplo, que ninguém fala e ninguém viu.

JGP: Que filmes são esses?

LCOJr: São filmes de ação, filmes de porrada, produzidos ali na fronteira entre Brasil e Paraguai. Uma coisa meio Miami Vice. [risos]

LARM: Num momento em que a política oficial é você descentralizar, sair do Rio-São Paulo, ter cotas etc, a gente continua falando de Rio-São Paulo, a gente continua falando de uma coisa, no fundo, extremamente provinciana.

LCOJr: Eu vejo o meio do cinema brasileiro como uma coisa muito provinciana.

LARM: Mas isso foi só um parênteses, porque eu achei interessante você ter falado nesse cara. Ninguém aqui fala de Fernando Severo. Só se falou aqui porque você, Nikola, é de Curitiba.

NM: O Fernando Severo, como diretor, não tem uma formação teórico-acadêmica ligada a estudos do cinema. A relação que ele tem com filmes é muito intuitiva – não só com filmes, mas com arte em geral. Quando ele dá aula, ele é muitas vezes incompreendido pelos alunos porque fala sem medo: eu acho isso um porre, não quero saber disso, veja esse Herzog que eu acho bom. E assim ele acaba indicando também Zorra Total ou Bollywood. Eu não sei o que sai disso, não acho que é garantia de nada, mas vamos ver.

LCOJr: Eu acho isso interessante. Porque eu bato muito naquela idéia da cinefilia de butique, que consiste nesse estado em que está todo mundo vendo os mesmos filmes, que são os “filmes certos” a se ver. Às vezes, contudo, uma esquete do Zorra Total te revela alguma coisa que os “filmes certos” ainda não revelaram.

TM: Eu queria completar esse negócio que o Luís Alberto falou de Cascavel: ninguém nunca fala do Petter Baiestorf. É um cara que tem um modelo completamente próprio que me impressiona. O cara faz filmes trash em VHS e ele vive disso.

CN: Mas ele consegue pagar as contas com isso?

TM: Sim, porque ele vende os filmes dele na internet, a dez reais. As pessoas compram. E ele vive disso, de comercializar os filmes que ele faz. Aí ele junta um dinheiro e investe em outro filme, vai lá e faz um filme com 2 mil reais.

LARM: Mas ele paga o apartamento dele?

TM: Tudo. Ele não tem outra atividade. Acho que no máximo trabalha numa locadora. Mas ele vive essencialmente disso. Então realmente é uma atividade econômica para ele, de onde ele tira sustento – e ele está fazendo o que ele quer. Eu acho isso muito impressionante. Porque tem um nicho, ele tem um público cativo, então os filmes geram lucro. Isso é muito louco.

NM: É tipo um Calypso do cinema. [risos] Você tem iniciativas de gente que está fazendo filmes não na louca, mas sem ter formado um plano de carreira tendo em vista a ascensão a um certo patamar de premiações ou circulação em festivais ou qualquer espécie de reconhecimento de uma classe cinematográfica ou crítica já existente. Ele faz simplesmente porque está a fim de fazer cinema, exibe e vende o DVD depois da sessão. No SESC de Curitiba, fizemos uma sessão com um cara que fazia isso. O nome dele é Guataçara Jorge Maftum. Ele produziu o longa Caçadores de Espécies, que é dirigido por Nycolas Maftum.

LARM: Mas é um cara de que idade?

NM: Guataçara está na casa dos trinta anos, talvez, tramando com uma garotada mais nova. Eles querem fazer filmes de ação e de aventura. Gostam de Jurassic Park – e aí tem um dinossauro no filme. Eles até pegaram emprestado o helicóptero do Corpo de Bombeiros! Tem uma mega produção. É feito com essas referências, como se fosse um filme de amigos mesmo. É como pegar o vizinho do bairro e fazer um filme para curtir, e depois você divide isso com outras pessoas e, a partir de um momento, isso vira uma economia. No final da sessão, eles oferecem uma cópia em DVD, “se quiser comprar o filme, é R$5”. E explicam: “A gente conseguiu dinheiro assim, a gente vai comprar uma outra câmera, para fazer um outro filme”. Eles estão fazendo filmes para pagar o próximo filme. Mas é, por outro lado, uma coisa inocente, gerada por uma utopia de cinema americano, que parece ingenuamente vislumbrar o blockbuster, como se isso fosse uma alternativa real e viável para o cinema no Brasil.

TM: É, é ingênuo.

NM: Isso fica claro nas referências que alimentam esse cinema. Tenho impressão que eles acreditam que um dia vai rolar, vai ser um blockbuster. O que é totalmente utópico, não vai acontecer. Não nos termos do cinema americano. Terá que ser outra coisa.

LM: O cara da Versátil tem um selo espírita, e ele fazia muito isso – agora eu não sei como vai ficar com a extinção das locadoras – de vender o filme para as locadoras do interior do Brasil, pegar esse dinheiro, fazer o filme espírita, e lançar só em vídeo, DVD, VHS, mandando para essas locadoras que o compraram. E são fenômenos de locadoras.

LCOJr: O mercado de filme espírita é uma coisa que a gente desconhece, ignora as dimensões que isso tem hoje em dia.

TM: E outra coisa que pode parecer boba, mas não é, são esses remakes de animação da Disney, Pixar e Dreamworks. Tem o Carrinhos, Abelhinhas, Robozinhos e outros, de um selo chamado Videobrinquedo.

LM: É o Alê Machado que faz bastante isso. Eu não sei se ele é a única pessoa que faz, mas ele fez Carrinhos. Enquanto a Disney está pensando no projeto, ele está aqui antenado. Aí ele licencia mochila e tudo mais, tudo com o tema do Carrinhos. Na época do filme, você coloca aqueles produtos no mercado e vai vender, porque se confunde Carrinhos com Carros.

LCOJr: O produto se camufla nas prateleiras. O famoso oportunismo.

LARM: É o tênis Bike, que não é Nike. Dá um golpe de vista e compra.

TM: É um modelo oportunista, mas que funciona. Talvez sejam os filmes que mais geram lucro, que têm um público imenso, e isso é, no fundo, uma produção brasileira que a gente ignora.

NM: Esse oportunismo pode ser baixo, rasteiro, mas pode ser totalmente subversivo. Eu não acho que seja obrigatoriamente condenável. Isso é uma estratégia de lançamento de filme B.

LARM: A minha questão é: isso tem força no mercado para alterar alguma coisa? Porque isso me parece uma produção minimamente viável.

TM: Eu acho que o cara pode fazer um Carrinhos, que é inspirado em outro, mas que tenha uma linguagem própria.

LARM: O ponto dessa questão é que hoje as pessoas estão proibidas de fazer um filme médio.

LCOJr: A gente só tem filme de exceção.

LARM: A gente só tem filme de exceção! A gente só é cultura, não tem regra. Agora isso vai parecer um discurso reacionário, esse que a gente está tendo, mas é absolutamente não-reacionário no contexto.

TM: Esse tipo de animação de que estávamos falando é um filme que vai ser comprado, consumido, vai atingir aquelas pessoas com determinada mensagem ou o que quer que ele tenha. E existe um potencial ali que a gente não está vendo, a gente não sabe o que tem lá.


Parte 1: O consenso / "Cinema de qualidade" / Filmes de conceito

Parte 2: Cinema de metiê / Fantasmas e ausências

Parte 3: Cinema de gênero? / Os meios de produção / O paraíso do autor

Parte 5: Personagens da era Lula / "É tudo abstrato hoje em dia"

Parte 6: Serras da Desordem e O Signo do Caos: ruídos / Considerações finais


 Setembro de 2010