CINEMA FALADO, PARTE 6
A juventude brasileira não se pertence

RG: Acho que tem um filme que completa o conjunto de filmes desse ano que, pelo menos pra mim, constroem um universo de afetos significativos. É o filme do Jorge Durán, o Proibido Proibir, que, curiosamente, participa da mesma urgência que eu vinha falando do Tropa de Elite, evidentemente com uma modéstia diferente, uma missão diferente, com uma perspectiva diferente. Há algo que de certa forma trabalha no horizonte dramático que o audiovisual brasileiro vinha trabalhando, mas não dessa forma. O universo de adolescentes em período de colégio ou universidade é algo trabalhado e de uma forma extremamente repetitiva e reiterativa pelas novelas...

EG: Isso é uma característica da produção desse ano, esses filmes com adolescentes, o Ódiquê, Podecrer, Cidade dos Homens, Os Doze Trabalhos...

RM: Nesses filmes, ser adolescente, ser jovem é importante. Esse espírito jovem é determinante do que o filme vai dizer.

RG: Em nível de urgência, o Proibido Proibir está em outro patamar em relação a todos esses filmes. Não que esses personagens ganhem uma individualidade toda própria, ao contrário, ele quer criar um retrato de um certo tipo de adolescente. Acho que em alguma medida é, porque por mais que a menina seja de zona sul e os outros dois sejam de fora e venham cursar universidade, de alguma forma os três acreditam que o ofício que eles estão aprendendo na faculdade vai construí-los como pessoas aptas a construírem uma sociedade melhor. A visão que a Maria Flor tem da arquitetura é o vínculo dela com a sociedade. A maneira como o Caio Blat vê o medicina é um vínculo com a sociedade; a maneira que o menino que faz ciências sociais vê seu curso é um vínculo com a sociedade. É a coisa que mais diferencia esse filme, essa relação de alguém que em algum momento vislumbra isso não sob o aspecto individual do dinheiro que talvez eles vão ganhar, mas que revoga o nexo de sociedade ali onde ele talvez possa surgir, e eu diria que surge pra muitas pessoas e é um universo que praticamente não existe num circuito que a gente está acostumado a ver, de adolescentes, de adulto, de Malhação, de novelas... A gente não está acostumado e não são personagens típicos de uma contemporaneidade; é algo que sempre existiu desde que existe adolescência como uma idade que é uma idade existente e não uma idade intermediária, ou seja, dos anos 60 pra cá.

EG: Acho que o conceito de adolescente surgiu a partir dos anos 50, e no cinema brasileiro os filmes que retratam adolescência são a partir dessa época.

RG: É, na verdade é a passagem de um pra outro. A gente entende o acontecimento da juventude como um grupo social quando ele começa a virar consumo. É a música pop, os Beatles. Quando ele começa a ser uma entidade que reclama. O Vietnã, por exemplo, os movimentos estudantis. Então é, na verdade, na virada desses 50 pros 60. Mas a idéia que o Proibido Proibir traz como, não digo novidade, mas como elemento diferencial em relação aos outros, é uma certa pungência, veemência num discurso que implica um certo travamento de que alguém tem um sonho e em determinado momento descobre que existe uma realidade que é muito mais complicada. Que existe falta de equipamento pra lidar com o real e isso acontece tanto do ponto de vista do próprio métier deles quanto do ponto de vista de outras coisas que acontecem, a saber, o fato de que eles encontram um moleque que está sendo perseguido por policiais e isso acaba colocando em risco não só as esperanças como as próprias vidas deles.

LCOJr: Esse fracasso prévio dessa juventude está no próprio espaço, na própria arquitetura. O filme termina num ícone da arquitetura moderna (o mirante na serra para Petrópolis) totalmente gangrenado, esquecido pelo tempo. Todos aqueles espaços que o filme percorre, a própria universidade em que o filme se passa é justamente isso, produtos de um certo projeto modernista, certo projeto de socialização do espaço e tal que deveria migrar pra Baixada – e a Baixada é justamente onde acontece a parte trágica do filme – e que, no entanto, ficou ali, como algo no meio do caminho, que simplesmente degenerou com o tempo. Os Doze Trabalhos, por mais que ele tenha uma certa pujança de contato com o cotidiano da grande São Paulo de hoje, a gente não pode esquecer que o filme é uma fábula. Ele se deixa ler desse modo e cria um certo envelope de ficção do qual acho que o Proibido Proibir está a milhas de distância. Proibido Proibir é esquemático, mas te pega.

DC: As coisas que você falou sobre a arquitetura... Eu acho que ele tem esse questionamento, mas não consegue encadear isso com aquilo que nos pega que é, basicamente, as relações entre os personagens. Que é essa relação do retrato de pessoas, de uma juventude que está surgindo aí, que são algumas seqüências um pouco discursivas. Eu me lembro muito bem daquela cena no edifício Gustavo Capanema. É uma questão que o filme tem, mas o filme não associa a gente a isso.

LCOJr: Mas o interessante é que o filme coloca isso como algo que veio antes desses personagens... A coisa está no espaço. Se está no espaço, precede os personagens. Por isso que o filme é trágico, justamente porque o sentido da tragédia é esse, algo que já havia antes, você não pode fazer nada. Existe um céu de chumbo sobre o filme, o filme é nubladíssimo.

RG: É, ele define uma inscrição impossível, num geral, do herói existir.

LCOJr: O filme foi feito numa época de teto baixo no Rio de Janeiro, e isso cria um sentido de asfixia absurda. Não tem aquele Rio de Janeiro alto astral, solar; ele é nublado, cinza.

BB: Embora eu concorde, e penso sobre a insinuação do Ruy sobre essa urgência do filme, uma coisa que acho estranha e que me incomodou é que existe a transposição, que pra mim foi clara e depois fui pesquisar e descobri que era verdadeira, de um roteiro da década de 70 adaptado pra uma época atual. Fica claro que era uma história que deveria ser ambientada na ditadura. Aqueles PMs foram modernizados, se tornou o novo tipo de opressão, só que fico pensando que talvez a diferença de geração... Se você pensa, inclusive, no tipo de adolescência que é retratada ali, que os personagens têm um ideal e ficam perseguindo... Pra mim fica muito claro que não é uma adolescência de hoje em dia.

LL
: Acho que essa associação é proposital.

BB: O final do filme aponta, o que eu acho muito interessante, para o começo de uma nova geração. Uma geração em que as ideologias estão um pouco falidas, e no final das contas nada dá certo.

DC: Os três se acertam.

BB: Eles se acertam, mas todos os problemas que eles tinham em relação à parte social do mundo não.

RG: Eles têm que se acertar sozinhos num lugar isolado.

BB: Eu fico me perguntando se aquilo não é o início de uma nova juventude com uma certa descrença no mundo e alienada.

LCOJr: Uma questão importante, em nível simbólico mesmo, é o fato de ser um mirante. Eles estão olhando as coisas de cima. É basicamente um cul-de-sac, o famoso sem eira nem beira, o filme não tem pra onde continuar, mas também não tem pra onde recuar, é basicamente isso.

RG: Creio que não é uma juventude típica, que a gente vá associar à época, mas isso também diz respeito à economia dos clichês que a gente tem numa certa época. Imagino que muitas pessoas acreditam que o vínculo delas com a faculdade não vai ser simplesmente uma maneira de ganhar dinheiro...

LCOJr: Mas esse anacronismo ideológico existe em qualquer universidade do Rio. Ele dá uma sacaneada nisso. Com cinco minutos de filme o cara preenche um papel dizendo que é o Che pra sacanear a galera do DCE.

LL: O Caio Blat é esse cara irreverente no começo, mas depois ele tem uma tomada de consciência. No meio do filme ele manda um "proibido proibir" que todo mundo fica meio calado.

LCOJr: O filme é meio mal resolvido com essa tomada de consciência. Mas tem cinema ali! Aquele falso-raccord no final: você ouve "filhos da puta!" ou algo do tipo, você pensa que é o Alexandre Rodrigues xingando o Caio Blat e a Maria Flor que estão se beijando, e depois corta na direção dele, xingando para o precipício... Tem cinema ali. É um filme que acho que me pega muito por isso, também. Uma coisa para além de roteirinho, de estereótipo. Tem uma força. Acho que isso é inegável no filme.

RM: Eu concordo com você, mas o que eu aproximava dos outros filmes é que acho que nesse ano especificamente tem uma temática adolescente, e não são só personagens adolescentes. Como o Podecrer.

RG: O Podecrer não podia ser um almanaque anos 80.

GS:
O filme se passa em 81, numa época aonde não tinha se concretizado a cultura dos anos 80. Então as referências culturais e dramatúrgicas do filme não eram de 1981.

EG: O filme tem uma referência ao Menino do Rio do Calmon, que é filme de 82.

GS: Não dá pra pensar em termos de verossimilhança. Só que o filme se propõe a ser um retrato de uma época. Então os personagens de 81 têm toda uma cara de 75 – só que em termos de roteiro é muito tolo. Completamente tolo. Quer construir referência de amizade, mas é tudo forçado. O personagem do Stepan Nercessian é completamente desnecessário. Em termos de cronologia, poderia se passar em qualquer época, e como retrato ele não se concretiza de maneira nenhuma.

RG: Da gravidez em diante o filme vai ladeira abaixo.

EG:
No começo do filme até o meio é só referência, têm as imagens em super 8, coisas dos anos 80 de um modo geral. Depois ele joga a narrativa, com a coisa da gravidez.

RM: Até aí eu posso concordar, mas acho que esse olhar do Estevão parte de ir ao filme armado pra encontrar as coisas, se é ou não é, essa não é uma questão do filme, até com o Menino do Rio você está preocupado... Isso não é o centro do filme. É um filme sobre uma coisa de adolescência, que se reflete sim nas outras épocas.

GS: Totalmente caricato.

RM: Eu não acho, adolescência tem isso, levar o violão pra praia, querer ter banda... A música é importante, a preocupação com a gravidez. Pode-se dizer que as questões são as mesmas. Malhação também trata de algumas questões, mas Podecrer é um filme que trata de questões mais complexas, tipo a gravidez, como os adolescentes vão lidar com isso, até fumar maconha, usar droga. E é um filme divertido.

RG: Isso é subjetivo.

RM: Acho que o filme dá indícios e propõe situações que provocam esse tipo de sensação no espectador. Você exige do filme uma coisa a que ele não se propõe.

LL: O que eu acho importante disso que o Rapha está falando, além do subjetivo, que eu não acho que seja subjetivo, é que o filme não se prende a uma memorabilia dos anos 80, incluindo Menino do Rio, as músicas... Acho que o ponto do filme se passar nos anos 80 tem a ver com o sentimental do Arthur Fontes. Pra mim a nostalgia dele não é pelos anos oitenta e sim a nostalgia da adolescência, um filme sobre a adolescência como um todo.

LCOJr: Eu só acho que o cinema brasileiro tem que deixar de fazer cinema de brechó.

LARM: Não sei se foi você que falou ou se foi infringido por todo mundo, que a adolescência é sempre assim, engravidar, curtir música... Uma certa visão de atemporalidade. Um filme esquisito que eu vi, é o do Tambellini. O Passageiro – Segredos de Adulto. Ele faz um adolescente que tem uma verdadeira fixação por tudo que não é dele. É o carro do pai dele, a mulher do pai dele, é a própria mãe. Tem uma frase de um escritor, o Pavese, que diz que ser jovem é não se pertencer a si mesmo, e esse cara não tem nada, nem ele mesmo. Ele vai buscando referências, e elas são as piores. O pai é uma espécie de Renan Calheiros, a mãe é uma louca, ele vive um mal estar. O filme tem altos problemas. É uma mistura entre Sandra Werneck e Walter Hugo Khouri, é esquisito...

RG: A perfeita definição.

LARM: Mas trabalha um adolescente que não se preocupa com isso, com gravidez, com drogas. O adolescente se preocupa com as suas referências, e aí você entende melhor de onde vem isso, do Tambellini pai, e as diferenças com o que eles projetam, ele e o Podecrer. É interessante, apesar dos pesares.

RG: É curioso que não tenhamos ainda falado de Antonia, que não é só sobre a relação com a música, é sobre uma idéia de alguém num grupo social que quer se distanciar, quer se diferenciar, quer fazer alguma coisa, quer ter uma postura diferente, quer não se marginalizar, quer não ser crente. O filme demarca muito bem esses dois nichos. O que existe no Antonia é esse registro de uma juventude que tenta construir esse laço de pertencimento ao mundo, por uma certa tomada de consciência, por um trabalho que não é o oficial. Algo parecido em Os Doze Trabalhos: o cara tem lá o trabalho de motoboy, mas tem o mundo de desenhista, um mundo anterior ao qual ele tenta dar vazão.


Parte 1: Sociedade em descontrole: Tropa de Elite, o filme e o fenômeno

Parte 2: Universos sob controle: Baixio das Bestas e Santiago

Parte 3: Jogo de Cena

Parte 4: Um novo gênero? / Ficções cansadas

Parte 5: Cão Sem Dono

Parte 7: Justo uma conversa: Conceição




 
 






Proibido Proibir, de Jorge Durán


Podecrer, de Arthur Fontes