TM: Sobre atingir um
ponto de impossibilidade da própria obra, eu acho de
fato que Jogo de Cena é a resposta a O
Fim e o Princípio.
RG: Jogo de Cena é uma resposta ao modo como muitas pessoas viam o cinema
do Coutinho. Primeiro porque todo o cinema dele se baseava
em algo que as pessoas nunca falaram,
que era na idéia de mise en scène, só que a mise en scène transformada num esqueleto.
O que é mise en scène? Movimento de câmera, escolha do enquadramento...
quando pro Coutinho isso nunca
funcionou. Ao contrário: estava sempre muito bem escolhido,
mas estava escondido atrás de uma coisa totalmente humilde
e sutil que era basicamente o enquadramento de uma pessoa,
de um talking head. No entanto,
me parece que Jogo
de Cena explicita algo que sempre esteve lá e que
não é algo que nunca ninguém tinha falado, mas é algo
que explicita que no fundo não é importante o grau de
verdade do que está sendo falado. Não é nem essa
primeira verdade, que é a verdade como adequação a algo
que aconteceu, nem a verdade da coisa acontecendo, mas
é o simples ato de performance. É o simples ato de se
filmar alguma coisa e de se extrair algum momento de
intensidade daquilo que está acontecendo. Eu acho que
Jogo de Cena
é um filme em que isso está mais explícito, mas ainda
assim o filme não é só isso. O filme tem um nível de
trabalhar a relação com o espectador, na forma de familiarizar
o espectador com um certo modus operandi. Depois,
ao longo do tempo, quando menos você espera, ele já
altera isso e, sem que você perceba, ele já foi pra
um outro registro. No fundo você dava
como dado o discurso real de uma personagem que, só
porque você não conhecia o rosto, surgiu como um discurso
de verdade, porque pareceu que era uma pessoa anônima
e uma pessoa anônima nunca vai parecer com uma atriz,
mas ao mesmo tempo você coloca uma atriz falando uma
coisa da vida dela e isso parece como um discurso encenado.
O que ele faz é ao mesmo tempo instituir um certo chão pro espectador e tirar esse chão. Ao final, o
filme se reduz ao fato de que basicamente são pessoas
e pouco importa o grau de realidade, ou de encenação,
o que importa é simplesmente o fato de que isso foi
filmado e de que isso em alguma medida faz diferença.
O correlato um pouco do Serras da Desordem no sentido de refazer o tempo
inteiro a relação que se faz com o espectador. Qual
é o último plano do Serras da Desordem? É colocar o próprio Andrea Tonacci dando ordem de encenação
pro índio, dizendo que, de alguma forma, ele mesmo está
repetindo um grau de manipulação. Só que o Coutinho
joga isso em um outro nível, fala que o que importa não é a manipulação, o que importa não é pra onde
o diretor leva o filme, o que importa é que alguma
coisa acontece nesse processo. É a ação acontecendo
em ato, enfim, é o filme acontecendo em ato, muito mais
do que algum tipo de preparação, o que me faz compreender,
como nenhum outro filme do Coutinho, porque ele fala
que o único filme que influencia ele é A
morte de Empédocles do Straub,
e mais nenhum outro. Que, basicamente, é alguém que
está interessado na coisa acontecendo e em como um
certo som sai da boca de um personagem, e como
isso é registro e filmar, basicamente, é modulação de
ensaio, é você incorporar uma série de produtos que
podem vir do acaso, mas que você, em algum momento,
sugere uma experiência. E na filmagem o seu filme é
uma coisa e na montagem é uma depuração; é você escolher
aquilo que você decide entrar no seu filme e aquilo
que você descarta.
DC: O tema
do filme é, sem sombra de dúvidas, fazer com que a gente
questione aquilo: o que é a verdade? Que é dita ou não.
RG: Esse
eu acho que é o primeiro interesse do filme. O filme
tem um interesse secundário, que é muito superior.
DC: Tem que
tentar juntar esses dois interesses pra tentar ver,
porque, na verdade, o que me parece é que o filme tenta
pensar não na verdade na história que é contada ou da
pessoa que fala, mas, sobretudo, de quem recebe. Então,
na verdade, eu acho que o grande tema do filme, o grande
interesse do filme é o espectador, é quebrar a relação
do espectador com o que é a verdade. E daí, sim, trabalhar,
fazer-nos pensar: em que medida eu posso me emocionar
com o que eu sei que não é verdade,
com o que eu acho que é verdade e com o que me deixa
de parecer que é verdade? Ou seja, na verdade,
é o documentário tentando questionar de que maneira
você exige acreditar numa verdade, ele está pensando
nesse limite do espectador mesmo.
RM: Mas eu
tenho a impressão de que todo esse processo que você
falou se dá muito no início do filme, num primeiro momento,
num primeiro impacto com aquelas histórias. A partir
do momento em que você vê, já deixa de importar se é
uma atriz, porque aquela história ela se torna, não
sei se verídica, mas verdadeira, num sentido de que
pode ser a história daquela pessoa mesmo, pode ser uma
história contada por alguém ou vivenciada, sei lá, não
interessa, mas é uma história passível de existir. Se
não existiu, poderia ter existido, e é uma história
quase verossímil.
BB: Só o
fato de contar já a torna verdadeira.
LCOJr: A verdade é que o Eduardo Coutinho é
muito mais straubiano do que
a gente achava que ele é. Não é a verdade da fala, não
é a verdade da vida, é a verdade da presença, é a verdade
do registro.
TM: É a verdade
da performance.
DC: É a verdade
da cena, é a verdade de quem olha.
RG: A presença
é o Acidente, do Pablo Lobato e do Cao Guimarães. Jogo
de Cena é um filme sobre a presença, mas no qual
há, sim, a idéia de uma ação definitiva.
LL: É uma
ação pra uma câmera ligada que você sabe que está filmando.
É um contar uma história pra uma câmera ligada.
TM: Não,
é performance porque não é qualquer um que pode ser
um personagem do Coutinho.
RG: Tanto
que ele é extremamente seletivo.
TM: Por isso
que é uma performance. Não é o simples existir daquela
pessoa diante da câmera. É de que forma aquela pessoa
se manifesta. A força que ela tem.
DC: Vocês
estão esquecendo de uma coisa importante. Deixa eu te
dar um exemplo: tem determinados momentos em que ele
coloca uma atriz e só no final ele vai botar aquela
que parece ser a dona do depoimento verdadeiro, lá,
depois de muito tempo. Então aquela que você viu no
início, você fica achando: não, aquela lá deve ser verdade.
Importa sim. Na hora que você vê aquela lá, você diz:
nossa, eu fui enganado, é uma atriz. Não é só a performance,
é o olhar da performance. Ele está questionando, sim,
o posicionamento do espectador. Porque ele também constrói
ao longo do filme uma crença.
LCOJr: Não é à toa que ele constrói o enquadramento
lá com as cadeiras vazias. O lugar do espectador está
espelhado lá no filme.
RM: O filme
tem outra coisa importante, que é um guia: todas as
histórias obrigatoriamente têm uma relação de maternidade.
LCOJr: Eu vi o filme hoje, estou muito cru
ainda. Mas me ficou uma impressão de que ele não levou
às últimas conseqüências os efeitos de estrutura que
o filme permitia. O potencial de um filme calcado em
efeitos de estrutura, em efeitos de dispositivo, não
está levado aos seus limites, e o filme acaba aquiescendo
a um certo sentimentalismo
que não me parece contribuir tanto para o que o filme
tem de melhor.
RG: Eu acho
que ele esgota a estrutura com meia hora e, na outra
hora seguinte, ele vai pra todos os outros lugares possíveis.
LCOJr: Mas ele faz o quê? Quais são esses outros
lugares?
TM: Pra mim
ele reforça exatamente o que ele já fazia no Edifício
Master, que é a emoção das histórias, que é aquela abstração
da fala valer mais que qualquer outra
coisa, e você já esquece quem está falando, não
importa. Importa que você se projete naquelas histórias,
que você se identifique, não se identifique,
que você se emocione. E eu acho que todo o dispositivo
se apaga diante disso.
LL: Eu não
acho que ele esgota a estrutura em quinze minutos. Eu
acho que ele desiste da estrutura em quinze minutos,
porque o interesse dele passa a ser a performance como
era o interesse dele em quase todos os filmes.
RG: A operação
que eu acho que ele faz diferente dessa vez, é que na
primeira meia hora ele solapa todo tipo de adesão naturalista
que os outros filmes suportavam, de alguma forma. E,
nesse sentido, eu até concordo um pouco com o que o
Daniel fala no sentido do espectador, porque de certa
forma, me parece que é, sim, um pouco um filme sobre
aquele espectador. Que ele faz esse filme um pouco para
aquele espectador que fica rindo do Edificio Master, porque
os personagens são inteiramente pitorescos. Porque claramente
ele está interessado no personagem sob outro aspecto.
E o que eu acho que o filme vai fazer nessa meia hora
e que ele só capitaliza na outra hora seguinte, na primeira
meia hora ele cria um efeito de abstração, da relação
com a verdade ou não, que eu acho que, de alguma forma,
se isso fosse o interesse principal do filme, isso estaria
colocado lá pra uma hora e dez, uma hora e vinte,
pra criar uma grande virada. Isso não está, isso é dado
logo nos próprios efeitos de estrutura do filme, e o
filme vai fazendo isso até o final.
LARM: Eu
acho que tem um plano que é extremamente complicado
nesse filme, que é a primeira entrevista, da menina
do Nós do Morro. É a entrevista mais estranha pra mim.
Ela é a primeira, ela é sobre maternidade.
LL: É a história
da Medéia.
LARM: Primeiro
ela se coloca como uma coisa de mitologia grega, etc
e tal, depois, ela é um negócio completamente fake
e não-fake, e você não consegue
identificar onde é que está fake
e onde que não está. Ela é um negócio que não te ganha
de início, eu não fico convencido, e, logo no início,
ela é uma síntese, eu acho, desse trabalho, que é uma
coisa indefinível, eu acho que isso que ele está desejando
com esse filme é indefinível. Isso pra mim está nesse
primeiro plano, que é um plano que resume todos os outros. É uma atriz que está ali. Aquela história
que ela conta é uma história em que eu não consigo ver
verdade, e ao mesmo tempo ela chora, quer dizer, todos
os temas estão ali.
RG: Uma coisa
que eu achei impressionante é que vendo duas pessoas
discutindo sobre o filme, eventualmente vai haver uma
divergência enorme, quanto à qual atuação ser boa ou
não ser boa. Que no fundo é empatia, ou não é empatia,
e tem certas deixas que você está acostumado a aceitar
como realistas ou naturalistas, como boa interpretação,
e coisas que não estão, e de certa forma o filme, não
sei nem se isso estava no coração do filme, mas o filme
acabou suscitando isso como uma espécie de epi-fenômeno, que é essa coisa do bem atuar, ou do mal atuar,
do ser convincente, ou do não ser convincente, que eu
acho que o filme abandona ali nos primeiros quinze minutos.
LCOJr: Eu só não acho nada de especial. Da
mesma forma que eu senti falta dos efeitos de estrutura,
por outro lado, também, não fui arrebatado por grandes
epifanias.
LARM: Esse
filme coloca, explicita, primeiro, o Coutinho como ator, isso eu acho que
é importante, ele também é ator. Aquelas perguntas,
aquela espontaneidade fake, vamos dizer assim, do Coutinho, que já pega um briefing total da pessoa, que parece que ele é um cara que
saca muito bem a pessoa e faz a pergunta certa na hora
certa e corta no ponto certo, quer dizer, aquilo ali
é um roteiro. Isso eu acho que é interessante, acho
que se há uma performance em primeiro plano, eu acho
que é a performance do Coutinho, seja do enquadramento,
seja de tudo.
RG: Eu acho
que é a performance de existir ação, no sentido de existir
uma câmera ligada e coisas acontecerem impulsionadas
por isso.
LARM: Segundo,
ele explicita o quanto a gente ainda está preso a uma
questão que é muito primária, mas que é a questão “eu
estou imitando bem isso?”. E aí tem até a ver com aquela
primeira discussão que a gente estava fazendo do
Tropa de Elite, quer
dizer, “está bem imitado, está parecido?, é assim?”.
Nesse sentido, se você conhece a pessoa, você exige
dela uma boa imitação. E aí a Marília Pêra é interessante
porque da primeira vez, eu vi o filme duas vezes, a
primeira vez eu não gostei da Marília Pêra, a segunda
eu gostei justamente porque ela não tinha nada a ver
com aquela personagem, justamente porque ela não assumiu
aquela personagem.
BB: É engraçado,
eu vi o filme duas vezes e a primeira vez eu passei
meio batido pela Marília Pêra e da segunda vez eu tive
certeza que o Coutinho dá a entender que não gosta nela,
e eu acho que não gosta. É que ela não tem um
certo respeito pela personagem que ele queria
que ela tivesse.
LARM: Mas
eu acho que essa falta de respeito pelo personagem faz
crescer o personagem da Marília Pêra. Ele justamente
questiona o fato que a questão não está na verossimilhança,
na imitação, e é incrível, porque o filme coloca isso
e explicita o quanto o espectador está preso a isso,
do Tropa de Elite ao
Jogo de Cena. É um modelo que está sendo
questionado.
BB: A única
entrevista que não é montada repetindo as frases, não
complementando, é a da Marília Pêra.
LARM: O negócio
do comunista, não é a mulher que fala, é a Marília Pêra.
TM: Pra mim
o filme tem um aspecto freudiano que me chama muito
a atenção. A coisa das personagens subirem por aquela
escada escura, pra chegar lá e é como se elas sentassem
no divã, quando elas sentam naquela cadeira diante do
Coutinho, e ali elas podem se abrir, seja da forma que
for, da forma performática também.
DC: Eu não
to entendendo porque você está ligando isso ao Freud,
porque, na verdade, ninguém está lá pra ajudar as mulheres.
LCOJr: Tem um lado catártico ali também. Eu
acho o dispositivo super complexo.
Ele sublinha o fato de que tudo aquilo é muito lacunar,
que você não viu nenhum depoimento na íntegra, que você
viu nacos de todas aquelas performances, o filme sublinha
isso bastante. Ele filma algumas das mulheres, não todas,
subindo a escada, o filme tem uma construção de luz
muito precisa, uma escolha do quadro muito precisa,
todo um simbolismo envolvido, na própria idéia da pessoa
sentar ali, com aquela iluminação x, sobre um palco,
tendo cadeiras vazias de um teatro ao fundo. Tem todo
um simbolismo muito estranho, toda uma relação de transferência,
que confesso que pra mim ainda está muito enigmática.
Acho até que parte da boa relação que eu tenho com o
filme vem daí
BB: E até
isso que você falou no início que achava que ele iria
mergulhar mais fundo na estrutura e ia ser mais radical
nisso, eu não sei, eu tive essa impressão também a primeira
vez que eu vi, só que eu fico pensando que, a partir do material filmado,
mas pensando na montagem, é que se ele levasse mais
a fundo, talvez ele sublinhasse muito o jogo do título,
passasse a ser muito um jogo com o espectador. E aí
eu concordo exatamente com o que o
Ruy e o Rapha falam que ele esgota isso em 15 minutos, aí ele põe
em crise a palavra, a fala e a palavra, que eu acho
importantíssimo, que é meio o que embasa o cinema
dele, e reafirma a sua fé nela na outra uma hora. Não
sei, por isso eu acho que eu me contentei com o fato
dele não ser tão radical.
TM: Ma eu
acho que tem um reforço desta questão catártica, pela
própria forma como ele constrói a emotividade, enfim,
dramaticamente mesmo, como é que ele coloca isso, como
é que ele corta de uma história pra outra, como é que
ele começa a criar recorrências, enfim, essa recorrência
temática. Na verdade, eu acho que ele está muito mais
interessado em criar esse drama, do que propriamente
nesse jogo.
LCOJr: É que, realmente, o jogo se torna rarefeito.
Se por um lado todas as mulheres choram, por outro não
há uma armadilha. Você não pode dizer que o dispositivo
dele era uma armadilha e que elas caíram nessa armadilha
e daí você extrai esse melodrama. Esse enigma é muito
interessante.
RM: Mas do
mesmo jeito que a Andréa Beltrão foi pega e acabou se
comovendo e tinha que se controlar pra não chorar, quando
ela achou que a melhor representação seria não chorando,
e tal, eu acho que tem uma relação próxima com a do
espectador também, que você também não sabe se posicionar:
é verdade, é mentira, no final de contas você acaba
se envolvendo com aquela história, pelo menos é assim
que eu sinto o filme. Na minha sessão, as pessoas choravam
muito.
LCOJr: Edifício
Master tinha uma coisa
muito interessante, que gerou desde os melhores até
os piores debates, que era a questão de que cada personagem,
cada nuance dos personagens levava o espectador a uma
reação tal e isso oscilava desde a simpatia completa
até as maiores antipatias, as pessoas tinham raiva de
certos personagens. No Jogo
de Cena, isso está ausente, você não tem um discurso
ao qual reagir, ou se opor, de cara, de imediato.
RG: É. De
certa forma, o filme não tem essa idéia de um painel
multifacetado como em todo filme do Coutinho.
TM: Ele é
um painel unifacetado
LARM: Não
no cinema inteiro dele.
RG: De Santo Forte pra cá.
LCOJr: Sobretudo Santo Forte e o Master.
RG: Que são
os filmes mais bem resolvidos. Não, eu acho que Peões também trabalha nesse sentido, de painel multifacetado.
Em Peões também,
mas ele tenta ser mais construtivo. Construtivo no sentido
de criar efeitos que não são só criar um universo em
que muitas coisas distintas acontecem. O que me parece
é que em Jogo
de Cena é o contrário, ele cria efeitos da mesma
forma como existe uma... e talvez eu diga que é a segunda operação do filme, num dado
momento o filme até ultrapassa isso, mas essa questão
que no fundo é algo que me perseguia e que eu acho que
é uma das forcas do filme: na verdade existe um trabalho
das mulheres que não são atrizes, em falar alguma coisa,
em significar alguma coisa que seja potente, e, na verdade,
esse trabalho pode ser diferente no tipo de procedimento,
mas ele é muito semelhante no sentido da atriz de transformar
aquele discurso em interpretação, que também é trabalho.
Eu acho que a maneira que ele tem de muitas vezes, de
forma distintas, ir fazendo
o paralelismo e criando situações distintas, criando
situações que só vão acontecer uma vez e a gente não
tem um correlato, entre aspas, real, ou um correlato,
entre aspas, encenado, de criar esse tipo de questão,
que no fundo, o que resta é um trabalho que existe ali,
e um trabalho que produz efeitos, e efeitos que eventualmente
podem cativar alguém.
LCOJr: Mas a complexidade do Coutinho pra mim,
o que me cativa no cinema dele, está justamente aí,
que não é uma arapuca, existe toda uma intensidade de
luz, existe todo um trabalho ali, do próprio Coutinho,
com a triagem que ele faz, com a pré-entrevista que
existe forte no cinema dele, declaradamente. Tudo isso
tenderia pra você ver um filme que é uma armadilha onde
as pessoas vão cair, vão atingir aquele efeito dramático,
performático, aquele efeito de confissão, seja lá o
que for, que ele está desejando,
e isso vai dar o que ele precisa pra construir o filme
dele. Só que não dá, porque no fundo não é bem isso
que acontece. A minha crítica ao cinema direto sempre
foi essa. Para mim, por mais que houvesse
todo um discurso ali de você deixar, de você simplesmente
criar um campo de imantação, um campo que vai se abrir
para absorver de forma competente os esguichos do real,
no fundo pra mim sempre houve no cinema direto algo
como você jogar a isca e o personagem fisgar e você
trazer aquilo pro seu filme. O Coutinho não tem
nada disso.
BB: O Coutinho
é o oposto disso.
LCOJr: Mas ele monta. Os filmes dele são bem
arquitetados, os filmes dele são arquitetados como dispositivo.
No entanto, você também não tem uma arapuca. Esses brotamentos
de melodrama do cinema dele se dão num nível que pra
mim ainda é um nível de complexidade muito interessante.
LARM: Eu
acho que uma questão muito interessante que você falou
foi essa de que, a princípio, não se entra em conflito
com nada daquilo. Isso eu acho que é uma coisa a se
pensar.
RM: Mas isso
aí é quase um mérito, quer dizer, sei lá se é um mérito,
um acontecimento de montagem... Porque eu tive acesso
a quase todo o material bruto, fiz a decupagem
do filme e muitas vezes você se estranhava com alguns
personagens. Óbvio que eu tenho uma visão do filme diferente,
até porque eu já tinha um contato com aquilo, mas eu
acho que parte de não ter, por exemplo, essa panorâmica
dos personagens, é decorrente de se debruçar nesse viés
narrativo, nesse guia narrativo e emocional também,
da maternidade.
TM: Eu acho
que ele cria uma única história na verdade. Você sai
do filme e existe uma única grande história que todas
as mulheres contam, que é a relação com o pai.
LCOJr: Mas, ao mesmo tempo, isso que o Rapha falou é interessante, porque ao mesmo tempo, sim, o
filme peneirou isso. Mas ele coloca lá, ele inscreve
numa parte crucial do filme pra mim, que é quando a
Fernanda Torres diz que ela fez questão de não ver a
entrevista decupada, a entrevista
já editada, preferiu o material bruto porque achava
que ele ia construir uma espécie de memória da personagem
dela. O material bruto ia construir uma espécie de constelação,
um céu que estaria sobre ela e, na hora em que ela fosse
fazer a performance, estaria lidando com esse material
bruto inteiro, essa constelação inteira a todo tempo.
O filme faz questão de pôr essa parte, por isso que
eu digo que o filme faz questão de dizer, de jogar pra
uma lacuna muito grande, pra uma ausência muito grande.
Essas mulheres na verdade parecem estar falando na verdade
sobre um único tema, porém, esse filme partiu de algo
que vai pra muito mais do que isso, existe muito mais
coisa, existem muito mais coisas que estão ausentes
do filme. Acho muito curioso que o filme tenha colocado
isso numa cena que pelo menos pra mim chama tanta atenção,
que é quando a Fernanda Torres traz pro filme essa idéia.
Tem muita coisa que ficou de fora.
RM: Isso
é interessante também porque, apesar de ser um filme-dispositivo
e tal, ainda tem o dispositivo próprio de cada atriz,
que cada uma a seu modo vai trabalhar de maneiras diferentes
,e o filme meio que traz isso pra dentro do seu processo
também. E ainda assim, com toda essa força, com todos
esses processos existentes, você ainda acaba se emocionando
e se voltando praquela historia que se conta. É uma
complexidade grande.
RG: O que
me cativa, acho que talvez mais do que qualquer outro
filme do Coutinho, e que é um tema que eu persigo, num
texto corrente que eu estou fazendo, é a questão da
enorme dificuldade que o cinema tem de filmar no presente,
de filmar o presente, porque a princípio o cinema narrativo
trabalha com uma idéia de que se envolve um certo número
de coisas que se sabe do passado e a idéia de que se
aponta pra um futuro, porque a própria idéia de narrativa
está implicada na idéia de causa e conseqüência e de
um certo número de premissas e um certo número de ocorrências
que partem dessas premissas. E Jogo
de Cena é o filme em que talvez o dispositivo sirva
mais de pretexto pra coisas que ele quer conseguir do
que pra estruturar o filme. Desde o começo, ele deixa
muito claro que basicamente o que existe é o presente
acontecendo. E o presente é o ato de se ligar a
câmera e pronto. Existe um trabalho diante da câmera
que não precisa mais do referente que o embasa, que
é um vinculo, entre aspas, ideológico, que você podia
atribuir a Santo Forte ou a Edifício Máster. Por isso tanta bibliografia, tanta página branca
que foi gasta falando de como ele entrevista bem, de
como ele sabe escutar, de como as pessoas têm uma vida
impressionante. Não é nada disso, nunca foi. Em Jogo de Cena, ele mostra que existe um
presente cinematográfico e existem várias formas de
aceder, eu acho que de certa forma Straub
acede a isso, pelo menos desde os anos 70, e de certa
forma o Lynch faz isso por
maneiras totalmente transversas no Império
dos Sonhos.
LCOJr: É verdade. São filmes que podem muito
bem ser trabalhados em conjunto.
Parte 1: Sociedade
em descontrole: Tropa de Elite, o filme e o fenômeno
Parte 2: Universos
sob controle: Baixio das Bestas e Santiago
Parte 4: Um novo
gênero? / Ficções cansadas
Parte 5: Cão
Sem Dono
Parte 6: A juventude
brasileira não se pertence
Parte 7: Justo uma
conversa: Conceição
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