CINEMA FALADO, PARTE 5
Casa de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices e o cinema de Domingos Oliveira

RG: Mas passemos adiante... É curioso que não tenhamos falado de dois filmes que creio serem importantes pra todos ou quase todos os que estão aqui, que são Casa de Areia e O Signo do Caos, um pouco porque já se comentou muito dos filmes e dos realizadores durante o ano. Com o Sganzerla fizemos dossiês, uma mostra, do Casa de Areia tivemos uma conversa enorme com o diretor Andrucha Waddington.

DC: Faz-se necessário comentá-los, sem sombra de dúvida. Assim como a gente elogiou o início do filme do Carlão Reichenbach, que é magnífico, a gente também precisa dizer que o final do Casa de Areia vale o filme. É no final do filme que ele se supera em larga escala, porque o filme tem algumas coisas bastante bonitas, mas ele tem um quê de armado, de certinho, de um cinema bonito, e de repente no final tem uma piadinha, é uma brincadeira, mas a simplicidade com a qual essa brincadeira vai fazer um sentido com toda a idéia do filme é tão grande que faz com que naquele momento você chegue e pense: "Ah! Então o filme todo se conjugou, fez um certo sentido...". Há de se fazer esse elogio.

LCOJr: Eu não acho o filme tão certinho não.

RG: Pois é, também não sei se eu acho. A carreira do Andrucha Waddington começa – quer dizer, eu acho que na verdade a carreira dele começa com Eu Tu Eles, pelo menos a do Andrucha como a gente entende hoje – como a de um esteta discreto. Na verdade ele vai deixando de ser discreto no Viva São João. A gente vê que a maneira como ele cria instantes de epifania em certos momentos dá pra entrever um esteta nascendo. E realmente no Casa de Areia, com o trailer eu fiquei com um medo incrível de que ele fosse virar o esteta no pior sentido, aquele criador de elefantes brancos todos afetados. E foi com muita felicidade que eu vi o filme: não era um elefante branco. E eu não acho o filme tão certinho não, eu acho que ele é bastante audacioso em certas apropriações de ora usar o muito longe ou o muito perto e não cair no plano médio. Eu acho que o filme certinho é o filme que vai recair quase sempre no plano médio para tentar dar uma chave direta, correta. O plano médio é o plano da justeza.

LARM: "Justo" é a palavra, né?

DC: Seria o plano da distância confortável.

RG: E ele não vai usar a distância confortável muitas vezes. Mas ao mesmo tempo você vai caindo numa coisa meio David Lean, ele recai um pouco num clichê de cinema de arte. Mas eu acho que ele sai ileso desse flerte. Eu acho que os momentos de absurdo – como a trupe de astrônomos aparecendo lá – compensam muito, não fazem daquele lugar um espaço mítico, ou ao menos totalmente mítico, dão um clima de apenas um lugar distanciado. E eu concordo com essa visão sobre o final do filme, o final tinha tudo para destruir o filme, podia ser uma relação campo/contracampo patética, e ele consegue transformar numa coisa muito bonita.


DC: E com um humor inesperado, e na verdade dá um sentido muito grande ao filme.

RG: E acaba tendo um ponto de vista muito bonito. Num momento ele parece que vai funcionar entre o que é jovem e o que é velho, entre o que é moderno e o que é caduco, diferenças de gerações, conflitos irreconciliáveis, vida de mãe e filha, e no final parece que ele dá o ponto de arremate que estava faltando ao filme para que não fosse simplesmente um filme bonito sobre oposições meio imprecisas. É um filme que tenta acima de tudo congregar vivências, e não criar dissonâncias bobas, que eu acho que é o que o Joffily faz nos documentários dele, sobretudo no dos padres, O Chamado de Deus, que eu acho uma bobagem, uma dialética forçada pela montagem. O Vocação do Poder ele faz até com algum vigor.

LCOJr: A respeito daquelas cenas em que você tem o exército ou então os cientistas, eu acho interessante como o filme trata a história como um grande espectro, na verdade: tudo que está acontecendo e que vai ficar registrado de alguma forma – seja por uma História que está sendo escrita, ou algo que está sendo registrado como evento midiático (a chegada do homem à Lua, esse tipo de coisa) –, tudo isso no filme é uma coisa que acontece de forma espectral, um eco, uma ressonância, porque o espaço do filme, o universo em que o filme se passa é um universo de não-permanência, onde nada fica, onde nada consegue se inscrever. É muito importante no filme a cena em que eles falam da ausência de uma escritura daquele lugar, e então não há como provar onde acaba o terreno de uma pessoa e onde começa o terreno de outra, justamente porque o lugar não é mapeado. É um solo movente. Isso dá todo o tom do filme. E em termos de estética eu acho que o Andrucha deu sim um passo adiante. Acho que é um cara que ainda está buscando uma forma de filmar que não é a que ele já usou em outros filmes e que agora vai reforçar. Porque tem aquela coisa do Andrucha como alguém que quer se afirmar como autor. Muita gente critica isso. Se ele quer isso – e eu até concordo que quer –, por outro lado ele está buscando isso pela maneira que eu acho a mais saudável, que é justamente de se reinventar, de não repetir o que já deu certo.

DC: Isso é uma característica muito interessante. Saindo um pouco do filme e falando um pouco da carreira do Andrucha e de seus parceiros, é impressionante como isso salta aos olhos e como é mesmo a característica mais interessante dele, que é o fato de ele ser muito inquieto, muito pilhado. Ele nunca está satisfeito, sempre tem a vontade de melhorar. Isso parece uma brincadeira, mas não é. Se você pegar os outros diretores da Conspiração – talvez o cineasta que eu mais goste da Conspiração junto com o Andrucha seja o exato contrário dele, que é o Arthur Fontes, que se caracteriza, digamos, até por uma certa humildade. Faz filmes simples, como o Surf Adventures, e os filmes são interessantes, mas não aparenta essa disposição de ser considerado um "grande nome do cinema". E, sobre os outros sócios da Conspiração, acho que eles ainda têm que superar ainda esse lado poser. O José Henrique Fonseca e o Claudio Torres têm um certo domínio da cena, mas a gente sabe que os filmes deles têm muitos problemas, nenhum de nós gosta deles como cineastas.

RG: Eles usam estética como muleta.

DC: E não me parece que de uma obra para outra eles se transformem completamente, ao contrário. Parecem muito confortáveis. Com o Andrucha, não. Do Eu Tu Eles para Casa de Areia é um universo, e ainda tendo Viva São João no meio, ou seja, o cara mudou muito. É curioso isso de não dar para saber muito para que lado o cara vai, esse lado instável dele eu acho muito interessante. Porque o pessoal da Conspiração é muito criticado por esse aspecto até preciosista de fazer o mais bonitinho, o mais certo, mas eu acho que esse lado se mostra de modo diferente de um cineasta pra outro. Eles têm estilos diferentes.

GSJr: Só para registro, eu discordo parcialmente da visão do Ruy e do Júnior sobre o filme. Em todo momento passou pra mim aquele lado "de arte", posado, de recursozinho tolo de roteiro, de oposição de gerações. O filme realmente não me agrada, ou muito pouco. Acho a fotografia excessiva, buscando muito charme. A seqüência final eu acho curiosa, mais interessante que o resto do filme, mas também não me encantou.

DC: O filme passa, sim, um virtuosismo.

LCOJr: Não que não haja um certo virtuosismo, e uma ornamentação. O que eu acho é que não é gratuito, entende? Eu vejo um projeto.

GSJr: Tem um projeto, mas ao meu ver não foi eficiente. A mim, não conseguiu me transmitir nada, transmitiu durante a maior parte do tempo um vazio.

DC: Ele continua querendo ser artista. Por isso que eu gosto do final, em que ele parece ser menos pretensioso e muito mais brincalhão.

LCOJr: Até aí, nada. O final surpreende muito porque o filme parecia andar para o lado o tempo todo, parecia um movimento de caranguejo. Não parecia que o filme queria chegar em algum lugar. E quando você vê que ele queria chegar, surpreende e trai toda desconfiança.

DC: E agora chegamos na hora de falar de O Signo do Caos, que todo mundo aqui colocou como um dos melhores do ano. E é engraçado porque a gente faz parte desse pequeno mundinho, porque o filme teve pouco mais de 1.800 pagantes... Embora alguns de nós não tenhamos contado porque vimos o filme em festival, talvez.

LCOJr: Mas é engraçado que a gente tenha deixado para falar só no final de O Signo do Caos, e ter uma dificuldade de falar de O Signo do Caos no Cinema Falado, porque é um filme que realmente é muito difícil de você colocar junto com um processo do cinema brasileiro.

LARM: É um filme que fala por si, também.

DC: Exatamente, e mais do que isso: é um filme que silencia. Qualquer pessoa que veja O Signo do Caos e depois chegue a esse ponto da nossa conversa, vai chegar e dizer: "Ah, é, tem O Signo do Caos, que é difícil de falar qualquer coisa...".

LARM: Eu não vi O Fim e o Princípio, mas de certa maneira quando você fala que o Coutinho se coloca, e coloca o próprio método dele, eu acho que O Signo do Caos também tem isso. Ele tem isso de colocar como que se constrói esse filme. Ele se coloca o tempo inteiro: "Aqui eu repito; aqui eu repito de novo; vocês agüentam uma terceira repetição?".
DC: Mas ele se coloca sempre, quase todos os filmes dele são assim.

LARM: Mas nesse ele radicaliza. É um diálogo com o espectador muito sobre a incapacidade do espectador atual de comprar um filme desse. E eu acho que isso está mais presente nesse do que nos outros filmes do Sganzerla.

RG: O "Vai e vem" reiterativo do papagaio de O Signo do Caos está disseminado na carreira dele, desde A Mulher de Todos, passando pelos filmes da Belair, passando pelo O Abismo. Tem toda uma intriga da descontinuidade, que eu acho que começa a funcionar inclusive em O Bandido da Luz Vermelha – se não tinha no roteiro, vai ter a partir da montagem do filme, sobretudo na edição de som –, sempre descendo o abismo, com trocadilho, da descontinuidade. Passamos por Sem Essa Aranha, que é um filme que tem 14 planos-seqüência que não se comunicam, passando para O Abismo, em que são os personagens que não se comunicam – cada personagem parece habitar uma ilha desconectada de todos os outros lugares –, até O Signo do Caos, em que cada plano parece ser uma ilha, e até nos cortes que têm uma certa continuidade espacial, não parece: parece que a imagem salta o tempo inteiro, justamente porque essa descontinuidade está levada ao extremo. A ponto de ele usar a idéia de antifilme, e ser um filme que funciona pela reiteração das falas, das cenas, de tudo ir e voltar (e voltar ser mais importante). E, ao mesmo tempo, volta no descontínuo: no descontínuo do espaço. Se ele começa a fazer cinema dirigindo Documentário e montando Olho por Olho só com jump cuts, ele vai criar com O Signo do Caos o jump cut total.

LCOJr: Tem duas coisas... A primeira é que O Signo do Caos é um grande tratado sobre montagem autofágica, porque um plano existe para engolir o seguinte, e então na verdade o filme nunca começa – é um grande somatório num vazio, num grande buraco negro – e o filme acaba devorando o espectador. E eu acho que, se houve um momento em que as pessoas ainda se predispunham a ir ao cinema para ver um filme, fosse ele de vanguarda ou não, esse filme estava ali como uma aberração, como um monstro que ia criar um local onde todos os seus mecanismos de percepção se abismavam e você não sabia o que pensar durante o filme – ou o que concatenar. O Signo do Caos radicaliza isso totalmente. E, do outro lado, teve a brincadeira que eu fiz, que a minha lista de dez mais do ano não tinha nenhum filme brasileiro, tinha um filme chamado O Signo do Caos de Rogério Sganzerla, que é o lado de um filme que não se conecta com o que se passa no cinema brasileiro hoje. Na verdade é uma grande negação disso tudo.

DC: Espera aí. Aí a gente vai pegar uma idéia óbvia da sociologia, a mais velha do mundo, que diz que a figura mais distante, mais marginal está definindo o limite. É óbvio que ele é posto à margem e é óbvio que essa margem significa o cinema brasileiro.

LARM: É, e o cinema brasileiro atual.

LCOJr: Mas não tem mais tensão com o local. O fora dele é um fora tão distante...

DC: Mas existem várias figuras assim e que não são como o Rogério, que é um caso à parte, mas que estão tentando produzir e nesses últimos anos ficaram à margem. Eu discordo dessa visão do filme, de que ele apenas se nega, porque existe uma figura que não aparece no filme que é a fundamental, e que permite que, a partir daí, a gente vá sempre construir novos discursos sobre o filme - que é o cara que fez o filme. Não o cara que fez O Signo do Caos, mas o personagem que fez o filme que vai ser queimado em O Signo do Caos, e é sobre isso que é o filme. O tempo todo, as figuras que aparecem são os censores. Acho que nessa trama ele já mostra muito claramente onde é que ele está se escondendo e onde é que ele está aparecendo, por conseqüência. A gente sabe onde é que está a figura do artista e o discurso do Rogério por essa ausência. Essa construção para mim evidencia como ele sempre foi personagem dele – principalmente no Perigo Negro e nos filmes sobre o Orson Welles, mas em quase todos os filmes você encontra um discurso de autor do Rogério. Nesse filme ele tenta criar mais do que apenas uma figura que discursa, mas uma trajetória. Então dessa maneira ele está criando um personagem trágico. E é isso que faz esse filme ser um negócio tão forte. Porque ele sabe que está confundindo realidade e ficção. Sabe mesmo, como sempre confundiu. Só que dessa vez ele está falando de uma agonia. E aí é óbvio que a nossa tendência é misturar isso com a própria vida do Rogério. Mas me parece que, nesse ponto, sim, esse filme faz todo o sentido com o cinema brasileiro. Não é por acaso que a gente está falando do filme nesse momento. E ele sabe o que é que representa fazer isso: representa falar dessa figura que está sendo censurada.

LCOJr: Mas o processo não interessa mais a ele.

DC: Tanto interessa que ele fez esse filme.

LCOJr: Não interessa no sentido em que não é o principal.

DC: Ele está sendo queimado.

LCOJr: Ele não quer participar do processo.

LARM: Mas a que processo você está se referindo?

LCOJr: Cinema brasileiro.

LARM: Mas não existe um "processo" que você bate na porta e entra...

LCOJr: Existe uma cena. Existe um momento, um cenário.

LARM: E essa cena é delimitada por filmes, por um realizador não poder filmar, por várias coisas... Ao mesmo tempo em que ele não está participando do processo, é um contra-senso, porque ele está lá participando, marcando com esse filme.

DC: Esse filme é isso. E a figura de autor que morre em O Signo do Caos é um negócio violentíssimo. Ele está falando que uma arte está sendo interrompida, e a interrupção dessa arte interrompe a vida. E ele faz isso num momento em que ele vai remeter a uma figura do cinema que era a grande promessa, o Orson Welles. A grande promessa que num determinado momento foi considerado um vilão porque teve todos os recursos, foi o mais genial... E o Rogério não vai vender o Orson Welles como o cara que gastou o dinheiro, vai apresentar como o cara que foi genial demais para ser aceito. É esse o personagem que ele está construindo e com o qual ele está se identificando – e esse personagem não aparece. Esse filme não tem Orson Welles, Orson Welles é ele, é óbvio. Ele faz um tratado que não é sobre o Orson Welles, mas sobre o cinema brasileiro, e sobre a figura dele e de outros, de uma geração, de uma situação cultural.

LCOJr: Mas os planos do filme na verdade são várias ilhas de solidão que a montagem se nega a religar.

LARM: Eu discordo disso. Eu acho que existe uma outra ligação, mas não necessariamente uma negação. Se a gente tomar como parâmetro a linguagem clássica narrativa, é claro, aí você vai dizer que todos os planos são uma ilha. Mas acontece que existe uma outra ligação, e essa outra ligação é aquele negócio: decifra-me ou te devoro. Você fala que é o filme que queria devorar o espectador, mas desde que o espectador também se coloque dentro de uma posição completamente intransponível.

LCOJr: O filme não tem espectador.

LARM: O filme não tem espectador, mas até isso é tematizado. E quer coisa mais atual para falar de processo, já que a gente está falando de processo do cinema brasileiro?

DC: É só você ver a lista das bilheterias no ano. É muito cruel e é muito forte que O Signo do Caos tenha sido o último filme de um realizador com a trajetória do Rogério, tenha estreado, e tenha sido o filme menos visto do ano.

LCOJr: Mas o filme já começa a ser feito sabendo que ele não vai ter espectador, e isso não importa.

LARM: Concordo. Agora, não é que isso não importa. Ele não tinha outra alternativa.

DC: Ao contrário. Não é que não importa. Ele dá um sentido trágico a esse "não ter espectador" que é a grande dor do filme, que é o fato do gênio não poder criar.

LCOJr: É uma dor parecida com a do Glauber no A Idade da Terra. Se for buscar na história do cinema brasileiro um filme que mais parece com esse, é A Idade da Terra. É uma dor muito parecida.

DC: Tem uma dor parecida, mas A Idade da Terra não explicita isso.

LARM: E outra coisa, A Idade da Terra aponta para uma redenção.

DC: Os dois têm a mesma questão: o Brasil é um país colonizado, o cinema é uma arte colonizada, a gente está recebendo uma arte colonizada, a gente está recebendo uma influência lá de fora e está tentando copiar. A Idade da Terra tenta negar isso e fazer uma outra coisa, e fala isso. Em O Signo do Caos, o cara mostra que ele sabe fazer muito melhor, só que ele sabe que aqui não dá para fazer um troço diferente. Não dá, não tem espaço.

RG: Eu acho que vocês estão falando de registros diferentes, mas de registros que existem simultaneamente. O próprio Rogério nunca tentou se inserir. Desde a volta para o Brasil ele só se inseriu como o sujeito de fora. Uma lógica muito estranha, porque é uma lógica de inserção, mas é uma lógica de inserção pelo lado de fora. E é sobre cinema brasileiro o tempo todo? É. Mas ao mesmo tempo eu concordo com o Júnior de que é um OVNI.

DC: Mas é um OVNI de dentro!

RG: Bom, aí depende, porque se é um OVNI, já está de fora. O próprio filme articula essa lógica.

DC: É pior do que o OVNI, é o alienígena que está dentro e não consegue ser aceito.

RG: Mas está dentro do quê?

DC: Está dentro do Brasil, só que está elaborando o discurso como crítica.

LCOJr: Eu não estou falando do que o filme fala, mas do lugar em que ele se inscreve, em que ele se aloja.

DC: Ele é produzido no Brasil, então sobre esse aspecto você não tem o que discutir. Tanto que você tem lá o Carlão e o Capovilla lá embaixo na lista de bilheteria. São cinemas diferentes? São. E o Capovilla também tentou fazer um registro não-realista.

LCOJr: O filme do Carlão não dialoga com o público por acidente, porque o Carlão gostaria que dialogasse.

DC: Sim, o do Capovilla talvez menos. Eu entendo o que você quer dizer. Mas sob esse aspecto, em qualquer lugar que O Signo do Caos tentasse ser inserido, ele não ia conseguir.

LARM: Mesmo porque o filme tem uma estratégia suicida, isso é admitido. Se você comparar a trajetória do Sganzerla com a trajetória do Bressane, por exemplo, a gente vê claramente a diferença. O Bressane também não está preocupado em conquistar um grande público.

LCOJr: Mas achou um lugar possível de ele continuar a fazer cinema dentro do que é o cinema brasileiro hoje.

LARM: O que só prova o quanto é mais ambicioso ainda o projeto do Sganzerla, porque ele não reivindica um espaço. Ele simplesmente se joga. E ele pode encontrar o vazio.

RG: Mas ele sabe que ele vai se jogar e que vai cair num não-espaço que é o não-espaço que o filme teve.

DC: E tem uma dor de não ter o espaço para aquilo que ele sabe que está fazendo e que é o melhor.

RG: Ele se joga, ele sabe a agonia disso, mas ele sabe que é a única possibilidade dele.

DC: Isso é impressionante. Em nenhum momento o filme é cerebral. Isso salta muito aos olhos.

LCOJr: Você, Morris, tinha mencionado o "Decifra-me ou te devoro", mas no caso é "Devora-me ou te devoro". É briga.

DC: Não tem como digerir, é algo indigerível.

RG: Há ainda um último cineasta com filme lançado nesse ano, que tem se posicionado numa situação de conflito mas também buscando uma tentativa de inserção pessoal com seus filmes digitais, que é o Domingos Oliveira, com Feminices e agora com Carreiras, que deve estar para estrear. Também é de negação dos mecanismos de incentivo e produção do cinema brasileiro, fazendo os filmes com os amigos, com as câmeras que aparecem, com o dinheiro que aparece, e fazendo todo mundo engolir o máximo que pode, jogando o filme numa tela, pedindo para as pessoas exibirem e tendo a resposta que conseguir.

LARM: Mas o que é mais complicado com O Signo do Caos é que ele investe essa coisa da luta para o espectador. Existe uma comunicabilidade muito grande entre o filme que o Domingos Oliveira faz e o público. É uma comunicabilidade fácil, tranqüila que sempre houve na obra do Domingos Oliveira.

DC: O Domingos é o maior barato, é bom pra cacete, ele sacou que tem que fazer filmes para 50 mil pessoas e que dá para fazer filmes viáveis para essas pessoas, só que ele faz um cinema muito acessível que não é o cinema que o Rogério fazia.

LARM: Mas o Sganzerla sempre falou: "Nós não gostamos de gente!".

DC: Mas é covardia falar do Domingos depois de falar de O Signo do Caos.

LCOJr: Mas o Domingos está confortável. Ele não está lamentando estar fazendo filme com vídeo, na casa dele, com a mulher dele. Ele está se sentindo muito à vontade.

TM: Eu acho que talvez o filme do Domingos seja o que mais se aproxime disso que nós falamos, de haver um filme sobre o hoje.

LCOJr: Mas é um hoje delineado pelo Baixo Leblon e por aquelas redondezas ali.

RG: Todo mundo situa ele como um Woody Allen brasileiro mas eu acho ele muito mais próximo de um Eric Rohmer brasileiro.

DC: É o maior barato. Às vezes acerta mais, às vezes acerta menos, mas está sempre indo na dele.

RG: Eu acho Feminices o mais legal porque é o que conjuga melhor a produção que ele tem com a urgência e o filme que ele vai fazer. Ele pega uma peça que é um material com o qual ele não está muito confortável, ele muda o tempo inteiro, é um filme de processo. Isso talvez seja uma possível, tênue ligação com o filme do Sganzerla. E se no Amores e no Separações existia um certo desnível, eram filmes que podiam ser contados com um maior orçamento, acho que o Feminices é inteiramente coeso com a proposta, com a estética.

EG: E o Carreiras também.

RG: Isso. Eu acho que ele está chegando num patamar de extrema junção entre a técnica de que ele dispõe, sendo o próprio produtor, e o filme que ele quer fazer. É uma técnica caseira, eu acho isso lindo. Eu acho que o cinema brasileiro podia fluir muito por esse lado.

LCOJr: Feminices, nesse aspecto, eu acho um filme mais interessante do que Separações. Justamente porque em Separações a gente via que a técnica caseira na verdade parecia um desleixo.

DC: Mas o Amores já tinha isso e funcionava muito bem.

LCOJr: Amores é um dos meus filmes preferidos da década de 90.

RG: Mas agora já estamos falando dos filmes do ano que vem e dos filmes da década passada. Acho que é hora de terminar.

Parte 1: Os espaços ocupados e a visibilidade dos filmes

Parte 2: Representações e reflexos da realidade: ausência de um elogio do agora.

Parte 3: Olhares históricos.

Parte 4: Os novos talentos da ficção e o documentário.

 

 






Casa de Areia, de Andrucha Waddington


O Signo do Caos, de Rogério Sganzerla