Ruy
Gardnier: Se a gente pegar o ano do ponto de vista dos
fenômenos, foi um ano que basicamente vai jogar
a recorrência para um motivo principal, um sucesso
cuja arrecadação chega a quase quatro
vezes a do segundo lugar. Um ano de vários projetos
que eram para ser sucessos projetados à maneira
de alguns anos anteriores, mas acho que o único
que funcionou sob o ponto de vista de grande circuito
foi Dois Filhos de Francisco e o único
que funcionou na chave miúra, de circuitinho,
é Vinicius. Há alguns filmes que
fizeram mais ou menos o que se imaginava, outros filmes
que foram muito abaixo do que se imaginava, os que a
gente mais preza, mais nos interessa do ponto de vista
crítico, de questões de cinema, de afirmar
a força de uma mise-en-scène, uma
construção, e de um ponto de vista especificamente
mercadológico você tem um ano que funciona
quase com um filme só, ou com dois. Se visto
sob o ângulo da comunidade cinematográfica,
aí acho que, ao contrário, há algumas
felicidades, algumas estréias muito bem vindas,
acho que o caso de estréia no longa de Marcelo
Gomes , do Sérgio Machado no longa de ficção
– vale lembrar que ele já tinha feito um longa-metragem
documentário, Onde a Terra Acaba, anos
antes.
Daniel Caetano: Me parece que tem algumas fragilidades
muito evidentes, saindo apenas do aspecto da bilheteria,
falando justamente desse ponto de vista crítico,
de cinema, da qualidade dos filmes eu vejo problemas
muito graves com relação aos projetos
que foram em frente, os projetos que emplacaram. É
muito significativo que a gente tenha em último
lugar, penúltimo e antepenúltimo três
filmes de cineastas muito significativos como Sganzerla,
Capovilla ou Carlão. Isso evidencia que um cinema
que nos interessa profundamente não está
tendo espaço, não só não
está tendo escoamento. É até razoavelmente
discutido, mas é muito pouco visto. Isso é
um problema muito grave. Noves fora isso, me parece
que tem alguns projetos razoavelmente consistentes,
tanto do aspecto comercial quanto do aspecto estético,
mas que não lograram grande êxito, ficaram
projetos no meio do caminho. Acho que a gente pode ver
coisas absolutamente diferentes, como Mais Uma Vez
Amor, em que a Rosane Svartman levou adiante um
estilo de cinema que interessa a ela, o Roberto Gervitz
com Jogo Subterrâneo, ou o próprio
Cabra Cega do Tony Venturi, onde acho que há,
sim, idéias desses realizadores bastante claras,
eles sabem que espaço querem ocupar, mas não
lograram êxito e eu acho que os trabalhos não
saíram bem sucedidos como filmes. Eles poderiam
ser muito melhores do que os realizadores queriam que
eles fossem. Me parece que mesmo não tendo a
melhor relação com Como Ser Solteiro
acho que ele é muito superior ao Mais Uma
Vez Amor. Acho também que o Roberto Gervitz
tinha muito mais idéias e não conseguiu
trabalhá-las de forma satisfatória em
Jogo Subterrâneo, principalmente nas transições
entre as partes. E o que eu acho mais significativo
disso que eu estou falando é o caso do Jorge
Furtado, porque sob o aspecto de público a gente
vê que aconteceu uma coisa que era ambicionada,
que era ocupar uma faixa de mercado médio, dos
filmes que ficam acima dos 200 mil, que conseguem mais
ou menos se pagar, entrar no mercado, mas não
conseguem chegar a 1 milhão, não é
um estouro de bilheteria, isso conseguiu se ocupar.
O Coronel e o Lobisomem pretendia ser maior,
mas enfim, acabou ficando nessa faixa e de alguma maneira
esse mercado foi ocupado.
Gilberto Silva Jr: O filme do Furtado também.
Ficou bem aquém do que eles queriam que fosse.
RG: Mas o Furtado sempre fica nessa faixa mesmo.
DC: Ele esperava esse tipo de coisa. Acho que talvez
a Paula Lavigne, que produziu o filme, não, mas
dentro da expectativa que ele trabalhou... Mas Meu
Tio Matou um Cara é um filme com problemas
bastante graves, ao que parece. Na forma, no filme em
si... Eles comentaram que a produção foi
muito ágil, talvez essa agilidade seja muito
boa, sim, seria mais simples que isso acontecesse se
fosse uma série de filmes feitos com agilidade,
quando você faz um filme só com grande
agilidade, não há a tarimba dos técnicos,
sobretudo dos atores para fazer com que isso aconteça
a contento. Acho que uma grande parte das falhas de
o Meu Tio Matou um Cara é uma falta de
trabalho. Algo que sempre caracterizou o Furtado é
que parecia que ele retrabalhava a coisa bastante, com
um grande cerebralismo e o Meu Tio Matou um Cara
não tem isso, o que expõe muito as fragilidades
do filme. Não é um filme emotivo, não
é um filme visualmente requintado, não
é para ser, não era esse o interesse,
mas aquilo que ele tem de mais forte parece que não
deu tão certo
Estevão Garcia: Não tem também
o virtuosismo de roteiro dos outros filmes.
RG: Bem menos
Luiz Carlos Oliveira Jr: Esse foi mais morno.
GSJr: Mas de qualquer maneira ele repete alguns truquezinhos,
sem dúvida, do Homem que Copiava.
DC: Mas acho que sai com menos força, dá
menos certo.
LCOJr: Mas eu confesso que a parte que eu mais gosto
do filme, por incrível que pareça – porque
nunca fui um defensor dessas artimanhas, pelo menos
quando isso é o que faz valer o filme –, no Meu
Tio Matou um Cara o que eu mais gosto é a
parte mais "furtadiana" do filme, aquela brincadeira
com as fotografias que é todo o desenlace propriamente
dito. Mas quando o filme termina parece que ele queria
ter feito uma comédia romântica adolescente,
e aí sim eu começo a ver um projeto que
para mim não se realizou a contento.
RG: Eu não sei, eu acho que (Furtado) sai do
curta pro longa com uma estratégia ainda muito
coerente, não é nem uma estratégia,
uma forma de filmar, uma forma dele criar um universo
que é através da maquinação,
tanto da maquinação de roteiro quanto
do diretor como um sujeito que maquina o mundo, e também
das pequenas maquinações que as pessoas
criam. E então acho que de certa forma se eu
vejo algo que eu fico contente no Meu Tio Matou um
Cara é justamente que parte do filme não
funciona tanto assim, mas ao contrário, ele tenta
um pouco arejar esse ambiente, ele vai acabar dialogando
talvez mais até com um tipo de gênero que
é mais constante no cinema brasileiro, que são
essas comédias ligeiras, comédias emotivas,
comédias emocionais.
DC: Eu acho que esse arejamento, talvez até em
Houve Uma Vez Dois Verões ele fosse até
mais arquitetado, mas acho que ele não passava
essa impressão. Você percebia o cerebralismo,
o fato do roteiro ser todo bem construído, isso
não batia na hora, batia depois, a gente percebia
como todo o roteiro era engenhoso, mas ele tinha um
ar de espontaneidade que eu achava muito mais interessante
do que Meu Tio Matou um Cara.
LCOJr: Estava no próprio despojamento...
EG: Nos atores...
DC: Os atores em Houve Uma Vez... eram muito
mais eficientes.
Luís Alberto Rocha Melo: O Houve Uma Vez...
foi feito antes ou depois do Homem que Copiava?
DC: Foi feito antes, mas foi escrito depois, na verdade,
porque O Homem que Copiava era um filme extremamente
complicado, sob todos os aspectos do pensamento do filme
mesmo e o Houve Uma Vez ele mesmo falou que era
um filme mais simples, todo arquitetadinho, mas era
para ser uma coisa mais despojada, que funciona muito
mais.
RG: Engraçado, eu jamais imaginaria que o primeiro
filme que a gente fosse começar a discutir fosse
o do Furtado é um filme que mal ou bem, na recepção,
e eu não digo só a recepção
da Contracampo, mas a recepção em geral,
não foi um filme que motivou muita conversa,
isso, talvez, caracteriza muito possivelmente o ano
de 2005: há uma defasagem profunda entre os filmes
que se comenta e essa lista, a lista das bilheterias.
Porque tirando Dois Filhos de Francisco, a maior
parte dos filmes que foram comentados, goste a gente
– aí no caso O Signo do Caos, Bens
Confiscados – ou não – Quase Dois Irmãos
etc –, os filmes que foram discutidos com um pouco mais
de ênfase nas revistas mais especializadas, Cine
Imperfeito, Contracampo ou na mídia mesmo, os
jornais, são os filmes que não chegaram
a 50 mil, ou que ficaram mais ou menos em 50 mil. Acho
que isso cria um efeito muito esquisito porque basicamente
a discussão do cinema brasileiro acontece num
gueto de 50 mil pessoas.
DC: Na verdade eu achei que era interessante falar do
Meu Tio um pouco por causa disso: porque sendo
exceção na verdade ele tende a ser um
caso muito exemplar nesse universo do cinema brasileiro,
sendo um realizador já bem conhecido, o Furtado,
esse esquema de produção maior e ficar
nessa faixa de filme médio. Mas eu concordo com
você.
LARM: Mas eu acho interessante o que você falou,
buscar essa faixa média.
DC: Porque o Dois Filhos... é um caso
de exceção absoluta e eles sabem disso.
Qualquer ano vai ter sempre esses casos de exceção,
a exceção é a regra.
LARM: Do jeito que a gente está configurando
a discussão, fica parecendo que existe aquele
antigo cinemão, que seria esse do Dois Filhos...
, o filme de gueto, que é esse aí do Sganzerla
e o filme médio, quer dizer, é curioso
a gente pensar nisso num cinema que normalmente a gente
costuma dizer que todo ele é o gueto. Mas na
verdade a gente está meio que configurando essa
subdivisão.
LCOJr: E onde estariam esses filmes que eu tenho uma
impressão – mas aí é aquela coisa:
é saber se fora do círculo que a gente
freqüenta há essa impressão também
– de que foram filmes que aconteceram, como Cidade
Baixa, Cinema Aspirinas e Urubus, Bendito
Fruto, o próprio Quase Dois Irmãos...
filmes que estavam no jornal sempre.
LARM: Mas eu me pergunto se eles poderiam acontecer
de outra forma.
TM: O próprio Casa de Areia.
RG: Pois é, quando o Júnior fala que eles
aconteceram, acho que eles aconteceram de fato porque,
mal ou bem, eles aproveitaram todas as oportunidades
dentro do meio em que eles foram lançados, comentados,
LCOJr: Se mantiveram em cartaz muito mais do que um
filme que já entra em cartaz num circuito de
arte almeja. O filme agüentava nem que fosse numa
salinha. O Cidade Baixa ainda está em
cartaz, se não me engano.
TM: Até ontem estava na UFF
DC: Ainda está sendo exibido por aí, no
Rio de Janeiro já está saindo, mas está
em outras cidades, assim como o Cinema Aspirinas
e Urubus conseguiu ter o apoio da Globo, conseguiu
divulgação.
EG: É, foi bem divulgado, na televisão...
LCOJr: E chega como o "bom filme", como exemplo
do que é um bom filme.
EG: Ganhou prêmios também. Em Cannes...
O filme usou isso também.
DC: E quando entram no mercado de DVD esses filmes acabam
conseguindo sair porque teve boa divulgação,
chegam do cinema bem falados.
RG: Sem dúvida, e ao mesmo tempo, para falar
do ano de 2005, se a gente pega apenas esses indicadores
de público, mas na verdade a gente sabe que a
disseminação tende cada vez a ser mais
destinada ao consumo caseiro, ou seja, no VHS e no DVD,
na verdade a voga desses filmes vai permanecer ao longo
de 2006. Os filmes de fato tendem a ter uma vida útil
mais longa, e talvez se dê um fenômeno que
não é nada inesperado, mas um fenômeno
com o qual a gente não conta quando pega esses
números e conversa aqui que é o fato de
que certos filmes vão fazer em vídeo muito
mais sucesso que outros, ou seja, isso vai ser rearticulado
de alguma forma, essa grande economia da memória,
essa geopolítica da visibilidade do cinema brasileiro,
ela vai ser reconfigurada a partir do DVD, a partir
de certas pregnâncias. Acho que é natural
que, sei lá, daqui a 20 anos esses filmes que
a gente citou como filmes que deram certo vão
continuar sendo lembrados enquanto vários filmes
que fizeram muito mais, 5 vezes mais público,
vão tender a ser esquecidos, e aí sobretudo
o cinema mais de gênero, sobretudo o gênero
infantil, que é um filão constante de
cinema brasileiro. Agora, uma coisa que me interessou
muito no que o Luís Alberto falou é que
mal ou bem a gente já está num momento
que tem faixas de mercado que são segmentadas.
Então não é todo o cinema brasileiro
que está no circuito do gueto e não é
mesmo, isso já não é há
alguns anos, por mais que você não tenha
voltado a ter um ano como os de Carandiru e Cidade
de Deus, onde se tinha um grande impacto de percentagem
de ingressos para filmes nacionais, você ao mesmo
tempo já tem algo consolidado, todo ano tem um
filme que estoura, todo ano tem alguns filmes que fogem,
que entram nessa faixa de público entre 200 e
500 mil espectadores e naturalmente você tem os
filmes que vão fazer entre 2 mil ou mil e poucos
e 50 mil, são várias faixas que estão
aí, mas, na verdade, um filme que entra pela
Riofilme vai fazer no máximo o que o Quanto
Vale ou É Por Quilo fez, coisa de 30 mil.
DC: Na verdade a gente tem que registrar que a Riofilme
não existiu em 2005. Os filmes lançados
pela Riofilme foram com um resto de dinheiro, alguns
foram feitos inclusive com participação
de outras distribuidoras porque a natureza político-jurídica
da Riofilme, ela não recebeu verbas da prefeitura
quase nenhuma e ficou praticamente parada com um presidente
que diz que está interpretando um papel. E há
que se registrar que ele interpretando um papel parece
que não entende o que significam as falas dele
e está sendo um tremendo canastrão
RG: Inclusive saiu como o mico do ano no Globo. Agora,
há que se contar que os últimos filmes
são títulos da Riofilme.
DC: Os maiores fracassos, como sempre, são da
Riofilme, mas dessa vez isso é muito mais evidente
do que seriam porque antigamente a Riofilme ainda tinha
ambições, e nos últimos anos a
gente nem sabe se a distribuidora ainda tem condições
de continuar.
GR: Mas voltando ao que o Luís Alberto estava
falando, o que eu falei a partir do que ele falou, de
que se tem uma consolidação dessas faixas
de mercado que acabam existindo e se configurando a
cada ano que passa, e ao mesmo tempo acho que já
tem filmes que se projetam, que já são
feitos de cetra forma para tentar ser encaixados a partir
de um ponto de vista de uma lógica de público
e aí eu falo especificamente de um filme que
nasce como um projeto popular de radiografia popular,
não é à toa que é um primeiro
projeto de ficção do grupo do Coutinho,
que é o Bendito Fruto. Que é um
filme em que parece que está inscrito, em toda
a lógica do filme, uma certa inserção
de um cinema nacional popular cult.
DC: Considerando ainda que o diretor também trabalha
como roteirista para a Globo.
LARM: Um detalhe também nessa história
que eu acho interessante, que é a questão
também do filme médio, que de certa maneira,
se você coloca o Bendito Fruto nessa mesma
faixa do Meu Tio... você tem inclusive
uma exploração de um tema, não
sei se é tema na verdade a palavra certa.
DC: Você pode também lembrar do caso mais
claro disso aí que é o Filhas do Vento.
LARM: Mas O Homem que Copiava, Meu
Tio... e Bendito Fruto trabalham na questão
racial de uma forma muito próxima, não
problematizando inclusive o que é mais problemático
nisso tudo, criando uma harmonia que tem muito a ver
com esse "nacional popular" .
DC: É a coisa da conciliação extrema
do racismo, na verdade você não lida com
a idéia, simplesmente ignora, você denega
a existência do racismo que é uma maneira
na verdade de contestá-lo.
GSJR: Mas o Bendito Fruto de uma certa forma
problematiza isso.
EG: Muito mais que o Meu Tio...
LARM: Sem dúvida, isso não é o
problema do filme, mas acontece que o filme parte para
uma conciliação aberta no final, isso
é inequívoco. Enquanto o Jorge Furtado
não problematiza, e isso é problemático.
EG: Ele harmoniza.
LARM: O outro problematiza, mas resolve de uma forma
completamente...
RG: Mas a questão do Bendito Fruto eu
acho que, em alguma medida, ela não é
só uma questão racial mas acima de tudo
ela é uma questão de esfera social, de
classe social.
DC: Ela é a empregada.
RG: Porque o que mais impede o Otavio Augusto de assumir
a relação que ele tem é o fato
de que eles cresceram juntos, e ela é a filha
da empregada.
EG: É a "mãe preta".
RG: Então você sempre vai ter uma outra
chave.
DC: Eu tenho dúvida se é só isso
LCOJr: Tem a figura da mãe, que só aparece
na verdade através de um retrato pintado...
EG: Que é ele, travestido.
LCOJr: Justamente, e que a pessoa na verdade é
a grande figura que fica ali, não sei metaforizando
o quê, o fantasma da casa grande, fica ali como
quem meio que censura. Censura ele, censura essa relação
e censura o fato dele poder assumir. Fica uma cena bem
marcante em que ele está almoçando com
a Vera Holtz, eles olham pro retrato e a cara dele depois
é a cara de quem está considerando as
coisas.
EG: E tem um racismo velado da Vera Holtz também...
a personagem dela é racista.
RG: Sem dúvida.
EG: "A criolinha", e tal.
DC: Há que se dizer que essas compreensões
dependem muito do ator, porque o Otavio Augusto consegue,
a gente consegue perceber essas coisas nele com uma
nuance porque na verdade a própria atuação
dele é muito rica.
LARM: Excelente
LCOJr: O Sergio Goldemberg trabalha como roteirista
pra televisão fazendo exatamente o quê?
GSJR: Malhação.
LCOJr: Porque na verdade uma coisa que eu acho interessante
no Bendito Fruto, e que dá toda a chave
do filme, é que ele, de alguma forma, justamente
faz uma conciliação, isso já no
início do filme, quando começam os créditos,
tem aquelas cenas de rua e aí tem aquela cena
totalmente artificial do bueiro caindo em cima do táxi;
que é justamente essa conciliação
do fait-divers com uma fábula novelesca.
E aí ele vai jogar isso para como ele trabalha
com o espaço, você vê que ao mesmo
tempo o filme parece com a ficção de televisão
até da Grande Família, só
que justamente a diferença é que o cara
não se contenta com o cenário, ele não
se contenta com uma cenografia que simplesmente está
lá para associar ou colar o personagem numa tipologia,
colar o personagem com alguns signos já conhecidos
e aí você fazer uma leitura fácil
daquele personagem. Na verdade não, o cara quer
mais do que isso. Eu confesso que demorei uma meia hora
para começar a gostar do filme. Acho um filme
simpático, mas no começo eu não
estava gostando do filme, achava que era apenas uma
versão um pouco melhor, bem realizada e um pouco
mais sóbria, talvez, justamente de muita coisa
que eu já vejo na televisão, de muita
coisa que eu já vejo numa dramaturgia de raízes
chanchadescas.
LARM: Eu acho que ele religa com o cinema dos anos 50
EG: E dos anos 60, 70. Mais 70.
RG: Eu acho que é uma crônica de costumes
LARM: Também dos anos 50, sabe, o Agulha no
Palheiro. Tem muito do Alinor Azevedo.
RG: Tem muito, sem dúvida ele é um filme
pensado como um projeto popular, e isso já religa
ele a toda uma tradição.
LCOJr: O filme sabe muito bem que o código matriz
do público dele está lá numa coisa
que o cinema construiu entre os anos 50 e 70 e que a
televisão importou e transformou.
LARM: E não é a toa que a televisão
está lá dentro do filme... O ator chega
e diz exatamente o que a pessoa tem que dizer nessa
hora.
LCOJr: O personagem do Moscovis, justamente. O filme
sabe exatamente a importância que tem, para as
pessoas com quem ele está dialogando, ele sabe
muito bem a importância que tem esse imaginário
criado pela telenovela.
EG: Até trilha de novela tem.
LARM: Que remete à infância deles.
TM: Isso é o "popular cult" que o Ruy
falou.
RG: Pois é, é o "popular cult"
porque é um filme em que ele vai fazer a crítica
do popular manipulador, porque o ator, a persona pública
dele é heterossexual mas no fundo ele é
homossexual, mas o que vai dar a verdade do personagem
é o cinema, a televisão vai dar a mentira
da figura. Então vai ter esse registro. E eu
acho que o filme é muito interessante por que
eu acho que isso acaba funcionando como uma subtrama
que vai ligar a questão da aceitação
de ser quem se é e gostar de quem se gosta do
personagem principal, de certa forma também num
eixo de classe, num eixo sexual e no outro de raça.
Mas eu acho que acaba funcionando bastante.
LCOJr: Acho que a grande dialética do filme é
essa, é de cenas externas e cenas internas e
de uma ficção novelesca e uma ficção
cinematográfica. Quando ele faz uma interna ele
está o momento inteiro flertando com esses cenários
de TV, no entanto quando ele faz uma externa ele faz
uma externa de verdade, sabe, com espaço mesmo.
DC: Vai pra rua.
GSJr: E o filme tem uma coisa que me agrada muito, a
exploração do espaço geográfico
nas externas, do bairro de Botafogo, do universo de
classe média baixa.
DC: Quase subúrbio, isso é legal.
LCOJr: E é diferente, por exemplo, de Sexo
Amor e Traição, em que quando o filme
faz uma externa ele está continuando a fazer
o mesmo cinema do estúdio
RG: Sem dúvida. Eu acho que até nas externas
do Bendito Fruto você tem aquela sensação
de que aquele personagem habita o espaço muito
mais forte do que nos filmes da Globo em que você
está claramente num estúdio, aquela parede,
todos aqueles badulaques, eles simplesmente não
servem para o personagem habitar aquele lugar, mas servem
ou para significar ou para fazer casa de verossimilhança
.
DC: Eles ficam "dressando", ornamentando a
coisa.
RG: Até em Dois Filhos de Francisco a
gente tem isso. Quando vai pro urbano, eles não
vão usar os meios de estúdio, mas vão
usar apartamentos reais, apartamentos de fato exíguos
até, e você sente o personagem habitando
aquilo. Pode dizer que, não que claramente aquela
parte camponesa é muito mais mitológica
e aquilo tudo, do ponto de vista do jogo cenográfico
é mesmo de fato. Tudo que existe ali é
uma pobreza, mas de certa forma ela é estilizada
pela falta de aparelhos, de coisas de cena, de pequenos
objetos.
LCOJr: É icônico.
DC: É uma pobreza nobre...
LCOJr: É uma impressão de familiaridade.
Para criar uma impressão de familiaridade não
propriamente com aquele espaço, uma vez que a
maioria dos espectadores que estão vendo esse
filme provavelmente nunca habitaram uma casa daquele
tipo, mas uma impressão de familiaridade com
aquela representação.
RG: Sim, sem dúvida.
LCOJr: O modo de representar aquele tipo de habitação
e aquela classe é algo com que o espectador já
está familiarizado, já está acostumado
e eu gosto bem mais da segunda metade de Dois Filhos.
DC: Eu acho que você é o único que
gosta mais da segunda parte.
LCOJr: Eu tenho certeza absoluta.
LARM: Só para complementar esse negócio
que você acabou de falar, quer dizer, a relação
do espectador com a representação desse
lugar, que é interessante quando a gente recoloca
esse negócio do que tem no Bendito Fruto,
o cinema sendo a verdade e a televisão a mentira,
quer dizer, é interessante isso porque quando
você vai para um filme como esse você tem
esse tipo de dualidade também, na própria
representação do filme, o espaço
urbano sendo representado de uma determinada forma e
o espaço rural de outra.
LCOJr: Uma outra forma, distante, justamente porque
está distante de quem está realizando
o filme.
LARM: Que estatuto é esse?
LCOJr: Mas justamente porque está distante de
quem está realizando o filme e distante da maioria
das pessoas que está vendo o filme, então
este espaço tende à mitologia, claro,
ele tende a ser visto por uma ótica refratada,
enquanto que um espaço urbano é muito
mais simples de você filmar porque é justamente
quando esses personagens chegam para perto e você
pode usufruir de uma "naturalidade" maior;
o filme ganha em ambiência, ganha até em
agilidade.
DC: Eu discordo extremamente em você achar que
ele ganha agilidade. Concordo com você que a encenação
dessa coisa, desse interiorzão, de Brasil real,
por mais mitológico que seja, ela funciona como
uma história sendo contada, muito mais do que
a segunda parte que eu acho extremamente frágil,
sob aspectos da encenação.
RG: Ela é frágil narrativamente justamente
porque muita coisa acontece, muitas elipses têm
que ser feitas.
DC: Não só narrativamente
LCOJr: Elipses mal administradas.
RG: E isso acaba funcionando assim, mas não acho
que é uma questão de encenação
não, acho que a questão é que o
filme tinha que ter uma certa duração,
por volta de 2 horas, e mal ou bem, enfim, certas coisas
tiveram que ser tiradas.
DC: Na verdade é uma história de sucesso
que não transmite tanta realidade não,
entendo porque a maneira de aproximar seja junto com
o real, mas a coisa não me transmite nem um pouco
essa segurança, essa verossimilhança toda.
Acho que ao contrário, quando ele entra na parte
documental final acho mais interessante, por mais que
claramente seja um apelo lacrimoso, tem uma dose de
emoção e proximidade muito maior do que
nessa parte em que, enfim, em que o garoto quer estourar
na vida. A parte com o Zé Dumont e com as crianças,
por mais mitológica que seja...
EG: É muito boa, a melhor parte.
LCOJr: Eu cheguei a comentar, na época que foi
lançado o filme, que a primeira parte, antes
deles pegarem a estrada com o Zé Dumont, tinha
sido para mim uma espécie de muro que eu precisei
destruir para chegar no filme. Estava de saco cheio
daquilo ali até que chega a parte que eles ganham
a estrada, onde o filme para mim literalmente ganha
agilidade sim, e o que eu mais gosto no filme, principalmente,
é quando ele conhece a mulher dele, a Paloma
Duarte.
DC: É mesmo?
LCOJr: O filme ganha ali aquela cara de sessão
da tarde que me agradou bastante, acho uma parte muito
doce, e o final, a parte lacrimejante, eu gosto muito
daquela cena deles com o pai e a mãe no palco.
DC: Eu não concordo com aquele negócio
do romance dos dois não, até acho simpático,
mas toda parte dele querer vender a música no
rádio... não dá certo mesmo. Mas
a parte deles com o Zé Dumont na estrada eu acho
bem legal.
RG: Acho que é um filme que, se nós sete
formos bater as nossas impressões do que não
funciona ou não no filme, vamos ver que cada
um tem opiniões muito diferentes e aquilo com
que cada um se emocionou é muito diferente, acho
que a princípio não dá para sistematizar
nada. Eu, por exemplo, a parte que de fato lacrimejei
foi a parte que eles ganham seu primeiro tostão
com a música quando vão na rodoviária.
DC: Você chorou nessa parte?
RG: Chorei... acho bem bonita. (risos) O filme
é o musical do ano. Ele repete com muito mais
força o sucesso de Cazuza no ano anterior.
Com muito, muito mais força.
GSJr: Naturalmente por que acho que o filme é
bem melhor.
EG: Muito melhor que Cazuza.
LCOJr: Sei não... Não acho melhor não.
DC: Eu não sei se acho melhor não, mas
sem sombra de dúvida ele tem um acesso, ele consegue
ser acessível para as pessoas, porque tem essa
coisa de Brasil real, de interior da história
do sucesso... O Cazuza, a problemática
do Cazuza talvez incomodasse mais a classe média
à qual ele se referiu tantas vezes porque o Cazuza
tem essa coisa de ser filho de pai rico, de ser um garotão
drogado e depois ter assumido a homossexualidade, enquanto
essa agora não. È a história do
sucesso de alguém que veio de baixo, tem uma
nobreza de sentimentos... História de pai e mãe...
TM: Tem outra coisa, porque o Cazuza é
muito mais uma figura fechada, enquanto que isso acaba
sendo mais um símbolo de uma coisa maior, os
dois são eles, mas não são só
eles, são eles que poderiam ser outros.
DC: É...história de um Brasil que dá
certo.
TM: O Cazuza não, é "o"
Cazuza.
GSJr: Aquela coisa da família forte também
atrai muito, causa uma identificação.
DC: O Cazuza até tem a coisa da mãe
o tempo todo.
EG: O pai...
GSJr: Mas ele tem um pai com o qual ele está
sempre em contraste
DC: E o registro da família é muito diferente.
Menos nobre.
RG: Mas, pelo registro de classe do personagem e até
do momento, o Cazuza vive um momento de rock que é
algo de classe média, muito restrito, urbano,
ao passo que a música sertaneja é de um
registro completamente diferente de classe, de geografia,
tudo. Completamente diferente.
DC: Nisso o filme se deu bem. Ele conseguiu atrair a
classe média numa lógica de que você
vai descobrir uma história de verdade, que se
passa no Brasil. Uma história de sucesso emocionante,
tendo justamente essa coisa de brigar contra o preconceito.
Pode ser muito interessante, porque as pessoas vão
lá e elas vão descobrir uma coisa que
elas não descobririam num outro lugar.
RG: Certamente...Você vê uma coisa meio
patológica na defesa, porque as pessoas de "bom
gosto" quando vão falar do filme, vão
falar "Não julguem o filme pela música".
GSJr: E é o que me incomoda, a inserção
da música no filme de forma a tornar aquela música
sofisticada. Entra a Maria Bethânia, ao invés
de entrar eles cantando. Só tocam sertanejos
clássicos.
LCOJr: Não as composições deles.
DC: Toca "Tristeza do Jeca".
GSJr: O filme não assume. Não tocam as
composições dos caras.
LARM: Uma grande diferença entre esse filme e
o filme do Nelson Pereira dos Santos, A Estrada da
Vida, que assume abertamente aquilo.
EG: Mas isso também vem do Breno. Todas as entrevistas
que ele deu falando sobre o filme ele falou: "Não,
vamos quebrar o preconceito". O marketing que envolve
é sobretudo esse.
RG: Um marketing encampado. Você vê que
o Zanin tanto quanto a crítica do Globo foram
falar: "Vai sem medo."
DC: Sem medo dos seus preconceitos.
EG: Teve uma frase no Globo que falou assim "É
uma prova de que o filme popular pode ser bom."
LARM: É... pode ser popular e bom
DC: Dureza... E você falou bem em comparar com
o filme do Nelson, como a coisa vai por um outro tipo
de relação porque o Nelson faz uma imersão
naquele mundo mesmo, e usa os próprios caras
como atores. A história da vida de Tonico e Tinoco.
LARM: Mas tem uma coisa. Em A Estrada da Vida
esse tipo de dupla caipira, sertaneja e tal não
tinha esse apelo todo e não tinha esse aparato.
RG: Não tinha esse aparato midiático urbano.
LARM: A MTV como está, não tinha. Mas
eles vendiam e vendiam muito.
DC: Mas isso é verdade, porque antes essa música
sertaneja era localizada em um pedaço do país
que era Goiás, interior de São Paulo,
Centro-Oeste, Minas. Agora na verdade, a partir dos
anos 90, quando teve aquela explosão é
o Brasil inteiro. Aqui no Rio mesmo.
GSJr: Curiosamente a gente estava fazendo um paralelo
entre o Cazuza e os Dois Filhos... e eu
me lembrei que os dois filmes, apesar de universos completamente
diferentes, se passam numa contemporaneidade, a época
de ação dos filmes é anos 80, é
basicamente a mesma.
Parte 2: Representações
e reflexos da realidade: ausência de um elogio
do agora.
Parte 3: Olhares históricos.
Parte 4: Os novos talentos
da ficção e o documentário.
Parte 5: Casa
de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices
e o cinema de Domingos Oliveira
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