DC: Falando dos três filmes
dos cineastas jovens, por mais que eu goste muito menos
do Cidade Baixa do que dos outros dois, e por
mais que Casa de Areia tenha problemas bastante
graves em alguns momentos, acho que claramente são
filmes em que eles acreditam ser o melhor cinema possível.
Os três filmes me passam isso.
RG: Eu acho que essa urgência que você pediu
esses três filmes têm. Nos dois filmes que
se passam no nordeste existe uma matriz que está
ligeiramente clara ou muito clara, que é o Madame
Satã. De certa forma o Karim Ainouz mostrou
para esses filmes que, independente de onde se ambienta
e em que época se ambienta, você pode criar
personagens e criar intrigas e jorrar uma urgência
de comportamento, uma certa liberdade de movimento do
ator, uma liberdade de composição, de
história, que possa ressoar com vigor... E com
uma certa opacidade do personagem: são filmes
que funcionam porque os próprios personagens
mantêm um mistério desde sempre, eles não
são signo para uma outra coisa, mas, ao contrário,
primeiro de tudo eles têm a vida deles, a carne
deles. Isso aparece muito no Cinema, Aspirina e Urubus
e no Cidade Baixa.
DC: Acho que o Cidade Baixa mais quer isso do
que consegue.
RG: Em alguns momentos ele tem uma certa obviedade do
prolongamento da história que Cinema, Aspirina
e Urubus não tem. O filme do Marcelo Gomes
nesse sentido é o mais bem sucedido para mim,
porque ele deslocaliza completamente os clichês,
tudo aquilo que se espera de um filme de nordeste na
fotografia, tudo que se espera de um comportamento de
um autóctone e de um estrangeiro; a questão
da malandragem não pertence ao autóctone
somente, a questão da informação
também não pertence somente ao estrangeiro,
e sobretudo eu acho muito bonita a maneira como o agreste
– aquele solo que está pedindo pro nordestino
sair de lá, porque é o território
da falta de oportunidade – se mostra a única
oportunidade para o estrangeiro. Da mesma forma como
o nordestino vê sua única possibilidade
de destino como uma seta para baixo, para o urbano,
para o sudeste, o europeu vê uma seta para o norte
como um terreno ainda a explorar, um terreno não
completamente dominado, em que ele possa se refugiar
– como um alemão, ele precisa ir pra um lugar
que é um deserto. O filme cria uma fricção,
faz com que a gente veja aquele nordeste que não
é exatamente o nordeste dos nordesterns,
não é um nordeste bonito, da fotografia
vistosa, e ele tampouco é o nordeste estourado
da lente do cinema novo. Ele constrói – na estrutura
narrativa, na maneira como concebe os personagens, o
trabalho de atores, e na maneira, inclusive, como ele
concebe a luz – uma diferença.
LCOJr: O Cidade Baixa, por mais que respire sim
uma liberdade de encenação, de trabalho
dos atores – e aí sim ele segue um certo legado
do Madame Satã na medida em que introduz
o corpo do ator no cinema, de fato; essa é a
linhagem básica: a respiração do
ator e, por conseguinte, uma respiração
da mise en scène –, ainda há ali
o resquício de uma certa armadura da história,
de uma certa armadura narrativa, por mais que ele tenha
conseguido se libertar na maior parte das vezes. Já
o Cinema, Aspirina e Urubus dá um passo
à frente justamente porque a própria história
do filme, salvo uma ou outra cena que deixa o marco
histórico explícito, pode ser perfeitamente
vista sem que nós atinemos para o fato de que
a ação se passa cinqüenta, sessenta
anos atrás. Muita gente depois, conversando sobre
o filme, precisava ser beliscada para lembrar de que
era um filme histórico, ambientado no passado.
Tem a música da época, que surge como
diegética, mas se você se distancia dos
grandes centros urbanos você meio que se distancia
no tempo também, e aquela música pode
muito bem não soar tão anacrônica
num lugar como aquele. E no Cinema, Aspirina e Urubus
há um trabalho com o espaço que, concordo
com o Ruy, é totalmente diferente desse sertão
mitológico que foi retomado por filmes como Abril
Despedaçado, As Três Marias,
totalmente diferente daquele tipo de estilização
do sertão como esse espaço abstrato, um
imaginário muito mais que um espaço propriamente
dito, e totalmente diferente daquele sertão que
a gente tem como matriz lá na tríade rural
clássica do cinema novo. Não é
mais aquele sertão que oprime o homem: o Cinema,
Aspirina e Urubus é um filme quase todo feito
em primeiro plano – ou seja, o indivíduo é
anteposto ao espaço, não há aquela
tomada geral do indivíduo lá no meio,
com todo um solo árido ao seu redor – e é
um filme em que os personagens decidem para que lado
do espaço eles querem ir agora, os personagens
tomam a dianteira da ação, e não
ficam o tempo inteiro sendo determinados, subjugados
pelo ambiente. E nesse sentido o filme opera uma inversão
completa em relação a como aquele espaço
vinha sendo filmado, inclusive por Baile Perfumado,
cujo sertão é um espaço simbólico,
um imaginário do sertão.
LARM: É um imaginário do sertão,
mas que, sem querer cair na coisa do documento, também
procura quebrar um pouco esse sertão árido.
RG: Ele cria uma outra mitologia, mas acho que ele ainda
é um espaço mitológico, não
o mesmo.
LARM: Mas ele pega a imagem de arquivo do Benjamin Abraão
e tenta mostrar que não é só árido,
tenta quebrar um pouco. Assim como eu acho que o Cinema,
Aspirina e Urubus estiliza também, estiliza
de uma outra maneira.
DC: O próprio início do filme assume a
estilização: começa com a tela
estourada e vai fechando o diafragma até mostrar
alguma coisa.
RG: A gente não está dizendo que ele está
dando a verdade do nordeste, mas ao contrário:
a fisicalidade do espaço é ligeiramente
mais importante do que nesses outros filmes.
LCOJr: A temperatura do ambiente pesa mais do que uma
forma de representar aquele espaço.
DC: Na verdade eu acho que o mais próximo da
fotografia do filme é mesmo o Vidas Secas.
A grande diferença é que um é a
cores, o que faz muita diferença, evidentemente.
LARM: Mas Cinema, Aspirina e Urubus é
quase preto-e-branco.
LCOJr: É quase sépia. Têm momentos
do filme que são monocrômicos, totalmente.
Um tom de bege impregnando e variando.
RG: Mas a questão do Vidas Secas envolvia
uma agressão pela luz, e o Cinema, Aspirina
e Urubus não tem essa agressão.
LARM: Traz um mínimo dessa agressão: aquele
primeiro plano.
LCOJr: O que eu dizia é que se trata de um espaço
que o cinema brasileiro já tinha visitado muitas
vezes, mas não daquela forma. É uma forma
nova de trabalhar aquele espaço.
LARM: Mas acho que essa forma nova já vem sendo
buscada, e acho legal você ter lembrado do Baile
Perfumado. Já se vem tentando quebrar essa
coisa do nordeste como a gente conhece no cinema novo
já tem um tempo.
LCOJr: Mas o Baile Perfumado é um mito
de substituição.
RG: Baile Perfumado mostra como é possível
uma apropriação pop daquele ambiente:
eles gostam de dançar, de se perfumar, de beber...
Você pode pintar uma estação de
trem de laranja, de um laranja berrante, que dá
uma aparência que o cara que gosta de MTV vai
ver e se sentir familiarizado.
LCOJr: Não tem sertão pop no Cinema,
Aspirina e Urubus.
LARM: Sertão pop não tem, mas acho que
o nível de estilização é
o mesmo. Todo filme vai cair nisso, não estou
dizendo que tem filme que tem a verdade dentro da imagem,
mas eu vejo na proposta do Cinema, Aspirina e Urubus
um tipo de estilização muito fácil
de criar um formato. Um formato que eu não sei
se substitui ou não, mas é um formato.
LCOJr: Mas o ponto de clivagem é o seguinte:
o cinema brasileiro já tinha tentado captar a
fisicalidade do sertão pelo sentido de opressão,
do espaço que oprime e exclui o indivíduo
daquele ambiente, ou então faz ele sucumbir junto
com aquele espaço. Ou isso ou então a
abstração e a mitificação.
O Cinema, Aspirina e Urubus óbvio que
ultra-estiliza esse espaço, mas num sentido de
uma concreção. Eu imagino que se o Marcelo
Gomes for fazer um próximo filme numa cidade
grande, ele vai ter uma mesma preocupação
em simplesmente ver aquilo como um potencial sensorial,
aproveitar o que o espaço tiver a lhe oferecer,
e trabalhar da forma que lhe convier; acho que ele não
vai tentar buscar um imaginário de cidade grande.
RG: O nordeste em Cinema, Aspirina e Urubus não
quer dizer alguma coisa, ele não está
tentando fazer o espectador comprar aquele espaço
com alguma chave simbólica que está apregoada:
"ah, a desigualdade social... ah, a dificuldade
da subsistência...". Nada disso.
LCOJr: É espaço de verdade, ele hospeda
o filme.
RG: É o espaço de uma ficção
como o espaço urbano seria também o espaço
de uma ficção. De fato o nordeste, até
em Central do Brasil, tem um espaço mitológico
que existe lá, e o nordeste é o centro
do Brasil, ele sai da Central do Brasil para ir para
o centro do Brasil. E em Cinema, Aspirina e Urubus
eu vejo de fato uma reconfiguração.
Se de certa forma o Dois Filhos de Francisco vai
fazer a redistribuição do capital cultural
entre os valores da classe baixa – a música sertaneja
– e vai fazer ele ascender, o Cinema, Aspirina e
Urubus tenta jogar mais para a realidade um espaço
que antes era concebido só como mito. Acho que
são dois ganhos... Fome zero de ficção
(risos).
LARM: Acho que a figura do estrangeiro conta muito no
Cinema, Aspirina e Urubus.
RG: Ele tem uma função muito parecida
com a função do estrangeiro em Tudo
É Brasil do Sganzerla.
DC: Mas o olhar do Orson Welles desenvolvido nos filmes
do Rogério é o olhar do gênio que
encontra aquilo que as pessoas não estão
vendo. E no Cinema, Aspirina e Urubus o estrangeiro
não está enxergando nada além,
ele tem um olhar de superfície. A questão
principal dele, assim como de quinhentos personagens
estrangeiros que infestaram o cinema brasileiro, é
que ele está em fuga, ele precisa do Brasil para
escapar, ele não pode ser achado.
RG: Existem mil diferenças porque os filmes são
completamente diferentes, mas acho que tem essa maneira
do estrangeiro reconfigurar o olhar. Ele não
dá a verdade do lugar, mas ele o reconfigura.
LARM: Essa quebra está totalmente ligada à
figura do estrangeiro.
GSJr: E no caso do estrangeiro do Cinema, Aspirina
e Urubus ele não vem com uma verdade preconcebida.
LARM: Ele poderia vir com uma idéia preconcebida
que em última instância seria a do diretor.
Ele serve como um trampolim mesmo, para saltar dessa
imagem mitológica e dessa outra que está
até meio caduca.
DC: Já que estamos falando de sertão mitológico,
acho que podíamos falar de um dos grandes filmes
do ano, que é O Fim e o Princípio,
do Coutinho... Tudo é um grande mcguffin,
o Werneck falou isso na crítica que escreveu
e é verdade: o Coutinho usa vários mcguffins
no filme pra falar na verdade sobre morte. E eu diria
mais do que sobre morte: esse é o filme mais
pessoal do Coutinho, no sentido de que o grande personagem
do filme é o Coutinho. Tem o Cabra Marcado
para Morrer, é claro, no qual ele é
um personagem mais que fundamental. Mas nesse filme
é tanto quanto no Cabra, no mínimo.
Porque na verdade ele está tentando descobrir
porque ele faz cinema, o que ele quer. E daí
não tem como fugir da trajetória, eu peço
desculpas por todos esses psicologismos inevitáveis,
por essa coisa de fazer referência ao criador,
do fato do Coutinho ter uma herança marxista-comunista
e ter uma herança de quem não acredita
em questões metafísicas, em vida após
a morte, e de repente ele faz um filme para descobrir
por que faz filmes e por que se fazem essas coisas todas.
Então ele recebe a incumbência de fazer
um filme sem saber o que quer e não se define,
simplesmente resolve ir fazer logo o filme e as perguntas
que faz para as pessoas são sempre recorrentes:
"O que é a morte? Como é sua vida?
Por que você está me falando isso?".
E os moradores estão sempre percebendo isso,
eles põem isso em questão com ele, eles
perguntam o porquê daquelas perguntas. Tem um
cara que pergunta: "Você acredita em Deus?",
e o Coutinho responde: "Não, eu não
acredito".
EG: Na verdade ele tenta não falar.
RG: Ele faz a estratégia do analista: devolve
a pergunta.
DC: Acho isso absolutamente fortíssimo no filme,
que se chama O Fim e o Princípio. Parece
que ele está falando do fim da vida e do princípio
da existência, da criação, da finalidade
dessaa coisa toda. E o filme passa isso, não
é um tema escondido; o filme o tempo todo apresenta
isso.
RG: Eu tenho alguns problemas com isso... É o
filme do Coutinho que eu menos aprecio desde muito tempo.
Vi apenas uma vez, então naturalmente estou restrito
a apenas um olhar. Mas de certa forma ele conjuga um
pouco do que mais me incomoda num outro filme dele,
que eu acho o mais fraco desde Santo Forte, que
é o Babilônia 2000, que é
o fato dele impor uma questão que não
se faz presente pela trajetória da aventura:
a idéia de por que no morro da Babilônia
ele está perguntado sobre ano novo, da mesma
forma como me parece que a idéia da morte num
momento aparece como uma constatação,
pelo fato de que naturalmente tem toda uma vida e tem
toda uma iconografia de uma vida rural que está
se perdendo, porque todo mundo que é novo viaja,
vai para a cidade, onde tem mais oportunidade, ou onde
tem todas as atenções. Ser jovem implica
você participar de um mundo urbano, e não
agrário, arcaico. Agora, em algum momento, para
tratar disso, será necessário ele fugir
um pouco mais do tipo de estética que ele consolida,
a estética da entrevista, do encontro, do jamais
saber previamente o que se vai falar, do filme de conversa,
e o filme parte de algo muito aberto. É um grande
filme de suspense, ao menos até o momento em
que não se sabe sobre o que vai ser, e meu ritmo
de interesse invariavelmente decai muito quando eu vejo
que o filme volta para as mesmas recorrências
de conversa, que em algum momento acaba se transformando
num subterfúgio para ter filme. Nesse filme as
vozes das pessoas da equipe me incomodam mais do que
nos anteriores. O Coutinho sempre tinha uma coisa muito
forte de enquadramento e de montagem, de ritmar uma
entrevista com outra, e são entrevistas que nunca
são reiterativas, mas, ao contrário, funcionam
pela dissonância interna, e nesse filme não:
vejo as entrevistas mais como uma coisa de ratificação,
mesmo porque esses personagens não têm
tanto discurso a dar, e acho que esse é um ponto
de fissura forte do filme, porque urbanos gostam de
ficcionar muito sobre si mesmos – os urbanos têm
uma economia da palavra diferente dos camponeses; palestrar
para camponeses é falar bobagem, porque eles
não gostam disso, acham que é coisa de
gente de fora – e acho que nisso o filme cria uma iconografia
sensacional. Mas ao mesmo tempo não existe uma
coesão interna dos elementos como eu vejo e como
acho que faz a força dos filmes que acho muito
superiores, como Peões, Edifício
Máster, Santo Forte. Tudo lá
está muito mais coeso, é muito mais essencial,
e tudo se liga.
DC: Antes me parece que eram filmes de depoimento. E
esse agora me parece um filme de conversa. A figura
do Coutinho, mesmo tentando não falar, está
sempre muito presente, ele está sempre sendo
posto em questão, e o porquê dele estar
fazendo aquilo está sempre sendo posto em questão,
isso eu acho muito forte. Os outros filmes não
são filmes de diálogo: ele vai colher
idéias e faz perguntas. Em O Fim e o Princípio
as perguntas o denunciam muito mais.
TM: No início parece que ele está questionando
o próprio método dele. Há aquela
moça, é ela que está fazendo aquela
mediação, e aquilo tudo fica transparente
ali. Essa coisa da conversa mesmo, de um bate-papo.
E nem transparece tanto o que seria essa discussão
"para que estou aqui? Por que faço cinema?
Qual o sentido da vida?". E sendo isso na verdade
o motivo dessa estrutura toda, eu acho que as coisas
não estão casadas. Essa motivação
de estar lá conversando com as pessoas, por mais
que as cenas valham por si, não está exatamente
casada com a atitude mesma do filme. Ele se perde, se
enfraquece na própria questão de ir pro
nordeste, buscar aquele vilarejo para esse questionamento.
LCOJr: Não vi O Fim e o Princípio,
mas todos os filmes do Coutinho são sobre o dispositivo-Coutinho...
RG: Esse dispositivo em alguma medida falha pelo registro
do palestrar ser diferente, o ficcionar sobre si ser
diferente na vida de um camponês e na vida de
alguém urbano, que está já inteiramente
imbuído desse discurso de ficção,
da televisão, dos múltiplos discursos
de ficção. Fazer parte do núcleo
urbano é ter uma ficção sobre si
mesmo – as pessoas se sentem realizadas ao receber a
atenção de alguém que quer que
elas falem para ser registrado, mediatizado –, e o dispositivo
funciona meio capenga em O Fim e o Princípio,
é como se o filme não pedisse tanto o
dispositivo.
TM: É como se entrasse em curto-circuito, o dispositivo
e o material do filme.
GSJr: Mas isso vem um pouco da própria indefinição,
dele chegar lá sem definir o objeto, o tema.
E esse contraste entre o que o Coutinho conseguiu fazer
nos outros filmes, de fabulação da figura
urbana, e essa dificuldade de fabulação
– até do entender o que é cinema e o que
esse cara está fazendo ali – em O Fim e o
Princípio traz para mim muito interesse ao
filme.
DC: Essa crise do dispositivo me traz interesse, porque
ele percebe, expõe a questão. Em todos
os filmes, as regras são muito claras sempre
e dependem muito da nossa aceitação das
regras e das relações que a gente vai
ter com os depoimentos. Mas nesse agora essa problematização
é muito saudável, é um tema do
filme.
TM: Mas a questão que o Ruy estava falando é
um pouco a de ver o que pede aquilo que você está
encontrando. Então se o seu dispositivo não
se aplica, ele teria como buscar uma outra forma. O
que ele encontra é muito legal, as conversas,
o diálogo, o fato de ser de repente uma prova
é bastante interessante, mas no final se perde.
DC: Mas aí você está encarando como
tema o retrato da comunidade. Qual o tema do filme para
você? Para mim não é esse, não
é a comunidade. Se fosse para ser um retrato
daquelas pessoas, esse dispositivo é falho. A
partir do momento em que não é...
TM: As conversas são muito boas, mas elas poderiam
render mais em termos de exploração daquele
universo mesmo, independente de ser ou não retrato...
LARM: Então por que ele foi pra lá?
DC: Mas é exatamente isso. Existe uma idéia
de imaginário do verdadeiro sertão que
ele vai lá para tentar descobrir, como o cara
que vai para o oráculo: "eu quero entender
minha vida no oráculo". E aí vocês
estão achando que ele tinha de falar do oráculo,
e não: ele está falando dele! Se o Coutinho
ler isso eu tenho certeza de que vai odiar, porque é
sabido que ele não gosta que as pessoas se preocupem
com o que ele fala dele mesmo, mas isso é evidente
no filme. Ele não vai fazer o filme porque quer
falar daquelas pessoas, ele está indo lá
porque existe um imaginário, ele vai pro meio
do sertão da Paraíba. Ele descobre quem
são eles no caminho, apenas. Deram dinheiro pra
ele fazer um filme, um documentário, e ele não
tinha tema, por isso resolveu arriscar. Ele começa
o filme falando isso: "Recebemos dinheiro da Petrobrás
e resolvemos fazer um filme. Escolhemos aleatoriamente,
saímos do espaço urbano".
RG: Como a Petrobrás dá uma grana para
um cara que não sabe o que vai fazer?
DC: Mas é o Coutinho! A Petrobrás vive
fazendo isso. Eu posso discordar plenamente do esquema
que faz isso acontecer, mas no caso desse filme foi
altamente bem sucedido e fez muito bem pro cinema do
Coutinho. Não é mais aquela coisa de:
"eu quero encontrar as pessoas de verdade da
classe média, porque não quero falar da
classe média, mas das pessoas". De repente
ele mostrou que não está falando de religiosidade,
não está falando da classe média,
não está procurando um universo.
LARM: Até por perceber que o dispositivo-Coutinho
já está se tornando um senso comum, ele
chega e mexe nessa questão.
RG: Exatamente. A idéia de base de O Fim e
o Princípio era o próprio Coutinho
fugir daquilo que vinha sendo seu cinema. Fugindo pela
própria vontade dele, porque os filmes em si
não vinham perdendo nada por desgaste. Mas a
idéia não é só o projeto,
é também o resultado. Esse ano ainda tem
um filme de uma assistente recorrente do Coutinho, que
é o Morro da Conceição,
que curiosamente também vai pegar a população
idosa de uma localidade, uma localidade que tem particularmente
seu interesse por ser um lugar muito pouco conhecido
do centro do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo central
e isolado. Se o recorte do Coutinho de alguma forma
exige um catalisador, é naturalizado pelo fato
de que praticamente só tem população
idosa, o Morro da Conceição é
um recorte da vontade da diretora, um recorte arbitrário,
porque ela claramente sabia o que queria fazer, mas
é um recorte que não tenta exprimir o
que o nome do filme dá. No que o filme se constitui?
Ao mesmo tempo, nas entrevistas que a Cristiana Grumbach
faz, mais ou menos na linha Coutinho, e com alguns planos
longos de paisagens sobretudo urbanas, fazendo com que
as fachadas das casas, com que as ruas, com que as pessoas
andando, chegando a suas casas ou chegando de casa,
com que aquela vista – porque é importante a
vista também –, com que aquelas coisas falem.
Se de certa forma esses planos funcionam muito bem,
são muito bonitos isoladamente, têm uma
evocação poética mas ao mesmo tempo
mostram a idade daquelas casas, acho que tanto o recorte
dos entrevistados é ligeiramente esquisito pra
mim – o fato de filmar vovozinhas que nasceram ou que
vieram muito novinhas para lá, e não filmar
toda uma população que começou
a habitar o Morro da Conceição depois,
tanto nordestinos quanto negros, etc... Não creio
que ela tenha feito intencionalmente uma clivagem racial
do filme, mas isso aparece, e é algo estranho.
Mas eu não sei que tipo de registro, que tipo
de iconografia ela quer, se é mais pela base
da simpatia.
DC: Os mais fofos?...
RG: Pois é, mas os mais fofos, o que isso quer
dizer a respeito do Morro da Conceição?
O Coutinho não vai pegar o nome da localidade
e dar o nome do filme. Ela vai. Pra ela o Morro da Conceição
é aquilo, então? E naturalmente, quando
ela faz essa atribuição, aquilo quer dizer
um monte de coisas. Como o Fernando Meirelles quando
ele não chama o seu filme de Tráfico,
chama de Cidade de Deus. De forma que essa escolha
dela parece esquisita para mim, e ao mesmo tempo as
conversas não têm o poder de evocação
tão grande quanto as conversas do Coutinho.
GSJr: É até agradável você
ouvir as histórias daqueles personagens, mas
enquanto cinema parece um sub-Coutinho. Por mais que
ela tenha trabalhado com o Coutinho, eu acho que ela
não consegue transmitir a mesma força.
TM: Eu acho que ela não consegue fugir dessa
pecha.
RG: A pessoa que cunhou o termo, o Felipe Bragança,
não está aqui, mas é algo já
mencionado na Contracampo como praga-Coutinho, que é
essa tentativa de transplantar as idéias do Coutinho
e achar que isso vale para qualquer registro, seja etnográfico,
seja um registro dos encontros, ou simplesmente da gostosura
que é estar criando um diálogo para o
cinema.
LCOJr: É, tem um momento em que as pessoas que
estudam o Coutinho, exaltam o Coutinho, começaram
a propagá-lo como uma bula para o novo documentarismo
brasileiro.
TM: No caso do Morro da Conceição,
"Morro da Conceição" é
como se fosse um espaço-tempo que ela está
tentando localizar, um espaço-tempo perdido.
Então acho que é por isso a escolha de
só falar com as velhinhas, porque ela tenta buscar
não o Morro da Conceição que existe
hoje, não fazer um mapa daquele morro, mas sim
se aproveitar do fato de ser um lugar que pouca gente
conhece, um lugar escondido, para buscar o Morro da
Conceição num outro tempo, como se fosse
um universo perdido no Rio de Janeiro que é Rio
de Janeiro e ao mesmo tempo não é.
RG: Mas isso não é ligeiramente neurótico
para você?
TM: Eu acho complicado...
LARM: Pode ser saudosista?
GSJr: Mas isso é complicado, porque ela cria
um espaço no passado que tem uma vitalidade no
presente, só que o filme não trabalha
um contraste visível entre passado e presente,
e você pouco sabe sobre o Morro da Conceição
propriamente dito.
TM: O que eu acho complicado é que o filme não
chega a dar a dimensão de memória que
isso tem. Porque na verdade ela está tentando
trabalhar com a memória, mas o filme não
dá àquilo tudo, àquele retrato
uma dimensão de memória. É aí
que fica problemático, porque parece realmente
que no Morro da Conceição hoje só
habita velhinha, enquanto na verdade ela quer se remeter
à memória daquele espaço. Mas não
tem essa conceitualização em volta.
RG: Eu acho que você não pode pedir do
filme algo que ele não quer ser. E nesse sentido
ele não quer ser uma radiografia sobre o Morro
da Conceição hoje. Mas você pode
fazer perguntas sobre as conseqüências da
proposta que ela quis.
TM: Acho que a grande conseqüência é
essa. Ela não consegue dar a dimensão
de memória. As velhinhas pegam as fotografias
e começam a contar a história dos filhos,
"era assim, era assado", mas o filme
não se coloca nessa posição de
tratamento de memória.
GSJr: Na maior parte do tempo as entrevistas funcionariam
da mesma forma se as velhinhas morassem em Copacabana,
em Madureira ou qualquer outro lugar.
TM: Justamente. Elas estariam provavelmente falando
do mesmo lugar de forma saudosista. Existe uma dose
de saudosismo muito grande. E a diretora não
deixa transparecer como ela se coloca em relação
a esse saudosismo. Ela realmente é só
a entrevistadora.
RG: Essa é a verdadeira ausência estruturante
do filme.
GSJr: Antes de passar para outros filmes, gostaria de
fazer um breve comentário sobre o Morro da
Conceição. Já que no começo
a gente falou de estratégias de divulgação
e lançamento dos filmes de pouco público.
Eu queria chamar atenção de um dado curioso
– que até me levou a assistir ao filme no dia
em que eu assisti, já que eu não tinha
me programado para ver naquele dia – é que o
filme foi lançado numa sala no Unibanco Arteplex,
e quando você chegava na bilheteria, qualquer
que fosse o filme que você ia assistir, tinha
lá uma divulgadora fazendo corpo a corpo: "Você
já assistiu a Morro da Conceição?
Sabe do que trata o filme?", entregando jornalzinho
do filme, material de publicidade. Talvez se isso fosse
assumido também por outros filmes de pequeno
porte, sendo o caso de filmes lançados num cinema
de várias salas... Eu lembro que o filme estava
passando mais ou menos na mesma época de O
Signo do Caos.
EG: No filme do Bianchi também tinha gente distribuindo
flyer do filme.
RG: O próprio O Signo do Caos teve um
jornalzinho que era distribuído, inclusive na
retrospectiva do Sganzerla que acontecia no CCBB na
semana anterior do lançamento.
GSJr: Mas não teve essa marcação
de chegar conversando contigo, de forma simpática,
apresentando o filme.
RG: Realmente, nesse sentido fez diferença, a
estratégia é sensacional.
DC: Imagina como deve ter sido o pessoal da divulgação
do filme do Bianchi, devia chegar já dando um
pescotapa e falando: "Ô rapá, já
viu esse filme?" (risos)
RG: Aproveitando que estamos na seara documental, eu
queria falar sobre uma linha geral de documentários
que já existe há um bom tempo, talvez
exista desde Anésia – Um Vôo no Tempo,
que são filmes cujo motivo de ser exibido em
salas de cinema você não vê.
GSJr: Abundam documentários que não precisavam
de cinema...
TM: Que é a minha grande questão com Soldado
de Deus...
RG: São projetos que podem até ser muito
legais, inclusive. Independente do mérito do
filme, se são bons, se são informativos.
Acho que na maioria são filmes informativos,
mas que só encontram inserção num
circuito de cinema pelo fato de o documentário
estar com uma certa voga e pelo fato de ter sua fonte
de captação através de editais
para longa-metragem a ser exibido em cinema. Mas basicamente
eles poderiam funcionar tão bem, ou melhor, e
serem mais vistos em redes de televisão, aberta
ou a cabo.
DC: Se passasse na TV, né? Mas o cinema brasileiro
não consegue entrar na TV, mas essa já
é uma questão que a gente conhece muito
bem.
GSJr: E nessa linha, o que a gente tem além de
Soldado de Deus.
DC: Doutores da Alegria com certeza...
RG: E acho que Sou Feia mas Tô na Moda
também. Houve um momento em que cabia à
reportagem investigativa de televisão fazer o
que Sou Feia mas Tô na Moda fez. Se você
pegar um programa como o Documento Especial, por exemplo,
ele fazia coisas assim. Não poderia ter um documentário
na linha de Sou Feia mas Tô na Moda sobre
a Vila Mimosa? Isso foi feito pelo Documento Especial
há sei lá quantos anos. Da mesma forma
que antes fazia sentido jornalismo investigativo existir
nas páginas dos jornais diários e que
a partir de um momento não fez mais sentido –
e hoje se você quer fazer jornalismo investigativo
o resultado vai ser um livro –, o cinema ocupa hoje
o espaço que pertencia à televisão
nas grandes reportagens investigativas. E isso acaba
dando filmes que são bem legais de ver – porque
têm uma urgência temática, como Sou
Feia mas Tô na Moda. Podia ser um filme muito
melhor? Podia. Mas, ao mesmo tempo, só pela pouca
atenção que é dada midiaticamente,
já dá toda a graça de assistir
a um filme como esse no circuito. Mas, de alguma forma,
isso participa de uma mudança, de uma partilha
diferenciada hoje daquilo que existia antes. E é
terrível ver que a televisão cada vez
faz menos coisas interessantes.
GSJr: A gente acaba considerando esses documentários
como uma leva repetitiva e reiterativa entre si, apesar
de eu gostar do filme, Sou Feia mas Tô na Moda,
e de achar que ele pega a força do momento, mas
o filme é televisão pura. Dessa forma
a gente acaba caindo num filme que me chamou a atenção
porque poderia ter sido a mesma coisa, simplesmente
um tratamento de jornalismo de aventuras, um filme-jornal
sobre alpinismo, e que por um acidente de destino na
concepção acabou sendo um filme que, apesar
de eu não achar que foi bem sucedido, mas que
eu achei muito interessante de assistir, que foi o Extremo
Sul.
EG: Eu acho o contrário. Eu acho que o fato de
o grupo da expedição não ser bem-sucedido
em chegar na montanha melhorou muito o filme. Enriqueceu
o filme o fato de a equipe não ter conseguido
subir a montanha.
GSJr: Sem dúvida. Isso torna o filme mais interessante.
Mas, por outro lado, você valoriza uma manipulação
da diretora, porque ela tinha o filme dela em torno
de um determinado personagem – e ela começa a
enaltecer o sujeito que ela faz ser protagonista do
filme – em contrapartida aos demais alpinistas que não
querem continuar no percurso. Então o filme acaba
se tornando até curioso. Mas eu acho fraco e
até certo ponto canalha, quando ela decide tornar
o outro grupo um bando de manés, uns vilões,
uns covardes diante daquele herói que, se você
for fazer uma análise do grupo, parece ser o
menos preparado.
EG: Não sei, eu não acho que ela enaltece
tanto esse personagem. O que eu acho mais interessante
no filme é a mudança de tom que o filme
tem, porque parece que ela começou a fazer um
filme, e na metade ela muda totalmente. O filme começa
rápido, os cortes são rápidos,
como se fosse um programa esportivo, e a equipe de filmagem
nunca aparece. Depois, tem um corte abrupto e a equipe
começa a aparecer, começa a locução
da diretora, e o plano final é da diretora, frustrada,
olhando para o fracasso do empreendimento dela. Nesse
aspecto eu acho o filme muito bom.
GSJr: Claro, essa mudança torna o filme interessante.
Se a expedição fosse bem-sucedida, talvez
o filme fosse mais um como vários outros. Mas
ele dispõe desses dispositivos que eu considero
meio duvidosos do ponto de vista da direção.
RG: Passamos então para os documentários
musicais. Da mesma forma que o teatro carioca, para
existir num determinado momento, passou a se apoiar
na reconstituição da vida dos grandes
cantores dos anos 30, 40 – acho que o número
de exemplos é tão grande que dispensa
menção nominal –, e essa foi uma maneira
de o teatro conseguir sua inserção de
público e sua voga social, hoje de certa forma
o documentário se configura do mesmo jeito hoje.
Naturalmente eu estou falando de Vinícius,
mas também de Coisa Mais Linda, que eu
nem vi, de Maria Bethânia...
TM: Mas isso é uma coisa que vem desde antes,
com Paulinho da Viola.
DC: Na verdade é uma coisa que sempre existiu,
mas que está reaparecendo.
RG: Eu acho que no caso do Maria Bethânia
é mais esquisito, você tem o sentimento
estranho de que está na sala de cinema mas você
poderia estar vendo o extra do DVD de Brasileirinho.
No caso do Vinícius, não. Eu acho
que já é um filme mais programado para
ser algo de mais envergadura. Se é ou se não
é, a gente pode discutir, eu pessoalmente acho
que não. Acho que o filme tem um personagem muito
maior que o filme. Naturalmente, a vida que todo mundo
fala que o próprio Vinícius tinha falta
incrivelmente ao filme Vinícius. É
o Vinícius prêt-à-porter
para um público específico que quer ver
o Vinícius não numa chave da vitalidade
mas da memória da vitalidade, de um simulacro
de vitalidade. Acho que isso está inserido tanto
nas interpretações – que são totalmente
estilizantes, num sentido oposto ao vital, no sentido
de que muito mais vale a nota certa do que a vitalidade
da nota.
DC: É bom esclarecer, você está
falando das interpretações musicais, não?
RG: Sim, as musicais. Mas ao mesmo tempo a própria
narrativa do filme é uma narrativa que não
flui pela vivacidade e pela urgência, mas ao contrário,
pelo rame-rame de uma linguagem de documentário
oficial. Acho que se nós olhamos para a tela
e sentimos que não faz muito sentido esse filme
estar aqui, nessa sala de cinema, é exatamente
porque a gente está acostumado a ver na sala
de cinema um certo tipo de documentário que tem
projeto estético forte. Desde Anésia
e chegando a Soldado de Deus, são filmes
que têm um interesse historiográfico muito
grande mas não têm um foco estético
vigoroso nem um projeto, como o têm o Coutinho,
o João Moreira Salles e outros. E eu acho que
o Vinícius também participa dessa
pauta, o filme tenta fazer uma linguagem oficial, mas
ele acaba encontrando sua inserção do
ponto de vista do espetáculo cinematográfico
ao fazer essa coisa da nostalgia que o teatro já
tinha trabalhado.
DC: Na verdade eu acho que Vinícius tem
uma consistência estética, sim. Eu acho
que o Miguel Farias é um cara que entende o suficiente
para fazer uma coisa bem-amarrada. Ao contrário,
talvez o problema seja que esse projeto estético
nos pareça caduco. Porque ele é muito
certinho, porque ele é muito convencional, porque
ele é bem conhecido de todos nós. Mas
nessa chave Vinícius é muito mais
bem-sucedido do que o Coisa Mais Linda, um filme
muito mais interessante de se ver, com todos os seus
altos e baixos. O que me incomoda não é
só essa coisa da nostalgia, mas uma coisa que
vem junto com a nostalgia e do saudosismo, que é
um grau de mitificação que acaba por se
tornar uma coisa meio mórbida, uma coisa que
não tem muita vida, uma coisa putrefata. E isso
é muito evidente no Vinícius. Ao
mesmo tempo em que existe um olhar muito carinhoso quando,
por exemplo, o Chico Buarque fala do Vinícius
– tem um olhar de um amigo e de um mito para ele –,
todos os olhares são muito míticos. E
se alguns olhares são míticos mas engraçados,
como o da Tonia Carrero, outros são simplesmente
caducos, como é o caso do Ferreira Gullar, que
infelizmente está se tornando uma voz do reacionarismo
brasileiro. Alguém precisa informar a ele que
hoje é cada vez mais uma figura extremamente
reacionária. E nesse filme é bastante
reacionário o olhar que ele tem direcionado ao
Vinícius de Morais. É atravancador de
qualquer idéia de cultura. É uma travação,
um bode. E transformam as falas do Chico Buarque também
num bode – poderiam não ser num outro contexto,
mas se tornam um bode. E nisso eu faço questão
de ressaltar, que pra mim é uma coisa evidente
do problema desse filme, é o fato de que todos
os momentos mais vitais do filme, com a exceção
de um, são tirados de um outro filme que já
foi feito.
RG: Que é o filme da Susana de Moraes.
DC: Sim, o Vinícius, um Rapaz de Família,
que é um grande filme, um filme impressionante,
um filme que pretendia fugir da imagem conhecida do
Vinícius, da Bossa Nova, e é muito bonito,
mostra ele bêbado, mostra o Tom bêbado,
e tem um ar de vitalidade. E qual é o outro momento
em que o Vinícius do Miguel Farias foge
dessa visão conhecida? É justamente o
depoimento da diretora de Vinícus, um Rapaz
de Família, e também filha do Vinícius,
a Susana de Moraes. É o único depoimento
do filme em que o entrevistado não está
falando de um mito, mas de um homem: é ela falando
do pai. E ela não diz que o Vinícius era
uma maravilha. É óbvio que ela acha o
Vinícius uma maravilha, que ama ele. Não
precisa dizer isso. Mas ela fala da fragilidade dele,
ela diz: "Ele não conseguia dizer uma
verdade que doesse pra mim". E como ele não
conseguia dizer uma verdade que doesse, ele criou uma
situação horrível. Não tem
nenhum encanto, mas justamente por não ter nenhum
encanto, é muito bonito, porque cria-se um personagem
realmente humano. "O Vinícius de Morais"
não é aquela figura dos porres, que sofria
e que depois ia sofrer num canto, e que era muito melhor
do que o Beckett, essa coisa velha, esse discurso velho
do Chico Buarque e do Ferreira Gullar. É óbvio
que esse personagem que aparece não é
um ser humano, porque o ser humano é de carne
e osso e faleceu, mas parece na fala dela, para nós
que estamos vendo o filme, que ali surgiu uma figura
humana. É a sensação da arte nos
parecer trazer uma coisa absolutamente real, absolutamente
viva. E esse depoimento dela traz isso, assim como as
imagens do filme dela também trazem. É
uma pena, então, que Vinícius pareça
ser no geral uma coisa morta com algumas coisas dentro
que são muito vivas. Eu não me incomodo
de maneira nenhuma com as interpretações
das músicas e nem dos poemas. Joga para a platéia,
mas eu acho que faz parte desse projeto estético.
Mas me incomoda profundamente essa ideologia vendida
de que Ipanema foi um lugar maravilhoso, e que o Brasil
foi um lugar maravilhoso, e que esse lugar é
morto e se perdeu.
EG: E o Coisa Mais Linda é a mesma coisa.
DC: Eu sei, exatamente. É o "Rio de amor
que se perdeu", que está lá na
carta ao Tom que o Vinícius escreveu. E, bom,
o Vinícius do "Meu tempo é quando"
é muito mais vital do que o Vinícius do
"Rio de amor que se perdeu". E as jovens
vão lá, olham e ficam pensando: "Oh!
Como era bonito. Eu queria ter sido namorada do Vinícius
de Morais". Tanta gente no mundo pra se amar,
pra quê alguém vai querer namorar uma pessoa
que já morreu?...
RG: É aquela coisa, o modo de consumo está
inserido na estrutura do filme, é um filme que
fala para as pessoas bem instaladas da Zona Sul, um
maneira de vender "selvageria" para pessoas
bem confortáveis, chorando uma certa nobreza
perdida, um certo tempo passado, um pioneirismo que
a classe média da Zona Sul numa época
teve no tempo da Bossa Nova e hoje parece perdida para
ela.
DC: Essa forma é enclausurada, o filme enclausura
isso. Ele diz: "Esse tempo já passou.
Olha, como era bonito esse tempo que já passou".
Já passou pra ele!
TM: Eu acho que as interpretações tanto
dos poemas quanto das músicas só reforçam
isso. Eu acho que elas fazem parte desse processo.
RG: E eu concordo. Acho que Olívia Byington,
Camila Morgado, Monica Salmaso, todos estão inteiramente
inseridos nessa lógica. Tanto que quando o Zeca
Pagodinho aparece você toma um susto, ele é
um OVNI naquilo. As pessoas riram na sessão em
que eu estava. Claro! O Zeca Pagodinho é um sujeito
que tem um discurso articulado com uma coisa que está
acontecendo hoje. Ao passo que o resto está ruminando
um discurso necrófilo, já desgastado.
Todas essas figuras são cantoras da "nova
MPB", mas é uma nova MPB de gueto que só
funciona num determinado registro de "bom gosto",
é algo que não tem o elemento do escracho
lírico, do escracho de vida boêmia que
o Vinícius tinha.
LARM: Guardadas as devidas proporções,
é essa a sensação que a gente tem
com Glauber o Filme, do Silvio Tendler.
D: Mas não dá para comparar, o Vinícius
é um filme aceitável.
LARM: Mas eu acho que a idéia de trabalhar em
torno dessa coisa necrófila, e de transformar
o Glauber meio que num super-herói, só
raramente é quebrado no filme. Tem um ou outro
depoimento, como a fala do João Ubaldo. De resto,
é uma mitificação constante
RG: Mas vamos então para um filme que de certa
forma pega a coisa do musical e, como o Gilberto menciona
a partir do Extremo Sul, também tem uma
coisa muito questionável em relação
aos seus retratados, que é o A Pessoa É
para o Que Nasce...
LARM: Esse eu só vi o curta.
RG: O curta é extremamente diferente, é
uma chave mítico-poética, algo sobre os
mistérios da vida, a questão do destino.
Mas quando ele se transforma em longa, ele é
uma coisa inteiramente diferente...
GSJr: Eu, ao contrário, só vi o longa,
e vi faz tempo, mas guardo acima de tudo uma certa idéia
de cafetinagem, meio consciente, meio envergonhada,
meio morde e assopra.
RG: É, eu acho que a chave do filme é
o paternalismo. Ele realmente partilha de um desejo
muito grande de tornar essas figuras, fazer com que
o filme seja o veículo para dar o devido valor
a essas figuras sensacionais, e eu creio que em cada
fotograma ele mostra o paternalismo e a manipulação
da imagem delas. Porque o filme inteiro só vende
elas como pobres coitadinhas, inclusive fazendo um registro
muito complicado porque, afinal de contas, o cinema
é um registro de visibilidade, e é preciso
considerar que existe um comportamento ético
em relação a esse caráter do cinema,
e no caso de se filmar pessoas cegas e completamente
desprotegidas econômica e psicologicamente, e
que o filme, para dizer o mínimo, não
resolve essa questão ética.
DC: O filme cria um mocinho. O que é uma coisa
estranhíssima: criar um filme para dizer que
ele, o diretor, Roberto Berliner, é um mocinho,
e que ele é um amor, e que ele está ajudando
as pessoas, e que elas são todas tão ingênuas
e indefesas e ele está ajudando muito. É
uma tese bem problemática.
RG: O que é engraçado, porque é
um filme que as pessoas de "bom coração",
que não têm essa segunda leitura, que vêem
o filme ingenuamente, elas saem do filme encantadas
porque o sujeito é bonzinho, e ao mesmo tempo
nunca vi respostas tão revoltadas de alunos em
relação a essa aposta de propor o paternalismo
miserabilista do diretor.
GSJr: E todos os conflitos que ele explora, em cima
dos quais ele constrói o filme dele, são
as coisas mais miserabilistas: a história da
mulher que teve um marido que foi assassinado, a história
de uma que descobre que o pai é o padrasto e
que abusava das moças cegas quando meninas, é
o conflito com a filha que vai ficando adolescente e
não aceita aquilo... Ele vai cavucar mesmo todo
o sofrimento possível.
RG: E assim esse filme acaba construindo uma visão
pornográfica em relação ao mundo
retratado. Pornográfica porque você está
vendo aqueles que não podem ver e porque você
está criando uma ficção, um olhar
inteiramente distanciado. É a pornografia da
ONG, do "falar por aqueles que não têm
voz". Parece muito com o filme americano das crianças
nascidas nos bordéis do Irã [Nascidos
nos Bordéis/Born into Brothels]. Também
é um filme que cria todos aqueles olhares benevolentes,
todo mundo adora, as pessoas saem chorando, e que participa
também dessa linhagem de uma relação
pornográfica, exploratória com a pobreza.
Parte 1: Os
espaços ocupados e a visibilidade dos filmes
Parte 2: Representações
e reflexos da realidade: ausência de um elogio
do agora.
Parte 3: Olhares históricos.
Parte 5: Casa
de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices
e o cinema de Domingos Oliveira.
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