No louvável espaço criado pelo blog
Dicionários de Cinema, pode-se ler o
clássico texto “O cinema e a memória da
água”, escrito há vinte anos por Serge
Daney, e agora traduzido para o português. Selecionei um
trecho desse artigo,
que continua sendo um dos melhores já escritos sobre a
relação entre cinema e
publicidade, como ponto de partida para a pergunta que lanço
em seguida: “O
interesse de Imensidão Azul
é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a
vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que turva,
entre ‘cinema’ e
‘publicidade’ não tem já
talvez razão de ser. Porque o cinema é demasiado
fraco
e a publicidade demasiado forte. O início dos anos oitenta
terá visto a
legitimação cultural e depois estética
da publicidade”.
E os anos 2000? Terão visto o quê?
Terão visto a crítica, que tinha por
missão guardar a fronteira, marcar as
diferenças (atitude traduzida em textos como esse do Daney),
sucumbir à
publicidade. Primeiro porque nunca soube definir o que era a tal
“estética publicitária”,
criando um rótulo impreciso, nuns casos,
equívoco, em outros, e ineficaz, na
maior parte das vezes. Um rótulo, mas nunca um conceito. A
crítica errou, em
primeiro lugar, por essa imprecisão. Em segundo, porque
aceitou o jogo, caiu na
dança. Sempre achei que a crítica seria a
última trincheira, a última barricada
antes do triunfo publicitário. Mas não: de uns
tempos pra cá ela parou de se
revoltar contra a publicidade. Após deixar de se incomodar,
começou a achar que
a publicidade não só não era
tão má quanto se pensava, como ainda trazia
coisas
boas. E agora veio o pior: nem sabe mais distinguir o que é
e o que não é
publicidade. Perdeu o olhar. Responde de modo favorável, ou
complacente, ou
negligente. No caso da negligência, é
assustador: simplesmente
não consegue mais perceber o mundo se
trocando por signo
publicitário. Olha para um papel de parede e vê o
mundo. E escreve sobre o
papel de parede como se falasse do mundo. A publicidade e suas
práticas mais
hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não
só). Nessa visão de
cinema, o “criar” não é mais
identificado a um trabalho dinâmico com a matéria;
é um retrocesso simbólico, onde a
idéia passeia livre, leve e solta – a
idéia
sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e
com o olhar. É o mar sendo
substituído por “um grande azul de
síntese”; o ator servindo de portfólio
para
o preparador de elenco. O filme sendo uma embalagem para uma idéia
de filme.
E essa idéia é sempre rasa, sempre
retrógrada, não tem como ser de outro jeito.
No cinema brasileiro, 2008 foi um ano não muito diferente
dos anteriores: ruim
na média, porém salvo da apatia pelos cineastas
de exceção (Bressane, Carlão,
Mojica, Tonacci – tudo que se pôde ver de realmente
criativo e brilhante veio exclusivamente
de veteranos). Mas olhando para a
recepção da crítica, constatando quais
foram os filmes mais discutidos, Ensaio sobre a cegueira e
Linha de
Passe liderando com folga, a
impressão que tenho é que está tudo
bem, o cinema brasileiro está fazendo os
filmes que os críticos pediram alguns anos
atrás (ao menos é assim com Linha
de Passe: o cinema que não julga personagens, fala
dos problemas do Brasil
pelo filtro justo da câmera afetiva e do final aberto),
então eles estão
satisfeitos. Como estrutura
de
produção, a publicidade já tinha
vencido no país há pelo menos dez anos (salvo
exceções, as mentalidades que regem os projetos,
desde o orçamento à
organização do set, são inteiramente
derivadas da publicidade). Depois venceu também como estética.
E agora, como se não bastasse, recebeu a última
medalha que lhe faltava, a da
crítica. Esse título conquistado pela publicidade
significa que finalmente os
filmes conseguiram que nós não os acusemos mais
de parecerem publicitários. Eles
pedem para que não sejam julgados e atendemos ao pedido.
Pois os dois líderes de holofotes em 2008 representam dois
tipos antagônicos de
publicidade; filmes em total sintonia com uma época pouco
afeita ao espírito
crítico, porém muitíssimo afeita
à retórica e ao pensamento institucionalizado.
De um lado, o excesso, o exagero, o esteta histriônico, a
publicidade enérgica,
que impõe a concatenação
rápida de signos ululantes, um filme perfeito para
quem gosta de “ler” filmes (Ensaio sobre a
cegueira). Do outro, a
retração, a afasia, a concha segura do olhar
voluntarista, inofensivo, a
publicidade bem intencionada, que parte da fórmula
“o universal é o mais local
possível” (Linha de Passe). Em
ambos, o humanismo lúdico como válvula de
escape.
A mise en scène como forma de
inteligência, como linguagem unificada da
percepção sensível e do conhecimento
objetivo do mundo, essa mise en scène
está em baixa por aqui.
Analogamente, na crítica, onde um mínimo de
atrito se deveria produzir,
encontra-se a complacência, o consensualismo, o olhar
não-provocativo, confortado
pelas imagens, consolado pelo fato de que filmes ainda existem e estes
se levam
a sério o suficiente para merecer um texto dedicado. O olhar
que não cobra, não
provoca, não afronta os filmes mesmo em face de sua
mediocridade, esse olhar
parece dizer: façam qualquer filme, bom ou ruim, consistente
ou leviano,
fascista ou humanista, mas me dêem o que escrever.
A crítica brasileira não ligou muito para o fato
de que em Ensaio sobre a
cegueira – cujas imagens estouradas constituem
um efeito visual profundamente
óbvio enquanto transposição da
significação para a forma – faltou a
Meirelles a
desconfiança do bom artista, que hesita diante do caminho
mais fácil (não
confundir com o mais simples) e termina por rejeitá-lo, e
sobrou-lhe a
convicção do bom publicitário, que se
regozija de suas idéias paquidérmicas, de
seu modo de significação agressivo, descarado,
que renuncia à criatividade sem
crise de consciência, já que amparado pelo bom
funcionamento das imagens. Os
filmes, hoje em dia, precisam acima de tudo funcionar.
O verbo invadiu
os sets de filmagem e agora também a crítica:
atrás da câmera ou na frente da
tela, todos procuram a imagem que funciona. Eis porque a
crítica não se
incomodou com Blindness e no geral aprovou, pois
reconheceu ali um bom
discurso-através-de-imagens, uma boa
transcrição visual do texto. Reconheceu um
filme que funciona, e isso, cada vez mais, é o que lhe
basta. Miséria da
crítica.
Mas questionemos também o filme, sua estética, e
não apenas sua recepção: desde
quando a isquemia da forma é a melhor expressão
de um mundo espiritualmente
gangrenado? Será que tudo aquilo que regeu a obviedade
estética de Ensaio
sobre a cegueira era mesmo fruto de um pensamento sobre a
forma, ou não
passou de uma frivolidade, de uma falta de objetivos outros que
não a
excitação, o choque, o conteúdo
leviano das mensagens? Houve quem enxergasse no
filme – sem dúvida alguma tendo em mente o aval de
Saramago – o protesto de uma
alma nobre contra a corrupção moral de sua
época. Partindo dessa perspectiva, e
fingindo que Meirelles acertou no tom, concluiríamos que ele
atingiu o terreno
da sátira, gênero no qual os romanos, perante as
vicissitudes de seu império,
foram mestres. Ora, para conduzir a sátira ele precisaria
dispor de uma
sabedoria aguda, de uma zombaria elegante, de uma raiva
sarcástica, ou seja,
ele precisaria de tudo aquilo que falta a seu filme.
Houve também quem narrasse a experiência de
assistir a Ensaio sobre a
cegueira como de grande intensidade, sempre flertando com o
desagradável
das imagens. Essa mesma intensidade deve existir em uma propaganda de
cartão de
crédito, pois ontologicamente se trata da mesma coisa, e o
que define em grande
parte a natureza da experiência é o teor
ontológico das imagens, para além de
seus enunciados (que, de todo modo, seriam também os mesmos,
as propagandas de
cartão de crédito nada mostram senão
um mundo igualmente degradado, cujo verniz
de superfície nos é entregue sob a forma de
mercadoria visual, apenas
confundindo essa degradação com bem-estar social
e financeiro).
Onde esteve a crítica nisso tudo? Não se pode
dizer que esteve ausente. Pelo
contrário: esteve, na maior parte das vezes, e num bom
número de veículos,
entregue a discussões (prolixas). Porque se o filme
funciona, ele dá o que
falar. E a crítica está menos preocupada em ver
uma obra que a obrigue a pensar
a forma e manifestar o gosto (essa ferramenta indispensável
do crítico,
ultimamente tratada como opcional e, não raro, afastada do
“oficio”) do que em ter
o que discutir. Quanto menos um filme sacudir sua
posição de analista de
discurso, quanto menos o impelir a reavaliar seus parâmetros,
mais longe vai a
discussão (nunca mais fundo), pois tende ao vazio, e o que
tende ao vazio dura
indeterminadamente. Às vezes me ocorre, lendo boa parte dos
textos e dos
debates, que os críticos de cinema no Brasil
estão cada vez mais parecidos com
os comentaristas de futebol: analisam os jogos em repetitivas e
enfadonhas
mesas redondas, mas não arriscam dizer para que time torcem.
Em teoria, isso
seria uma espécie de profissionalismo, de maturidade, uma
certa imparcialidade
sóbria. Na prática, isso representa o
esvaziamento do espaço crítico e a
iminência de um estado acrítico. Calar o
juízo estético e gerar infinitas
análises, debates, opiniões; viver em paz mesmo
com os filmes mais medíocres,
ou mais publicitários; abandonar a
provocação, o rigor; tornar-se imune a
gostos ou desgostos profundos: tudo isso é no
mínimo muito perigoso, se
quisermos manter viva não uma postura intelectual dentre
outras, mas uma postura
crítica.
No limite, os especialistas estariam procurando nos filmes
não mais a beleza,
as emoções ou o sentido geral da obra. Eles
estariam procurando compreender o
que o diretor está dizendo – sentindo-se
até mais generosos ao fazê-lo, mas
essa generosidade é traiçoeira e num segundo
momento se revela o disfarce
predileto da complacência –, captar a mensagem (e,
através disso, cultuar sua
própria sensibilidade, sua percepção,
sua capacidade de articulação, em suma,
sua “personalidade crítica”), pescar as
idéias que motivaram as imagens fora
das imagens (fugindo, assim, da evidência do filme).
Procurando o projeto, o
produto, não a obra. Derrota da mise en
scène, triunfo dos efeitos de
enunciação – publicidade de novo.
O próprio personagem não importa mais. Importa o
autor, o olhar do autor
(Godard há mais de dez anos já tinha mandado uma
carta-bricolage para a Cahiers
du Cinéma falando dos efeitos nefastos da procura
constante pelo autor).
Parece inconcebível, mas ninguém se importa mais
com o fato de alguns filmes
mostrarem personagens desinteressantes, em ações
desinteressantes, nulas,
vazias, estúpidas. Os críticos estão
preocupados em saber se o olhar do diretor
é justo ou não, carinhoso ou não,
articula um bom discurso ou não, etc. A perda
de conexão com o personagem denota a perda de
conexão com o mundo dos filmes.
Não interessa mais o mundo, interessa a mensagem e seu dono
(seu proprietário).
Morte da fascinação.
O cativante da ação de um personagem, cabe aqui
expor, não está necessariamente
no seu potencial de espetáculo, nem na sua qualidade de
intriga. Em alguns dos
melhores filmes de John Ford, por exemplo, os personagens passam 90% do
tempo
sem fazer nada de intrigante. Só que alguma coisa acontece
quando vemos John
Wayne pilotando seu jipe em Donovan’s Reef,
ou falando sobre os males de
mascar tabaco em Legião Invencível,
ou comparando sua altura com a do
seu filho em Rio Grande. Alguma coisa acontece
porque estamos vendo um
mundo, e isso nos fascina. Estamos vendo um gesto e um
espaço, e a mise en
scène desse gesto nesse espaço.
Nos filmes brasileiros mais debatidos em 2008, faltou
a presença de um
mundo. E que tipo de mise en scène se
faz sem um mundo? Não se faz mise
en scène, se faz publicidade. É a
enésima manifestação (que, como uma
alergia, vem pior a cada vez que se manifesta) de tudo aquilo que
Godard foi o
primeiro a constatar com melancolia (cf. Duas ou
três coisas que eu sei dela:
redução violenta da imagem em
função da superfície, o mundo sendo
achatado
pelos signos da publicidade, e o cinema à procura do arrière-monde
que
essas imagens-clichê escondem, negam, apagam terrivelmente
– mas Godard é
astuto o suficiente para, como observou Bonitzer, encontrar a
via-láctea numa
xícara de café expresso).
O problema de Linha de Passe, portanto,
não é a ausência de intriga ou
as ações “pequenas” de seus
personagens, mas é um fator anterior, um mal
difícil de curar, desencadeado no momento em que seus
eventos se tornam
simulacros de significações (como,
aliás, já ocorria desde Central do
Brasil),
em que seu mundo se troca por um painel publicitário que
mostra São Paulo pela
ótica do marketing social: campanha eleitoral (o cineasta
agindo como o
candidato que vai lá na periferia, abraça os
pobres, passa a mão na cabeça de
todos, posa de bom moço, depois volta pro lugar
confortável de onde veio e do
qual nunca saiu, a vida segue como ao final de uma
eleição que deixou tudo em
suspenso, por mais que se tenham alimentado expectativas,
crenças) e campanha
de conscientização (lembrar daquela asquerosa
câmera subjetiva do rapaz que
quer ser jogador de futebol “fritando” na cena da
festa, comparável às piores
vinhetas antidroga da MTV, ou mesmo do ministério da
saúde).
Quando penso na gênese de filmes como Linha de
Passe e Ensaio sobre a
cegueira, imagino uma sala fechada, com pessoas discutindo
uma idéia que
expulsa para longe de si toda exterioridade, em favor de uma
operação puramente
abstrata, que não encontra satisfação
senão em si mesma.
Essa cena imaginária
seria apenas mais um capítulo da
“retomada”, não fosse o dado novo, o da
crítica que quer debater, mas não quer criticar.
A diferença entre uma
atividade e outra, assim como a diferença entre o cinema e a
publicidade, é o
que precisa urgentemente ser resgatado.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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