LCOJr: O naturalismo nos leva a um filme que
foi equivocadamente abordado de acordo com esses parâmetros
do que seria uma encenação naturalista, que é o Cão
Sem Dono. Já bati nessa tecla...
GS: Cão Sem Dono pra mim é o filme brasileiro do ano. Ele me impressiona, principalmente numa segunda revisão, porque num
primeiro momento ele me pareceu o filme que eu menos
gostei do Beto Brant. E hoje talvez seja o filme que
eu mais gosto. A forma com a qual ele vai apresentando
o personagem é muito sutil e interessante pra uma primeira
visão após um dia denso e movimentado, como aquele da
pré-estréia no Prêmio Jairo Ferreira.
DC: Cão Sem Dono pra mim é uma surpresa. O Betro
Brant vem se reinaugurando
a cada vez. A partir de O Invasor, sobretudo. A cada filme ele
vai para um canto que ele não tinha ido. Ele se arrisca.
De Crime Delicado pra Cão Sem Dono são mundos completamente diferentes. É um filme que vive
de epifanias. De uns momentos
em que a gente tem a impressão de uma
certa realidade da construção, da narração. De
repente parece mostrar uma família. De repente a gente
se sente em família no meio da família, isso é muito
legal.
LCOJr: O final é a coisa
mais abstrata do cinema brasileiro recente. Eu não entendo
por que o final é tido como algo construído, forçado,
programático e o resto do filme não. Isso que não entendo:
por que um campo/contra-campo
é algo artificial e um plano-seqüência com câmera na mão e pouca iluminação artificial
não é uma construção? São dois tipos de artifício.
RG: Eu acho
absolutamente banal a ressalva ao fim. É como se não
pudesse existir um happy end, um giro. Não é um deus ex machina
de forma alguma, é toda uma possibilidade, porque o
filme não é baseado numa lei de causalidade. Uma
série de eventos acontecem. Acho que existe um
certo vício de que pra ser sério tem que terminar
com uma chave grave no final.
DC: É que
a dramaturgia busca um frescor de algo que é não-programado.
TM: O final não é programado. Ele não esperava que
ela fosse ligar...
LCOJr: Eles aparecem juntos em todos os enquadramentos
do filme. Nesse final tem um campo/contra-campo,
e eles estão falando ao telefone – ao mesmo tempo separados
e unidos pela montagem. Não há nada que assegure você
da realidade daquele telefonema. É a cena mais fantasmática
do cinema brasileiro esse ano. Que seja um happy end. Que o cara esteja viajando pra Barcelona pra ver
a namorada. Qual o problema?
DC: Nenhum,
o filme acabou, tudo bem. Mas
o filme tem epifanias. Ele
não é, na verdade, uma construção, ao contrário, ele
é um filme de epifanias, o
que é muito legal, porque é o que ele nunca tinha feito.
LCOJr: É diferente de epifania.
O porteiro pinta aqueles quadros absolutamente abstratos
com tinta guache estilo naïf
num verso de jornal. Ele está ali falando: não vá pensando
que isso aqui é um suposto registro de uma realidade
objetiva. Existe algo no verso dessa realidade objetiva,
cotidiana, vagabunda, precária, de página de jornal,
que é a tentativa de uma expressão num tom abstrato,
num plano de uma coisa mais intimista, de uma percepção
outra de mundo. Da sensibilidade de um mundo que é diferente
dessa tentativa de simplesmente tentar captar a coisa
de um jeito "naturalista".
DC: Você
está confundindo. Eu não estou com a idéia de que era
preciso que o final fosse naturalista. Não é isso que
estou dizendo. Estou falando de um
certo frescor de real que não é seguir a realidade.
E o que acontece lá no filme é o que está programado
pela narrativa desde antes. O que seria uma surpresa?
Se de repente aparecesse outra pessoa...
LCOJr: Discutir se era uma surpresa, se estava
programado... Isso é uma discussão bizantina.
RG: Acho
que Cão Sem Dono, ao contrário de Crime
delicado, que é um filme totalmente controlado,
e isso que espanta, parece funcionar como uma forma
que vai pra um lado depois vai pro outro, o tempo inteiro.
Inteiramente desequilibrado ao ponto do overacting.
LCOJr: Mas o Crime Delicado também transbordava. Quando ele filmava o processo
de pintura, com câmera na mão, depois aquele depoimento
do artista plástico, já era um filme que buscava uma
certa fuga do controle.
RG: Mas acho
que uma fuga no sentido da técnica mista. De jogar o
preto e branco, de tentar métodos diferentes a cada
seqüência.
LCOJr: E do filme realmente não querer chegar
num lugar, não querer falar " fiz um filme por
causa disso...".
RG: Mesmo
porque o controle é o tema do filme. De alguém que pode
controlar o real, de alguém que pode descrever o real
de uma forma muito controlada. Há o momento do distúrbio.
Na verdade o distúrbio é o propulsor do cinema dele
desde o começo. Os matadores tem o Murilo Benício, que é alguém que sabe definitivamente o que quer,
e o outro que monta o personagem pra si mesmo. O Invasor...
LCOJr: São filmes que têm reviravolta de final.
O Invasor
tem o plano final de tirar o chão
RG: O distúrbio
do personagem é algo que ele achou que ia ser auto-protocolar,
um pequeno deslize protocolar que todo mundo fosse esquecer,
e não vai.
LCOJr: Os
Matadores é um filme que termina com uma inversão.
Com um personagem sendo confrontado numa situação a
que ele não pode reagir, ele se tem refém daquela situação.
Mas no Cão Sem
Dono eu não vejo, sinceramente, em momento algum
o personagem do Julio Andrade, o protagonista, se tornando
refém da narrativa, de uma intenção de autor.
RG: Eu acho
que no Cão Sem Dono ele justamente desgarra a
própria estrutura do filme. Muito mais que uma lógica
de composição, que a gente via no cinema dele, a gente
compreende cada seqüência como um acidente ao inesperado
pela própria narrativa. Uma série de causalidades. Daí
que o filme tece uma série de comparações possíveis
com o Pialat, por exemplo.
Esse real selvagem que antes causava distúrbio, uma
vez a cada filme. Dessa vez de certa forma o filme está
entregue a ele. É o encontro casual que faz com que
ele se relacione com aquela mulher. São encontros casuais
que fazem com que ela seja atropelada
e conheça aquele sujeito e que podem construir ao mesmo
tempo distúrbios destruidores, como o fato de que ela
tem uma doença e vai se separar, ou um distúrbio angelical
que é o telefonema real ou fantasmático, pouco
importa. Acho que é isso que dá consistência ao filme,
que a realidade se compõe desses fragmentos que você
não pode prever.
LCOJr: O fato de um personagem ter aparecido
numa cena não significa que ele vai reaparecer e não
importa se ele vai reaparecer. Se por ventura ele reaparecer
isso vai contribuir de alguma forma pro filme. É a
força dos personagens secundários do Pialat. Os personagens secundários do Cão Sem Dono são sempre um espetáculo à parte
do filme. Essa é a idéia, não importa se ele vai participar
de um minuto ou uma hora de filme, o importante é que
ele provou naquele momento que tem uma vida acontecendo
ali. Tem alguma coisa, tem um personagem de carne e
osso ali e esse personagem faz alguma coisa, faz um
conjunto de coisas.
LL: Mas tem
uma coisa importante do Cão Sem Dono que acho que quando as pessoas
estão falando de naturalismo, na verdade, elas estão
falando mais de uma vida. Cada aparição de um personagem,
cada situação é como se estivesse transbordando pra
fora daquilo que acontecia. Acho que uma identificação
que o espectador tem com o Cão
Sem Dono é exatamente desse transbordamento que
chega a você, não importa se um transbordamento controlado
ou com aparência de realidade. É como se cada seqüência,
de certa forma, pudesse ser uma unidade em si só que
se bastasse. Por isso acho, inclusive, que cada personagem
que entra tem essa importância tão forte. E cada seqüência
é muito forte. Aí vem a idéia do Daniel de epifania,
que não sei exatamente se é a idéia certa...
RG: É, se
ele fala epifania como o real brotando ali onde menos se espera, eu
concordo perfeitamente.
LL: Eu não
sei se é o real, ou não real...
RG: O simbólico
é a economia de valores do sentimento. O real é o inesperado
que faz todo sentido, aquilo que o simbólico não dá.
LCOJr: Epifania no
sentido baziniano, rosseliniano,
é isso que o Ruy está falando. Quando existe um momento
em que algum sentido latente no real brota.
Parte 1: Sociedade
em descontrole: Tropa de Elite, o filme e o fenômeno
Parte 2: Universos
sob controle: Baixio das Bestas e Santiago
Parte 3: Jogo
de Cena
Parte 4: Um novo
gênero? / Ficções cansadas
Parte 6: A juventude
brasileira não se pertence
Parte 7: Justo uma
conversa: Conceição
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