Numa
cena de Damas
do Prazer, uma velha
chata
acorda uma menina que dorme a tarde inteira. A coroa, achando que ela
não contribui o suficiente com as economias da casa,
começa
a importuná-la com assunto de dinheiro.
“Então o
problema é dinheiro?”, a menina resmunga.
“E
existe algum outro tipo de problema?”, a velha rebate. A
menina
puxa umas notas que guardava debaixo do colchão e entrega
para
a velha, que muda o tom: “Ah, sim, durma bem, quem trabalha
à
noite precisa descansar durante o dia!”. Diálogo
perfeito. Todos os diálogos de Damas do Prazer
são
nesse nível.
O
filme acompanha um
grupo de prostitutas que trabalham no mesmo ponto, uma
calçada
na Boca do Lixo. Elas compõem um painel
heterogêneo: a
japa, a loira com ar de interessante (que fica ouvindo rádio
de pilha enquanto aguarda os clientes), a veterana, a novata, a
experiente etc. Cada uma possui sua história particular
(será
que Ody Fraga – autor do roteiro – se inspirou em A
Rua da Vergonha, obra derradeira de Kenji Mizoguchi, que ele
pode
ter visto num daqueles muitos cinemas que existiam na Liberdade e
exibiam exclusivamente filmes japoneses?). A loira está em
guerra com o cafetão. A veterana tem um filho adolescente
que
vive em estado semi-vegetativo. A japa vai receber a visita dos pais
e precisa trocar toda a cenografia de seu apartamento e fingir que
leva outra vida. A novata se envolve com um cliente que está
sendo traído pela mulher. A experiente se apaixona por
Corsário, um jornalista desiludido que enche a cara no
boteco
que elas freqüentam e solta frases filosóficas de
vez em
quando. Na pausa para a janta, a pedida é sempre um PF
indigesto. Os almofadinhas do cinema brasileiro contemporâneo
ficariam com o estômago embrulhado. Eles não
conseguiriam filmar esse universo sem estilizá-lo de alguma
maneira. Não haveria nenhuma franqueza no olhar, nenhuma
naturalidade na representação. Tudo viria
mediado,
fosse pelas boas intenções das ciências
sociais,
pelas boas referências de homens cultos e ilustrados ou pelo
bom gosto da nova tradição de qualidade do cinema
brasileiro. Mas na verdade eles não têm muito
interesse
em filmar o baixo meretrício.
Damas
do Prazer
é um filme distante da realidade atual do cinema brasileiro
por uma série de motivos. O primeiro deles é o
fato de
ser um filme cru e direto, que só trata de
questões
concretas. Não há metáfora nem
eufemismo. E não
há fantasmas nesse filme. Ou melhor, todos os seus
fantasmas,
todas as suas assombrações são na
verdade
presenças, são
questões relativas a
pessoas vivas ou a dificuldades reais. Um filho deficiente
físico
e mental. Uma esposa infiel. Um cafetão explorador e mau
caráter. Um aluguel para pagar no fim do mês. Cada
um
deve lidar com seu problema da maneira que pode.
O
homem traído
pela esposa faz psicanálise selvagem com uma das putas. Ele
tem seu grande momento quando a mulher chega em casa e o pega na cama
com a garota. A esposa discute com o marido, mas ele logo a manda
calar a boca e se juntar a eles na cama. Ela aceita. Poderia haver
contraponto maior ao papo furado que toma conta dos filmes de casal
contemporâneos?
Numa
outra excelente
cena, a puta veterana pega o metrô na
Estação da
Luz. Uma música triste, quase fúnebre, acompanha
seu
trajeto. Para onde ela vai? Só descobriremos no decorrer da
cena. O roteiro do filme se escreve ali, na verdade sensível
de uma trajetória. O metrô é filmado em
horário
normal de funcionamento, a câmera entra no vagão e
se
aperta entre os passageiros como se fosse, também ela, um
corpo posto em cena. Alguns olham para a câmera, outros
não
estão nem aí. Hoje os produtores telefonariam
para a
prefeitura e pediriam para usar o metrô fora do
horário
de funcionamento, ou então escolheriam um horário
bem
pouco movimentado, para evitar as pessoas. As pessoas atrapalham o
filme. O cinema brasileiro está formal demais,
burocrático
demais. Um cinema que precisa pedir permissão para filmar
–
e que se programa todo antes de ligar a câmera. Ou seja, um
cinema que não flagra a nudez do real.
Vendo
filmes dos anos
1970, percebemos uma coisa que era muito forte neles e que agora
praticamente inexiste: a sujeira da calçada, a atmosfera das
ruas, a respiração coletiva das grandes cidades.
Aquela
poeira do tempo que circula no ambiente urbano não interessa
mais aos cineastas?
Voltemos
a Damas do
Prazer. O destino da mulher que pega o metrô
é a
casa em que seu filho deficiente se encontra. Os planos que o
apresentam são estranhos, “incorretos”,
despudorados, no limite da crueldade. Carinho com o personagem
é
uma ova. Essa história de carinho e afeto, que virou a moeda
de troca mais corrente no cinema e na crítica, encobre na
maioria das vezes uma covardia diante das principais
questões
morais. Em vez de definir um ponto de vista sobre o personagem, o
filme embarca com ele num universo de sensações.
O
plano-afeto é a dramaturgia das almas frouxas. A verdadeira
moral do cineasta é sua crueldade, pois somente ela pode
despertar no espectador uma consciência
incontornável
sobre as coisas, isto é, uma necessidade de estabelecer um
ponto de vista, de afrontar. O olhar cruel é o oposto do
olhar
inocente; é o olhar que reconhece as forças
obscuras
que atravessam o mundo. Esse olhar consiste tão-somente em
encarar as coisas de frente e admitir que toda
ação tem
uma conseqüência. Lang, Renoir, Mizoguchi, Eastwood,
Pialat, Bresson: os grandes cineastas morais sempre nos mostraram que
a existência tem um peso.
É
o que faz
Antônio Meliande na cena da eutanásia: as
ações
de pegar a seringa, preparar a injeção, injetar a
substância letal e aguardar pela morte são
mostradas em
sua duração agonizante, em seu peso bruto. Os
planos
destacam das ações e das expressões o
essencial,
seguem uma decupagem dramática, constroem o tempo
da cena.
Saber decupar é saber entender o momento dos personagens.
Nessa
cena de Damas
do Prazer, uma mãe põe fim à
vida de seu
filho. Por amor e por desespero. “A eutanásia
é a
morte por amor”, Corsário lhe havia dito. Meliande
decupa tudo, passo a passo. Escolha cruel, escolha moral.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Setembro de 2010
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