CINEMA FALADO PARTE 2
Representações e reflexos da atualidade: ausência de um elogio do agora.

LCOJr: Então a gente chega numa questão crucial, que eu estava comentando com o Ruy ontem, na saída de Bete Balanço, que passou no CCBB, que é o seguinte: não existe hoje, eu estava tentando pensar, um filme que busca iconografar e também estilizar o presente.

DC: Tem, mas são mal sucedidos. Você pensa no Nina, que é um péssimo filme, pensa no filme da Rosane Svartman.

LCOJr: É diferente. A Rosane Svartman faz um jogo narrativo voltando toda hora para os anos 80.

TM: O que você chama de estilizar o presente?

LCOJr: O que o Nina faz, o que o Nina te revela sobre o que está acontecendo hoje na juventude paulistana? O que esse filme tem de potencial para ser um documento que daqui a vinte anos, em uma mostra sobre anos 2000, você vai ver em Nina?

EG: Só se você achar que o Nina e o filme do Murilo Salles, o Seja o Que Deus Quiser.

DC: Acho que sim, urbanidade, a menina solitária...

LARM: Cama de Gato.

DC: O problema, Júnior, não é que não haja esses filmes, é que são os piores filmes brasileiros.

RG: Tem uma diferença, porque você pega o Bete Balanço, por exemplo, e ele vai fazer um elogio, um elogio de tudo que é novo e que está acontecendo. O novo, em Seja o Que Deus Quiser, a contemporaneidade, tudo é sempre visto numa chave negativa.

DC: É doentio

RG: Da mesma forma que a internet no Bossa Nova é feita na chave de um desejo não correspondido, sempre numa chave da negativa.

LCOJr: É justamente aí que eu quero chegar. Esses filmes todos são sintomas de um contemporâneo.

GSJr: No caso do filme do Murilo Salles uma visão bastante preconceituosa e caricata, vista de quem está de fora, de um cara de duas gerações anteriores.

LCOJr: E tem o Cama de Gato, de um cara que supostamente pertence a essa geração e que já faz um retrato negativo.

DC: Totalmente negativo com relação a tudo. Ele odeia a platéia, ele odeia os personagens, odeia os atores, odeia o cinema.

LARM: Como aquele filme, Contra Todos.

LCOJr: Ele quer que olhem para o filme dele e falem: "Como esse cara é um niilista". Ele quer esse "elogio".

RG: E ele não só faz um zoológico ficcional mas também tenta transportar esse zoológico ficcional para o mundo, para dizer que esses personagens existem naquelas cenas documentais.

DC: Naquelas cenas documentais escatológicas que, enfim, as pessoas ficam dizendo: "Pô, meu, mas eu faria isso".

LARM: E com essa lógica de que documentário revela mais...

LCOJr: Pois é, justamente, como se aquilo fosse a comprovação da falência completa.

EG: Dá uma "legitimidade".

DC: É inacreditável que ele tenha acreditado que aquela encenação pudesse ter um ar agressivo, aquela coisa mal feita. Na verdade isso me lembra muito a coisa do Bianchi, porque é um desprezo pela encenação, um desprezo pelo personagem mal construído só pela idéia da mensagem, "eu preciso dizer alguma coisa", sendo que a mensagem não é elaborada, a mensagem é puramente o negativo. Acho que esses caras podiam fazer um filme que é só uma cartela: "Eu odeio vocês". Dá menos trabalho, gasta menos dinheiro. Eles não gostam de escrever, eles não gostam de desenvolver um personagem, não gostam de desenvolver uma cena, não gostam de filmar a cena, é uma coisa assim que salta aos olhos. Eles só querem agredir a platéia. Então vai lá no cinema e enfia a porrada nas pessoas. (risos) Pára de gastar dinheiro pra isso.

RG: Mas tem uma estratégia muito curiosa que acontece no Bianchi, por exemplo, acontece no Cama de Gato que, ao mesmo tempo, à medida que eles fazem a crítica do que está acontecendo eles se alçam numa posição superior de alguém que está vendo e está denunciando. Se o Cronicamente Inviável ainda tinha aquela figura do cineasta pesquisador que, você não sabia se era o Bianchi ou se não era, nesse último filme dele fica muito claro.

LARM: Isso é mais grave porque o único que ele resgata, o único que ele recupera é o cineasta, o publicitário.

EG: Que ele salva.

LARM: Isso é muito na cara, que ele salva.

DC: E tem aquele discurso lá, a favor dos seqüestros, que fica uma coisa realmente gratuita, ele nem sequer consegue articular isso de uma forma muito dramática para incomodar. É simplesmente um xingamento.

TM: Ele não tem nenhuma articulação de teoria, na verdade. É só um conjunto de coisas que ele chega e expõe.

DC: Um conjunto de raivas, mais do que de coisas.

GSJR: Inclusive é um filme que, enquanto fosse um trabalho de tese, um trabalho acadêmico, no meu ver seria reprovado pela banca. (risos)

RG: Porque nem no nível da encenação nem no nível do discurso tem mise-en-scène, tem scène, mas não tem mise-en-scène. "Mise" é organizar e não tem nada organizado, justamente, simplesmente dá vazão aos preconceitos.

EG: É como a gente falou do Cama de Gato.

GSJR: E nada embasado.

EG: Como o Cama de Gato se sustenta com os documentários, esse faz a mesma coisa com os arquivos.

LCOJr: É outra estratégia, mas com um mesmo fim.

DC: Para mostrar a "realidade".

LCOJr: Eu desconfio da própria raiva, porque é como você falou, se o cara tivesse com raiva mesmo ele fazia isso, botava uma cartela.

DC: Acho na verdade um cinismo, uma coisa, meio "poser".

TM: E acho que também ele se vangloria um pouco, na estrutura do filme, dessa falta de organização. O filme também faz um elogio dessa coisa fragmentada, "vou mostrar um pedaço aqui, vou encenar um negócio aqui, vou mostrar esses negros com essas máscaras e isso vai causar um efeito". Eu acho que o próprio filme também se coloca dessa forma. "Eu vou causar um efeito e não vou apresentar uma tese."

DC: Porque um registro não naturalista, no caso o Cama de Gato tenta até ter um certo naturalismo, mas esse não naturalismo que o Quanto Vale... ambiciona pode ser extremamente rentável, ele pode ser extremamente forte. Ora, é óbvio que o cara, a partir do momento em que ele resolve denegar a realidade e criar uma cena que foge desse olhar realista, ele tem que realmente criar a cena. Não é simplesmente chegar e jogar os atores. Não é por aí, não faz sentido isso, para apenas passar essa mensagem. Aí eu não entendo porque o cara está fazendo cinema, sinceramente. Eu entendo que o cara queira fazer cinema para fazer com que os espectadores se confrontem com coisas incômodas, acho isso extremamente defensável, não é simplesmente "ah, nós temos que mostrar a vida como ela é bela, ou as histórias de superação, ou então nos ver sobre um olhar negativo". Não é querer que o cinema seja um mar de rosas ou que seja o cinema dos bons moços. De maneira nenhuma. Agora, de qualquer maneira é preciso que isso mobilize nós que assistimos, o próprio cinema, isso se mobilize de uma forma muito mais orgânica. Que não seja simplesmente, exatamente o que a gente já falou, não pareça ser simplesmente uma coisa "poser". Porque senão eu não consigo acreditar naquele discurso, eu não consigo levar isso a sério.

GSJr: E ele leva o discurso com uma falsidade, com uma manipulação, que, a meu ver, ele utiliza os mesmos dispositivos que ele está tentando denunciar na picaretagem das ONGs.

RG: E é por isso que existem dois finais, um final redentor e logo depois...

EG: Acho ridículo.

RG: E é parecido até com o final de Contra Todos. Que vai levar um personagem a ser considerado: "bom, pelo menos esse personagem está redimindo a história". Mas na verdade ele é o pior de todos: "olha como foi ele que ferrou todo mundo". Você tem algo do tipo, muito parecido.

LARM: Eu coloco Contra Todos nessa mesma situação.

RG: Sem dúvida. Ligeiramente com mais mise-en-scène, mais organizado.

LARM: Mas de um cinismo absoluto.

DC: Mas o Contra Todos com todos os problemas que ele tem, ele se difere nisso, porque por mais que ele tenha realmente esse cinismo, tenha uma certa raiva do mundo, mas, indiscutivelmente não dá para dizer que o cara queria dar porrada no espectador. O filme tem um prazer de ser cinema que é muito diferente dos outros. Os atores estão muitos fortes. Você pode se sentir agredido por isso. Mas eu não acusaria o Contra Todos de ser um filme de um cara que não gosta de cinema. Você pode até dizer que ele não gosta de outras coisas. Pode não gostar de coisas muito importantes na vida, isso pode até ser, mas acho diferente do caso de um Cama de Gato onde para mim o cara não gosta de cinema. O cara não gosta do que ele está fazendo. Não é possível. Contra Todos não. Acho que tem uma pegada muito diferente.

TM: Vendo essa questão do realismo, quando você falou de uma representação não realista, é engraçado como tem determinado momento em que ele vai pegar essa representação naturalista, que seria o documentário, que é aquela hora que eles estão vomitando e que ele inclusive chega numa velhinha e ela põe a mão na frente da câmera e diz: "Não, você não vai me filmar" e que ele utiliza o próprio código da representação naturalista como mais um elemento de atração, dentro do circo "poser" lá.

DC: E quebrando ele quando bem entende quebrar, mas na verdade de uma forma grosseira como aquela morte da mãe em Cama de Gato, que é antológica, mas isso certamente não é um elogio.

LCOJr: Quando eu puxei o assunto da ausência de um filme que se sinta à vontade no contemporâneo, de um filme que ache agradável estar vivendo em 2005 e ache agradável estar acompanhando de perto ume determinada cena pop de 2005, quando eu puxei isso a partir de Dois Filhos... é que justamente, mesmo nos filmes que vão pegar um fenômeno pop, alguma coisa para elogiar, o cara precisa voltar, precisa contar uma historinha que aconteceu um pouco antes, você precisa de alguma maneira mitificar aquilo. Quer ver um outro filme: Diabo a Quatro. Um filme que supostamente está ali para falar de uma juventude, zona sul do Rio.

EG: Não é só do Rio. Depois ela faz um painel também, tem um mineiro.

LCOJr: Justamente, depois ele vai para aquela parte lá, mas aí você olha o filme e fala "um filme de agora", mas na verdade o filme fica o tempo todo brincando com referências típicas dos anos 80, fica brincando com uma estética totalmente enraizada lá nos anos 80, e também uma coisa totalmente aquário.

GSJr: Ele torna contemporâneo um fato clássico dos anos 80, o lance das latas de maconha.

LCOJr: Grosso modo, você não vê um filme com a Kelly Key conhecendo um cara no Orkut e a partir daí você tendo toda uma história de amor, ou seja, um filme gostoso sobre as coisas que estão acontecendo agora.

GSJr: Vamos pensar esse filme aí.

LCOJr: Seria interessante.

DC: O Carlão tinha um projeto de um filme com a Kelly Key há bastante tempo. Mas eu discordo com relação ao Diabo a Quatro porque ele tem um problema muito evidente, uma característica muito evidente que é o fato de que ele parece juntar vários filmes num só.

LCOJr: Teve 30 mil roteiristas, cada um tinha uma ideiazinha.

DC: Nem sei se isso é coisa de roteirista, mas eu acho que, enfim, é uma coisa que caracteriza o filme o fato que ele oscila de tom, em alguns ele acerta muito bem, acho que é muito legal a parte do bordel lá de Copacabana. Acho bem interessante. Acho engraçado aquele cafetão frágil.

LARM: Aquilo eu não estava suportando.

DC: Eu confesso que acho engraçado. Me arrancou umas gargalhadas.

GSJr: Mas, em compensação, quando a mulher começa a contar história de boiúna pros clientes, bicho, não há saco que agüente.

LCOJr: Insuportável. Eu acho essas cenas no bordel puro papel de parede. Todas elas.

LARM: Eu acho essa coisa do filme ir se desestruturando um pouco como uma coisa meio tradicional do cinema brasileiro.

DC: Acho que ela meio que procurou isso. Acho isso interessante, ela quis fazer isso.

LARM: Tem vários filmes em que o personagem se desestrutura. Que ele vai se espalhando, ele vai mudando.

DC: Mas isso não é uma coisa antiga.

LCOJr: Eu acho que esse negócio do filme ficar afirmando uma incapacidade de discurso, na verdade, o filme acaba sendo um grande somatório de bobeiras.

RG: Acho que ele tenta dar dimensão, ou seja, é "O Diabo a Quatro", não é um, não é uno, o filme não tenta homogeneizar o ambiente, ele tenta pegar um clima de Copacabana, como Copacabana é uma selva, mas ao mesmo tempo ele não consegue articular nada além disso. É sempre 4, é sempre 4 e não tem nada, no fundo ele é um grande exercício sobre não muita coisa. Eu acho que, nesse sentido, talvez, Bendito Fruto seja um filme mais focado na idéia de crônica. Porque os dois mal ou bem eles estão entrando numa crônica de um certo espaço geográfico. Tentam mostrar várias diferenças mas um está sabendo o filme que quer fazer e o outro acha muito legal fazer um monte de coisas.

DC: Acho que isso é um pouco cruel com o Diabo a Quatro porque acho que ele tem vários acertos muito bons.

RG: É, mas eu acho que é um dos filmes mais vazios de discurso e de estética desse ano.

EG: Também acho.

GSJR: E no meu entender, quando eles vão pra Minas o filme perde completamente o sentido.

LARM: Mas ele tem uma tradição do Lilian M., sabe, esses filmes em que o personagem começa de uma forma e termina de outra completamente diferente ou volta para o que era, mas depois de passar por várias modificações etc e tal.

GSJR: Lilian M. é um filme muito bem articulado.

LARM: Eu estou dizendo que esse filme, apesar dele não ser bem sucedido nisso, ele tem uma herança. Porque eu não gosto do Diabo a Quatro, eu acho que ele não é bem sucedido nisso, mas eu vejo uma tentativa de se filiar a esse tipo de construção que eu acho que é meio tradicional no cinema brasileiro.

EG: Essa personagem, a personagem feminina...

LARM: E eu acho que isso é consciente. Não se trata de um filme desconjuntado porque ela não soube fazer. Acho que ela procurou, isso é consciente, mas não deu certo. Acho que ela buscava essa multiplicidade, só que, por exemplo, acho que a atriz não convence...ela é muito bonita...

DC: Acho que a personagem é melhor que a atriz.

RG: A cena em que ela perde o bebê, aquilo não dá.

DC: O surfista também, ele é engraçado, mas...

LARM: Esse aí já deu provas mais que suficientes.

EG: Ele está fazendo o papel dele mesmo e acho que mesmo assim ele faz mal. Um playboy zona sul...

LARM: Acho uma cena horrorosa aquela dos pivetes fazendo aquele rap, acho aquilo constrangedor.

DC: Aquilo é bem fraco.

RG: Mas eu queria pegar um pouquinho o que o Júnior estava falando, porque eu acho que ao mesmo tempo a gente tem que inserir num espaço que é extra-cinematográfico, mas é o espaço em que a gente vive que é a relação de como um país funciona e, naturalmente, a partir de 2002 um monte de gente quis ver o que iria acontecer, cantar os louros de um outro momento político do país e na verdade desde 2002 a gente está esperando aparecerem os laços de um novo momento do país e não aconteceu.

DC: A gente ainda está esperando o governo de esquerda chegar ao poder.

RG: Pois, é, eu acho que a estética de certa forma está correspondendo a esse impasse. Do ponto de vista dos acontecimentos culturais, claro, tem muitas coisas a se falar, acho que sem dúvida um fenômeno é o funk. Aí tem um filme que tenta dar conta disso, o Sou Feia Mas Tô na Moda, mas aí como um documentário inserido. Como um documentário que é claramente focado numa determinada forma de expressão localizada na Cidade de Deus. O filme sempre circula por lá. Um filme até muito interessante, um dos mais interessantes desse ano, mas e que é um filme que tenta ver o que tem de novo, o que está funcionando por aí, mas ainda assim numa chave que não é uma tentativa de tentar entender o que é viver nesse mundo, mas como vivem certas pessoas que estão fazendo a diferença em sua forma de expressão nesse mundo. Agora, acho que sim, de certa forma, a partir de 2002 um monte de gente estava ligando antena para tentar entender o que está acontecendo, o que vai acontecer nesse Brasil que está vivendo uma experiência nova, pela primeira vez um partido trabalhista é eleito e de certa forma acho que, mal ou bem, a gente não viu acontecer. Ao ponto de que, talvez, em 2006 a gente vá ter um ciclo fechado. Talvez não se feche esse ciclo. Mas, se em 2006 o Lula termina um ciclo, possivelmente o filme que vai ter mais a cara desse período talvez seja mesmo Dois Filhos de Francisco.

LARM: É o filme da era Lula.

EG: Acho que esse e O Casamento de Romeu e Julieta também.

DC: Acho que sobre O Casamento de Romeu e Julieta a gente tem que começar a fazer um paralelo

RG: Porque Dois Filhos..., se a gente pegar as principais características, o filme não vai criar o argumento da predestinação, uma idéia de que é pelo talento, que eles são mais talentosos do que o resto.

LARM: É pela teimosia.

EG: Pela obstinação.

RG: Pela teimosia. Que é o caso do Lula. O cara que foi, tentou, tentou infinitas vezes, brincava com o Maluf, que o Maluf era um presidente competente porque competia e não vencia, mas o próprio Lula foi essa figura que tentou, tentou e pela obstinação chegou lá.

DC: Para ser mais a cara do Lula acho então que, sinceramente, quando eles começaram a fazer sucesso eles tinham que começar a cantar bossa nova.

RG: Mas aí já vamos entrar num outro mérito que não está na tentativa de entender o que foi o cinema brasileiro nesse ano. Até concordo com o seu argumento, mas...

RG: Talvez ao tentar botar a Maria Bethânia cantando você tenha um efeito paz e amor.

DC: É uma espécie de Henrique Meireles no banco central, a Maria Bethania apresentando...(risos)

LCOJr: Ainda faço um acréscimo a essa qualidade de Dois Filhos de Francisco como um filme que retrata o momento, mesmo por vias indiretas... Na verdade a Maria Bethânia dá a pista de que o filme funciona em algum momento como um grande documentário sobre um projeto de cinema que a Conspiração vem desenvolvendo. Fazer um filme bonito, mas o filme bonito que vai atingir o público.

LARM: E fazer um pouco de diagnóstico do país, eu acho.

DC: Isso não é da Conspiração, isso é no Dois Filhos de Francisco.

LARM: Mas, por exemplo, aquele filme anterior da Conspiração, Redentor, ele procura fazer um diagnóstico.

DC: Casa de Areia não está nem aí pra isso.

RG: Eu vejo Dois Filhos...como uma ruptura total, eu não vejo como uma continuidade dos filmes da Conspiração.

LARM: Também não vejo não.

RG: Sobretudo, vamos voltar, do ponto de vista da construção cenográfica . Em Dois Filhos de Francisco eu vejo aquelas pessoas existindo naquele ambiente, e se a gente for ver os longas da Conspiração, tirando os filmes do Andrucha, quer dizer, colocando até possivelmente o primeiro dele, se você for ver O Homem do Ano, Traição, Redentor, aquilo parece de papelão.

DC: É verdade.

RG: Dois Filhos..., por mais que seja mitológico, existe uma certa consistência, mesmo por que o mito precisa de uma certa consistência e quando vai pro urbano você tem o personagem num ambiente de fato. Eles são pessoas que estão naquele mundo. Não é o Murilo Benício de cabelo louro, parecendo que ele está num videoclipe. .

LCOJr: Concordo. Mas sob o ponto de vista de uma equalização de alguns vícios da publicidade, um projeto de cinema que quer a todo momento flertar com o popular e invadir o espaço do popular, acho que aí o Dois Filhos... seria um belíssimo documento dessa passagem.

DC: Mas na verdade essa idéia que você fala de um projeto popular, eu acho que ela é altamente discutível. Eles podiam querer, mas na verdade sempre se dirigiram à classe média. Esse filme é diferente, mas acho que aí é muito importante a gente lembrar uma coisa: esse é um filme de encomenda.

EG: Um produtor e co-roteirista do filme é o Zezé.

DC: Os caras queriam fazer essa história. O Zezé e o Luciano, principalmente o Zezé que é o empresário, que é o cara antenado da coisa, queria fazer um filme sobre a própria história porque ele sabia que poderia se dar bem nessa. Inclusive até ganhar um status social, um respeito social que ele não tinha até então e eu tenho certeza que agora isso mudou muito. Garanto que o Zezé de Camargo, pela classe média brasileira, ele é visto de uma forma muito diferente antes e depois do filme, e isso é algo que certamente ele ambicionava, entre outras coisas.

RG: Se a gente brincar com essa coisa da distribuição de renda, o filme exerce uma certa redistribuição do capital cultural e da inserção dos sertanejos num capital cultural cult.

DC: E vamos ser mais irônicos, dá também uma inserção industrial da Conspiração no cinema de grande público.

RG: Que eu acho ótimo, inclusive.

DC: A Conspiração sempre quis fazer filmes de grande público e nunca conseguiu. O próprio Andrucha, que foi convidado pra fazer o Dois Filhos..., ele falou isso pra folha na mesma semana em que a gente está gravando isso aí, ele foi convidado e não se arrepende, porque fez o filme que ele queria fazer, que é o Casa de Areia, mas ele falou que ficou muito feliz pelo Breno e muito feliz pela Conspiração que enfim conseguiu fazer um filme de sucesso. Que, realmente, é o maior sucesso que a gente teve em anos e o primeiro grande sucesso deles. Isso sem sombra de dúvida é um troço muito saudável, é muito bom, mas acho muito curioso também que não seja um projeto pessoal deles o que lhes tenha permitido fazer sucesso. E eu acho interessante agora, voltando a essa questão industrial, numérica dos espectadores, como é que você pode pegar o Dois Filhos... e comparar com um filme que o Estevão mencionou que queria ser um cinema popular, que é O Casamento de Romeu e Julieta que inclusive segue uma série de procedimentos do cinema popular.

RG: É uma comédia carioca passada em São Paulo.

DC: Para São Paulo.

DC: Em alguns momentos, o Bruno Barreto, com todos os defeitos que todo mundo conhece muito bem, indiscutivelmente ele encena bem a coisa, ele tem um talento pra fazer com que a coisa funcione, seja por ele ou pelo esquema todo que o organiza, mas enfim, o filme, vendo sob esse aspecto direto mesmo ele funciona, ele é engraçado, em certos momentos ele consegue ser terno, mas é impressionante como, com relação à ambição de chegar ao público, o Dois Filhos... é uma prova de que um novo cinema está fazendo sucesso, um cinema até de encomenda, mas é um cinema que existe, que faz sucesso, e que um outro modelo de cinema se destina ao fracasso. E eu acho muito significativo que a gente comece esse 2006 com essa coisa vergonhosa que é a atitude do Luiz Carlos Barreto de criar uma briga inexistente, uma falcatrua que simplesmente inexiste. Essa coisa do Barreto foi o seguinte: ele deu uma entrevista à Folha recentemente, depois de uma polêmica vazia entre o Ferreira Gullar e um funcionário do MinC... Quer dizer, um ano depois de uma discussão importante como a da Ancinav, a coisa se reduziu a nada, a um bate-boca entre um poeta assumidamente desinformado e um burocrata que não soube conter a grosseria na hora de responder... E aí o Barreto deu uma entrevista questionando a política de distribuição de verbas, de "pulverização", segundo ele, deixando claro que, por trás de uma discussão tola sobre a possível demissão de um burocrata, ou seja, um negócio que não tinha nada a ver com o cinema brasileiro, mas por trás rolava um jogo de pressões absolutamente inaceitável.

RG: Tensão pré-edital. (risos)

DC: Exatamente, tensão pré-edital... E ele começava a criticar o governo, dizendo que "o governo luta contra o cinema popular", que qualquer filme que faça sucesso o governo quer derrubar. O que a bilheteria desse ano nega completamente, ou seja, é um discurso sórdido, canalha, do maior produtor da história do cinema brasileiro, mas ele faz um discurso que é constrangedoramente canalha quando ele vira e diz que "os filmes que fazem sucesso estão sendo punidos". Ora, meu amigo, se o filme faz sucesso, ele não precisa da ajuda do governo, ele tem bilheteria, público pagante, dinheiro das pessoas que vão ver o filme, eles não dependem do dinheiro do BNDES ou da Petrobras. O Dois Filhos de Francisco é um sucesso, e, pro projeto que foi, esse filme do Bruno Barreto pode ser um filme simpático e tal, mas infelizmente é quase um fracasso, porque se fosse um sucesso o Bruno Barreto poderia fazer um outro filme seguinte com o dinheiro dele, como poderia ter feito com a bilheteria de seus filmes anteriores, e não precisaria ficar o pai dele pagando mico em entrevistas.

RG: Toda essa conversa de que parece que o governo é autoritário é engraçada, porque da maneira como todos esses produtores falam, a maneira como o Cacá Diegues também já falou, é como se o governo fosse obrigado a dar dinheiro para eles.

GSJr: Eu queria falar dessa linha de fracasso que a gente está apontando no Casamento de Romeu e Julieta, que é um filme até em certas partes moderadamente divertido, dentro do que se pretende. Ele quer ser um filme popular, mas não se assume em nenhum momento como filme popular. Ou seja, essa paixão entre uma palmeirense e um corintiano, isso deveria ter sido feito, já que o filme quer ser popular, com personagens pobres. O filme é situado num universo de classe média alta. Um médico bem sucedido e a família de um advogado rico.

DC: Pelo apartamento das pessoas você vê claramente que não é um universo que você chamaria de popular.

GSJr: Se ele trabalha essa história, com a mesma rivalidade entre as famílias num universo popular, partindo pra um bairro tipo Brás, de São Paulo, usando alguns artifícios de comédia dos anos 50, o filme teria sido bem mais interessante.

DC: Em vários momentos você percebe que o filme se guiou por opções de estratégia de mercado. Essa coisa do filme se passar em São Paulo, ser uma comédia carioca que se passa em São Paulo, é porque evidentemente se ele fizesse isso entre Flamengo e Vasco a chance de dar grande público no Rio era menor que a chance que esse teve em São Paulo. Mais gente vai ao cinema em São Paulo, o mercado paulista de cinema é muito maior que todos os outros. E o filme na verdade se sustenta muito bem numa boa atuação do Marco Ricca e sobretudo do Luís Gustavo, que é um ator de comédia muito bom.

EG: Berta Zemmel, que faz a avó, também está muito bem.

DC: É muito evidente como essa idéia de cinema de grande público no Brasil tem essa questão: a gente sabe que a Globo Filmes é tremendamente importante, mas a gente também sabe que está havendo certas disputas e que um cinema que se pretende popular caducou, e um outro cinema popular também pode aparecer, há espaço pra isso, como o Dois Filhos de Francisco deixa muito claro. Por mais mítico que isso seja, existe essa vontade por parte do público, sim, e Dois Filhos de Francisco se beneficiou disso, ao passo que O Casamento de Romeu e Julieta não se beneficiou por uma série de razões. Eu acho extremamente triste acompanhar essa luta de alguns produtores para se manterem na ativa de uma forma tão doentia, nefasta, essencialmente negativa ao cinema brasileiro como um todo.


Parte 1: Os espaços ocupados e a visibilidade dos filmes.

Parte 3: Olhares históricos.

Parte 4: Os novos talentos da ficção e o documentário.


Parte 5: Casa de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices e o cinema de Domingos Oliveira.

 

 





2 Filhos de Francisco, de Breno Silveira


O Diabo a Quatro, de Alice de Andrade