RG: Mas passemos adiante...
É curioso que não tenhamos falado de dois
filmes que creio serem importantes pra todos ou quase
todos os que estão aqui, que são Casa
de Areia e O Signo do Caos, um pouco porque
já se comentou muito dos filmes e dos realizadores
durante o ano. Com o Sganzerla fizemos dossiês,
uma mostra, do Casa de Areia tivemos uma conversa
enorme com o diretor Andrucha Waddington.
DC: Faz-se necessário comentá-los, sem
sombra de dúvida. Assim como a gente elogiou
o início do filme do Carlão Reichenbach,
que é magnífico, a gente também
precisa dizer que o final do Casa de Areia vale
o filme. É no final do filme que ele se supera
em larga escala, porque o filme tem algumas coisas bastante
bonitas, mas ele tem um quê de armado, de certinho,
de um cinema bonito, e de repente no final tem uma piadinha,
é uma brincadeira, mas a simplicidade com a qual
essa brincadeira vai fazer um sentido com toda a idéia
do filme é tão grande que faz com que
naquele momento você chegue e pense: "Ah!
Então o filme todo se conjugou, fez um certo
sentido...". Há de se fazer esse elogio.
LCOJr: Eu não acho o filme tão certinho
não.
RG: Pois é, também não sei se eu
acho. A carreira do Andrucha Waddington começa
– quer dizer, eu acho que na verdade a carreira dele
começa com Eu Tu Eles, pelo menos a do
Andrucha como a gente entende hoje – como a de um esteta
discreto. Na verdade ele vai deixando de ser discreto
no Viva São João. A gente vê
que a maneira como ele cria instantes de epifania em
certos momentos dá pra entrever um esteta nascendo.
E realmente no Casa de Areia, com o trailer
eu fiquei com um medo incrível de que ele
fosse virar o esteta no pior sentido, aquele criador
de elefantes brancos todos afetados. E foi com muita
felicidade que eu vi o filme: não era um elefante
branco. E eu não acho o filme tão certinho
não, eu acho que ele é bastante audacioso
em certas apropriações de ora usar o muito
longe ou o muito perto e não cair no plano médio.
Eu acho que o filme certinho é o filme que vai
recair quase sempre no plano médio para tentar
dar uma chave direta, correta. O plano médio
é o plano da justeza.
LARM: "Justo" é a palavra, né?
DC: Seria o plano da distância confortável.
RG: E ele não vai usar a distância confortável
muitas vezes. Mas ao mesmo tempo você vai caindo
numa coisa meio David Lean, ele recai um pouco num clichê
de cinema de arte. Mas eu acho que ele sai ileso desse
flerte. Eu acho que os momentos de absurdo – como a
trupe de astrônomos aparecendo lá – compensam
muito, não fazem daquele lugar um espaço
mítico, ou ao menos totalmente mítico,
dão um clima de apenas um lugar distanciado.
E eu concordo com essa visão sobre o final do
filme, o final tinha tudo para destruir o filme, podia
ser uma relação campo/contracampo patética,
e ele consegue transformar numa coisa muito bonita.
DC: E com um humor inesperado, e na verdade dá
um sentido muito grande ao filme.
RG: E acaba tendo um ponto de vista muito bonito. Num
momento ele parece que vai funcionar entre o que é
jovem e o que é velho, entre o que é moderno
e o que é caduco, diferenças de gerações,
conflitos irreconciliáveis, vida de mãe
e filha, e no final parece que ele dá o ponto
de arremate que estava faltando ao filme para que não
fosse simplesmente um filme bonito sobre oposições
meio imprecisas. É um filme que tenta acima de
tudo congregar vivências, e não criar dissonâncias
bobas, que eu acho que é o que o Joffily faz
nos documentários dele, sobretudo no dos padres,
O Chamado de Deus, que eu acho uma bobagem, uma
dialética forçada pela montagem. O Vocação
do Poder ele faz até com algum vigor.
LCOJr: A respeito daquelas cenas em que você tem
o exército ou então os cientistas, eu
acho interessante como o filme trata a história
como um grande espectro, na verdade: tudo que está
acontecendo e que vai ficar registrado de alguma forma
– seja por uma História que está sendo
escrita, ou algo que está sendo registrado como
evento midiático (a chegada do homem à
Lua, esse tipo de coisa) –, tudo isso no filme é
uma coisa que acontece de forma espectral, um eco, uma
ressonância, porque o espaço do filme,
o universo em que o filme se passa é um universo
de não-permanência, onde nada fica, onde
nada consegue se inscrever. É muito importante
no filme a cena em que eles falam da ausência
de uma escritura daquele lugar, e então não
há como provar onde acaba o terreno de uma pessoa
e onde começa o terreno de outra, justamente
porque o lugar não é mapeado. É
um solo movente. Isso dá todo o tom do filme.
E em termos de estética eu acho que o Andrucha
deu sim um passo adiante. Acho que é um cara
que ainda está buscando uma forma de filmar que
não é a que ele já usou em outros
filmes e que agora vai reforçar. Porque tem aquela
coisa do Andrucha como alguém que quer se afirmar
como autor. Muita gente critica isso. Se ele quer isso
– e eu até concordo que quer –, por outro lado
ele está buscando isso pela maneira que eu acho
a mais saudável, que é justamente de se
reinventar, de não repetir o que já deu
certo.
DC: Isso é uma característica muito interessante.
Saindo um pouco do filme e falando um pouco da carreira
do Andrucha e de seus parceiros, é impressionante
como isso salta aos olhos e como é mesmo a característica
mais interessante dele, que é o fato de ele ser
muito inquieto, muito pilhado. Ele nunca está
satisfeito, sempre tem a vontade de melhorar. Isso parece
uma brincadeira, mas não é. Se você
pegar os outros diretores da Conspiração
– talvez o cineasta que eu mais goste da Conspiração
junto com o Andrucha seja o exato contrário dele,
que é o Arthur Fontes, que se caracteriza, digamos,
até por uma certa humildade. Faz filmes simples,
como o Surf Adventures, e os filmes são
interessantes, mas não aparenta essa disposição
de ser considerado um "grande nome do cinema".
E, sobre os outros sócios da Conspiração,
acho que eles ainda têm que superar ainda esse
lado poser. O José Henrique Fonseca e
o Claudio Torres têm um certo domínio da
cena, mas a gente sabe que os filmes deles têm
muitos problemas, nenhum de nós gosta deles como
cineastas.
RG: Eles usam estética como muleta.
DC: E não me parece que de uma obra para outra
eles se transformem completamente, ao contrário.
Parecem muito confortáveis. Com o Andrucha, não.
Do Eu Tu Eles para Casa de Areia é
um universo, e ainda tendo Viva São João
no meio, ou seja, o cara mudou muito. É curioso
isso de não dar para saber muito para que lado
o cara vai, esse lado instável dele eu acho muito
interessante. Porque o pessoal da Conspiração
é muito criticado por esse aspecto até
preciosista de fazer o mais bonitinho, o mais certo,
mas eu acho que esse lado se mostra de modo diferente
de um cineasta pra outro. Eles têm estilos diferentes.
GSJr: Só para registro, eu discordo parcialmente
da visão do Ruy e do Júnior sobre o filme.
Em todo momento passou pra mim aquele lado "de
arte", posado, de recursozinho tolo de roteiro,
de oposição de gerações.
O filme realmente não me agrada, ou muito pouco.
Acho a fotografia excessiva, buscando muito charme.
A seqüência final eu acho curiosa, mais interessante
que o resto do filme, mas também não me
encantou.
DC: O filme passa, sim, um virtuosismo.
LCOJr: Não que não haja um certo virtuosismo,
e uma ornamentação. O que eu acho é
que não é gratuito, entende? Eu vejo um
projeto.
GSJr: Tem um projeto, mas ao meu ver não foi
eficiente. A mim, não conseguiu me transmitir
nada, transmitiu durante a maior parte do tempo um vazio.
DC: Ele continua querendo ser artista. Por isso que
eu gosto do final, em que ele parece ser menos pretensioso
e muito mais brincalhão.
LCOJr: Até aí, nada. O final surpreende
muito porque o filme parecia andar para o lado o tempo
todo, parecia um movimento de caranguejo. Não
parecia que o filme queria chegar em algum lugar. E
quando você vê que ele queria chegar, surpreende
e trai toda desconfiança.
DC: E agora chegamos na hora de falar de O Signo
do Caos, que todo mundo aqui colocou como um dos
melhores do ano. E é engraçado porque
a gente faz parte desse pequeno mundinho, porque o filme
teve pouco mais de 1.800 pagantes... Embora alguns de
nós não tenhamos contado porque vimos
o filme em festival, talvez.
LCOJr: Mas é engraçado que a gente tenha
deixado para falar só no final de O Signo
do Caos, e ter uma dificuldade de falar de O
Signo do Caos no Cinema Falado, porque é
um filme que realmente é muito difícil
de você colocar junto com um processo do cinema
brasileiro.
LARM: É um filme que fala por si, também.
DC: Exatamente, e mais do que isso: é um filme
que silencia. Qualquer pessoa que veja O Signo do
Caos e depois chegue a esse ponto da nossa conversa,
vai chegar e dizer: "Ah, é, tem O
Signo do Caos, que é difícil de falar
qualquer coisa...".
LARM: Eu não vi O Fim e o Princípio,
mas de certa maneira quando você fala que o Coutinho
se coloca, e coloca o próprio método dele,
eu acho que O Signo do Caos também tem
isso. Ele tem isso de colocar como que se constrói
esse filme. Ele se coloca o tempo inteiro: "Aqui
eu repito; aqui eu repito de novo; vocês agüentam
uma terceira repetição?".
DC: Mas ele se coloca sempre, quase todos os filmes
dele são assim.
LARM: Mas nesse ele radicaliza. É um diálogo
com o espectador muito sobre a incapacidade do espectador
atual de comprar um filme desse. E eu acho que isso
está mais presente nesse do que nos outros filmes
do Sganzerla.
RG: O "Vai e vem" reiterativo do papagaio
de O Signo do Caos está disseminado na
carreira dele, desde A Mulher de Todos, passando
pelos filmes da Belair, passando pelo O Abismo.
Tem toda uma intriga da descontinuidade, que eu acho
que começa a funcionar inclusive em O Bandido
da Luz Vermelha – se não tinha no roteiro,
vai ter a partir da montagem do filme, sobretudo na
edição de som –, sempre descendo o abismo,
com trocadilho, da descontinuidade. Passamos por Sem
Essa Aranha, que é um filme que tem 14 planos-seqüência
que não se comunicam, passando para O Abismo,
em que são os personagens que não se comunicam
– cada personagem parece habitar uma ilha desconectada
de todos os outros lugares –, até O Signo
do Caos, em que cada plano parece ser uma ilha,
e até nos cortes que têm uma certa continuidade
espacial, não parece: parece que a imagem salta
o tempo inteiro, justamente porque essa descontinuidade
está levada ao extremo. A ponto de ele usar a
idéia de antifilme, e ser um filme que
funciona pela reiteração das falas, das
cenas, de tudo ir e voltar (e voltar ser mais importante).
E, ao mesmo tempo, volta no descontínuo: no descontínuo
do espaço. Se ele começa a fazer cinema
dirigindo Documentário e montando Olho
por Olho só com jump cuts, ele vai
criar com O Signo do Caos o jump cut total.
LCOJr: Tem duas coisas... A primeira é que O
Signo do Caos é um grande tratado sobre montagem
autofágica, porque um plano existe para engolir
o seguinte, e então na verdade o filme nunca
começa – é um grande somatório
num vazio, num grande buraco negro – e o filme acaba
devorando o espectador. E eu acho que, se houve um momento
em que as pessoas ainda se predispunham a ir ao cinema
para ver um filme, fosse ele de vanguarda ou não,
esse filme estava ali como uma aberração,
como um monstro que ia criar um local onde todos os
seus mecanismos de percepção se abismavam
e você não sabia o que pensar durante o
filme – ou o que concatenar. O Signo do Caos radicaliza
isso totalmente. E, do outro lado, teve a brincadeira
que eu fiz, que a minha lista de dez mais do ano não
tinha nenhum filme brasileiro, tinha um filme chamado
O Signo do Caos de Rogério Sganzerla,
que é o lado de um filme que não se conecta
com o que se passa no cinema brasileiro hoje. Na verdade
é uma grande negação disso tudo.
DC: Espera aí. Aí a gente vai pegar uma
idéia óbvia da sociologia, a mais velha
do mundo, que diz que a figura mais distante, mais marginal
está definindo o limite. É óbvio
que ele é posto à margem e é óbvio
que essa margem significa o cinema brasileiro.
LARM: É, e o cinema brasileiro atual.
LCOJr: Mas não tem mais tensão com o local.
O fora dele é um fora tão distante...
DC: Mas existem várias figuras assim e que não
são como o Rogério, que é um caso
à parte, mas que estão tentando produzir
e nesses últimos anos ficaram à margem.
Eu discordo dessa visão do filme, de que ele
apenas se nega, porque existe uma figura que não
aparece no filme que é a fundamental, e que permite
que, a partir daí, a gente vá sempre construir
novos discursos sobre o filme - que é o cara
que fez o filme. Não o cara que fez O Signo
do Caos, mas o personagem que fez o filme que vai
ser queimado em O Signo do Caos, e é sobre
isso que é o filme. O tempo todo, as figuras
que aparecem são os censores. Acho que nessa
trama ele já mostra muito claramente onde é
que ele está se escondendo e onde é que
ele está aparecendo, por conseqüência.
A gente sabe onde é que está a figura
do artista e o discurso do Rogério por essa ausência.
Essa construção para mim evidencia como
ele sempre foi personagem dele – principalmente no Perigo
Negro e nos filmes sobre o Orson Welles, mas em
quase todos os filmes você encontra um discurso
de autor do Rogério. Nesse filme ele tenta criar
mais do que apenas uma figura que discursa, mas uma
trajetória. Então dessa maneira ele está
criando um personagem trágico. E é isso
que faz esse filme ser um negócio tão
forte. Porque ele sabe que está confundindo realidade
e ficção. Sabe mesmo, como sempre confundiu.
Só que dessa vez ele está falando de uma
agonia. E aí é óbvio que a nossa
tendência é misturar isso com a própria
vida do Rogério. Mas me parece que, nesse ponto,
sim, esse filme faz todo o sentido com o cinema brasileiro.
Não é por acaso que a gente está
falando do filme nesse momento. E ele sabe o que é
que representa fazer isso: representa falar dessa figura
que está sendo censurada.
LCOJr: Mas o processo não interessa mais a ele.
DC: Tanto interessa que ele fez esse filme.
LCOJr: Não interessa no sentido em que não
é o principal.
DC: Ele está sendo queimado.
LCOJr: Ele não quer participar do processo.
LARM: Mas a que processo você está se referindo?
LCOJr: Cinema brasileiro.
LARM: Mas não existe um "processo"
que você bate na porta e entra...
LCOJr: Existe uma cena. Existe um momento, um cenário.
LARM: E essa cena é delimitada por filmes, por
um realizador não poder filmar, por várias
coisas... Ao mesmo tempo em que ele não está
participando do processo, é um contra-senso,
porque ele está lá participando, marcando
com esse filme.
DC: Esse filme é isso. E a figura de autor que
morre em O Signo do Caos é um negócio
violentíssimo. Ele está falando que uma
arte está sendo interrompida, e a interrupção
dessa arte interrompe a vida. E ele faz isso num momento
em que ele vai remeter a uma figura do cinema que era
a grande promessa, o Orson Welles. A grande promessa
que num determinado momento foi considerado um vilão
porque teve todos os recursos, foi o mais genial...
E o Rogério não vai vender o Orson Welles
como o cara que gastou o dinheiro, vai apresentar como
o cara que foi genial demais para ser aceito. É
esse o personagem que ele está construindo e
com o qual ele está se identificando – e esse
personagem não aparece. Esse filme não
tem Orson Welles, Orson Welles é ele, é
óbvio. Ele faz um tratado que não é
sobre o Orson Welles, mas sobre o cinema brasileiro,
e sobre a figura dele e de outros, de uma geração,
de uma situação cultural.
LCOJr: Mas os planos do filme na verdade são
várias ilhas de solidão que a montagem
se nega a religar.
LARM: Eu discordo disso. Eu acho que existe uma outra
ligação, mas não necessariamente
uma negação. Se a gente tomar como parâmetro
a linguagem clássica narrativa, é claro,
aí você vai dizer que todos os planos são
uma ilha. Mas acontece que existe uma outra ligação,
e essa outra ligação é aquele negócio:
decifra-me ou te devoro. Você fala que
é o filme que queria devorar o espectador, mas
desde que o espectador também se coloque dentro
de uma posição completamente intransponível.
LCOJr: O filme não tem espectador.
LARM: O filme não tem espectador, mas até
isso é tematizado. E quer coisa mais atual para
falar de processo, já que a gente está
falando de processo do cinema brasileiro?
DC: É só você ver a lista das bilheterias
no ano. É muito cruel e é muito forte
que O Signo do Caos tenha sido o último
filme de um realizador com a trajetória do Rogério,
tenha estreado, e tenha sido o filme menos visto do
ano.
LCOJr: Mas o filme já começa a ser feito
sabendo que ele não vai ter espectador, e isso
não importa.
LARM: Concordo. Agora, não é que isso
não importa. Ele não tinha outra alternativa.
DC: Ao contrário. Não é que não
importa. Ele dá um sentido trágico a esse
"não ter espectador" que é
a grande dor do filme, que é o fato do gênio
não poder criar.
LCOJr: É uma dor parecida com a do Glauber no
A Idade da Terra. Se for buscar na história
do cinema brasileiro um filme que mais parece com esse,
é A Idade da Terra. É uma dor muito
parecida.
DC: Tem uma dor parecida, mas A Idade da Terra
não explicita isso.
LARM: E outra coisa, A Idade da Terra aponta
para uma redenção.
DC: Os dois têm a mesma questão: o Brasil
é um país colonizado, o cinema é
uma arte colonizada, a gente está recebendo uma
arte colonizada, a gente está recebendo uma influência
lá de fora e está tentando copiar. A
Idade da Terra tenta negar isso e fazer uma outra
coisa, e fala isso. Em O Signo do Caos, o cara
mostra que ele sabe fazer muito melhor, só que
ele sabe que aqui não dá para fazer um
troço diferente. Não dá, não
tem espaço.
RG: Eu acho que vocês estão falando de
registros diferentes, mas de registros que existem simultaneamente.
O próprio Rogério nunca tentou se inserir.
Desde a volta para o Brasil ele só se inseriu
como o sujeito de fora. Uma lógica muito estranha,
porque é uma lógica de inserção,
mas é uma lógica de inserção
pelo lado de fora. E é sobre cinema brasileiro
o tempo todo? É. Mas ao mesmo tempo eu concordo
com o Júnior de que é um OVNI.
DC: Mas é um OVNI de dentro!
RG: Bom, aí depende, porque se é um OVNI,
já está de fora. O próprio filme
articula essa lógica.
DC: É pior do que o OVNI, é o alienígena
que está dentro e não consegue ser aceito.
RG: Mas está dentro do quê?
DC: Está dentro do Brasil, só que está
elaborando o discurso como crítica.
LCOJr: Eu não estou falando do que o filme fala,
mas do lugar em que ele se inscreve, em que ele se aloja.
DC: Ele é produzido no Brasil, então sobre
esse aspecto você não tem o que discutir.
Tanto que você tem lá o Carlão e
o Capovilla lá embaixo na lista de bilheteria.
São cinemas diferentes? São. E o Capovilla
também tentou fazer um registro não-realista.
LCOJr: O filme do Carlão não dialoga com
o público por acidente, porque o Carlão
gostaria que dialogasse.
DC: Sim, o do Capovilla talvez menos. Eu entendo o que
você quer dizer. Mas sob esse aspecto, em qualquer
lugar que O Signo do Caos tentasse ser inserido,
ele não ia conseguir.
LARM: Mesmo porque o filme tem uma estratégia
suicida, isso é admitido. Se você comparar
a trajetória do Sganzerla com a trajetória
do Bressane, por exemplo, a gente vê claramente
a diferença. O Bressane também não
está preocupado em conquistar um grande público.
LCOJr: Mas achou um lugar possível de ele continuar
a fazer cinema dentro do que é o cinema brasileiro
hoje.
LARM: O que só prova o quanto é mais ambicioso
ainda o projeto do Sganzerla, porque ele não
reivindica um espaço. Ele simplesmente se joga.
E ele pode encontrar o vazio.
RG: Mas ele sabe que ele vai se jogar e que vai cair
num não-espaço que é o não-espaço
que o filme teve.
DC: E tem uma dor de não ter o espaço
para aquilo que ele sabe que está fazendo e que
é o melhor.
RG: Ele se joga, ele sabe a agonia disso, mas ele sabe
que é a única possibilidade dele.
DC: Isso é impressionante. Em nenhum momento
o filme é cerebral. Isso salta muito aos olhos.
LCOJr: Você, Morris, tinha mencionado o "Decifra-me
ou te devoro", mas no caso é "Devora-me
ou te devoro". É briga.
DC: Não tem como digerir, é algo indigerível.
RG: Há ainda um último cineasta com filme
lançado nesse ano, que tem se posicionado numa
situação de conflito mas também
buscando uma tentativa de inserção pessoal
com seus filmes digitais, que é o Domingos Oliveira,
com Feminices e agora com Carreiras, que
deve estar para estrear. Também é de negação
dos mecanismos de incentivo e produção
do cinema brasileiro, fazendo os filmes com os amigos,
com as câmeras que aparecem, com o dinheiro que
aparece, e fazendo todo mundo engolir o máximo
que pode, jogando o filme numa tela, pedindo para as
pessoas exibirem e tendo a resposta que conseguir.
LARM: Mas o que é mais complicado com O Signo
do Caos é que ele investe essa coisa da luta
para o espectador. Existe uma comunicabilidade muito
grande entre o filme que o Domingos Oliveira faz e o
público. É uma comunicabilidade fácil,
tranqüila que sempre houve na obra do Domingos
Oliveira.
DC: O Domingos é o maior barato, é bom
pra cacete, ele sacou que tem que fazer filmes para
50 mil pessoas e que dá para fazer filmes viáveis
para essas pessoas, só que ele faz um cinema
muito acessível que não é o cinema
que o Rogério fazia.
LARM: Mas o Sganzerla sempre falou: "Nós
não gostamos de gente!".
DC: Mas é covardia falar do Domingos depois de
falar de O Signo do Caos.
LCOJr: Mas o Domingos está confortável.
Ele não está lamentando estar fazendo
filme com vídeo, na casa dele, com a mulher dele.
Ele está se sentindo muito à vontade.
TM: Eu acho que talvez o filme do Domingos seja o que
mais se aproxime disso que nós falamos, de haver
um filme sobre o hoje.
LCOJr: Mas é um hoje delineado pelo Baixo Leblon
e por aquelas redondezas ali.
RG: Todo mundo situa ele como um Woody Allen brasileiro
mas eu acho ele muito mais próximo de um Eric
Rohmer brasileiro.
DC: É o maior barato. Às vezes acerta
mais, às vezes acerta menos, mas está
sempre indo na dele.
RG: Eu acho Feminices o mais legal porque é
o que conjuga melhor a produção que ele
tem com a urgência e o filme que ele vai fazer.
Ele pega uma peça que é um material com
o qual ele não está muito confortável,
ele muda o tempo inteiro, é um filme de processo.
Isso talvez seja uma possível, tênue ligação
com o filme do Sganzerla. E se no Amores e no
Separações existia um certo desnível,
eram filmes que podiam ser contados com um maior orçamento,
acho que o Feminices é inteiramente coeso
com a proposta, com a estética.
EG: E o Carreiras também.
RG: Isso. Eu acho que ele está chegando num patamar
de extrema junção entre a técnica
de que ele dispõe, sendo o próprio produtor,
e o filme que ele quer fazer. É uma técnica
caseira, eu acho isso lindo. Eu acho que o cinema brasileiro
podia fluir muito por esse lado.
LCOJr: Feminices, nesse aspecto, eu acho um filme
mais interessante do que Separações.
Justamente porque em Separações
a gente via que a técnica caseira na verdade
parecia um desleixo.
DC: Mas o Amores já tinha isso e funcionava
muito bem.
LCOJr: Amores é um dos meus filmes preferidos
da década de 90.
RG: Mas agora já estamos falando dos filmes do
ano que vem e dos filmes da década passada. Acho
que é hora de terminar.
Parte 1: Os
espaços ocupados e a visibilidade dos filmes
Parte 2: Representações
e reflexos da realidade: ausência de um elogio
do agora.
Parte 3: Olhares históricos.
Parte 4: Os novos talentos
da ficção e o documentário.
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