CINEMA FALADO, PARTE 4
Os novos talentos da ficção e o documentário

DC: Falando dos três filmes dos cineastas jovens, por mais que eu goste muito menos do Cidade Baixa do que dos outros dois, e por mais que Casa de Areia tenha problemas bastante graves em alguns momentos, acho que claramente são filmes em que eles acreditam ser o melhor cinema possível. Os três filmes me passam isso.

RG: Eu acho que essa urgência que você pediu esses três filmes têm. Nos dois filmes que se passam no nordeste existe uma matriz que está ligeiramente clara ou muito clara, que é o Madame Satã. De certa forma o Karim Ainouz mostrou para esses filmes que, independente de onde se ambienta e em que época se ambienta, você pode criar personagens e criar intrigas e jorrar uma urgência de comportamento, uma certa liberdade de movimento do ator, uma liberdade de composição, de história, que possa ressoar com vigor... E com uma certa opacidade do personagem: são filmes que funcionam porque os próprios personagens mantêm um mistério desde sempre, eles não são signo para uma outra coisa, mas, ao contrário, primeiro de tudo eles têm a vida deles, a carne deles. Isso aparece muito no Cinema, Aspirina e Urubus e no Cidade Baixa.

DC: Acho que o Cidade Baixa mais quer isso do que consegue.

RG: Em alguns momentos ele tem uma certa obviedade do prolongamento da história que Cinema, Aspirina e Urubus não tem. O filme do Marcelo Gomes nesse sentido é o mais bem sucedido para mim, porque ele deslocaliza completamente os clichês, tudo aquilo que se espera de um filme de nordeste na fotografia, tudo que se espera de um comportamento de um autóctone e de um estrangeiro; a questão da malandragem não pertence ao autóctone somente, a questão da informação também não pertence somente ao estrangeiro, e sobretudo eu acho muito bonita a maneira como o agreste – aquele solo que está pedindo pro nordestino sair de lá, porque é o território da falta de oportunidade – se mostra a única oportunidade para o estrangeiro. Da mesma forma como o nordestino vê sua única possibilidade de destino como uma seta para baixo, para o urbano, para o sudeste, o europeu vê uma seta para o norte como um terreno ainda a explorar, um terreno não completamente dominado, em que ele possa se refugiar – como um alemão, ele precisa ir pra um lugar que é um deserto. O filme cria uma fricção, faz com que a gente veja aquele nordeste que não é exatamente o nordeste dos nordesterns, não é um nordeste bonito, da fotografia vistosa, e ele tampouco é o nordeste estourado da lente do cinema novo. Ele constrói – na estrutura narrativa, na maneira como concebe os personagens, o trabalho de atores, e na maneira, inclusive, como ele concebe a luz – uma diferença.

LCOJr: O Cidade Baixa, por mais que respire sim uma liberdade de encenação, de trabalho dos atores – e aí sim ele segue um certo legado do Madame Satã na medida em que introduz o corpo do ator no cinema, de fato; essa é a linhagem básica: a respiração do ator e, por conseguinte, uma respiração da mise en scène –, ainda há ali o resquício de uma certa armadura da história, de uma certa armadura narrativa, por mais que ele tenha conseguido se libertar na maior parte das vezes. Já o Cinema, Aspirina e Urubus dá um passo à frente justamente porque a própria história do filme, salvo uma ou outra cena que deixa o marco histórico explícito, pode ser perfeitamente vista sem que nós atinemos para o fato de que a ação se passa cinqüenta, sessenta anos atrás. Muita gente depois, conversando sobre o filme, precisava ser beliscada para lembrar de que era um filme histórico, ambientado no passado. Tem a música da época, que surge como diegética, mas se você se distancia dos grandes centros urbanos você meio que se distancia no tempo também, e aquela música pode muito bem não soar tão anacrônica num lugar como aquele. E no Cinema, Aspirina e Urubus há um trabalho com o espaço que, concordo com o Ruy, é totalmente diferente desse sertão mitológico que foi retomado por filmes como Abril Despedaçado, As Três Marias, totalmente diferente daquele tipo de estilização do sertão como esse espaço abstrato, um imaginário muito mais que um espaço propriamente dito, e totalmente diferente daquele sertão que a gente tem como matriz lá na tríade rural clássica do cinema novo. Não é mais aquele sertão que oprime o homem: o Cinema, Aspirina e Urubus é um filme quase todo feito em primeiro plano – ou seja, o indivíduo é anteposto ao espaço, não há aquela tomada geral do indivíduo lá no meio, com todo um solo árido ao seu redor – e é um filme em que os personagens decidem para que lado do espaço eles querem ir agora, os personagens tomam a dianteira da ação, e não ficam o tempo inteiro sendo determinados, subjugados pelo ambiente. E nesse sentido o filme opera uma inversão completa em relação a como aquele espaço vinha sendo filmado, inclusive por Baile Perfumado, cujo sertão é um espaço simbólico, um imaginário do sertão.

LARM: É um imaginário do sertão, mas que, sem querer cair na coisa do documento, também procura quebrar um pouco esse sertão árido.

RG: Ele cria uma outra mitologia, mas acho que ele ainda é um espaço mitológico, não o mesmo.

LARM: Mas ele pega a imagem de arquivo do Benjamin Abraão e tenta mostrar que não é só árido, tenta quebrar um pouco. Assim como eu acho que o Cinema, Aspirina e Urubus estiliza também, estiliza de uma outra maneira.

DC: O próprio início do filme assume a estilização: começa com a tela estourada e vai fechando o diafragma até mostrar alguma coisa.

RG: A gente não está dizendo que ele está dando a verdade do nordeste, mas ao contrário: a fisicalidade do espaço é ligeiramente mais importante do que nesses outros filmes.

LCOJr: A temperatura do ambiente pesa mais do que uma forma de representar aquele espaço.

DC: Na verdade eu acho que o mais próximo da fotografia do filme é mesmo o Vidas Secas. A grande diferença é que um é a cores, o que faz muita diferença, evidentemente.

LARM: Mas Cinema, Aspirina e Urubus é quase preto-e-branco.

LCOJr: É quase sépia. Têm momentos do filme que são monocrômicos, totalmente. Um tom de bege impregnando e variando.

RG: Mas a questão do Vidas Secas envolvia uma agressão pela luz, e o Cinema, Aspirina e Urubus não tem essa agressão.

LARM: Traz um mínimo dessa agressão: aquele primeiro plano.

LCOJr: O que eu dizia é que se trata de um espaço que o cinema brasileiro já tinha visitado muitas vezes, mas não daquela forma. É uma forma nova de trabalhar aquele espaço.

LARM: Mas acho que essa forma nova já vem sendo buscada, e acho legal você ter lembrado do Baile Perfumado. Já se vem tentando quebrar essa coisa do nordeste como a gente conhece no cinema novo já tem um tempo.

LCOJr: Mas o Baile Perfumado é um mito de substituição.

RG: Baile Perfumado mostra como é possível uma apropriação pop daquele ambiente: eles gostam de dançar, de se perfumar, de beber... Você pode pintar uma estação de trem de laranja, de um laranja berrante, que dá uma aparência que o cara que gosta de MTV vai ver e se sentir familiarizado.

LCOJr: Não tem sertão pop no Cinema, Aspirina e Urubus.

LARM: Sertão pop não tem, mas acho que o nível de estilização é o mesmo. Todo filme vai cair nisso, não estou dizendo que tem filme que tem a verdade dentro da imagem, mas eu vejo na proposta do Cinema, Aspirina e Urubus um tipo de estilização muito fácil de criar um formato. Um formato que eu não sei se substitui ou não, mas é um formato.

LCOJr: Mas o ponto de clivagem é o seguinte: o cinema brasileiro já tinha tentado captar a fisicalidade do sertão pelo sentido de opressão, do espaço que oprime e exclui o indivíduo daquele ambiente, ou então faz ele sucumbir junto com aquele espaço. Ou isso ou então a abstração e a mitificação. O Cinema, Aspirina e Urubus óbvio que ultra-estiliza esse espaço, mas num sentido de uma concreção. Eu imagino que se o Marcelo Gomes for fazer um próximo filme numa cidade grande, ele vai ter uma mesma preocupação em simplesmente ver aquilo como um potencial sensorial, aproveitar o que o espaço tiver a lhe oferecer, e trabalhar da forma que lhe convier; acho que ele não vai tentar buscar um imaginário de cidade grande.

RG: O nordeste em Cinema, Aspirina e Urubus não quer dizer alguma coisa, ele não está tentando fazer o espectador comprar aquele espaço com alguma chave simbólica que está apregoada: "ah, a desigualdade social... ah, a dificuldade da subsistência...". Nada disso.

LCOJr: É espaço de verdade, ele hospeda o filme.



RG: É o espaço de uma ficção como o espaço urbano seria também o espaço de uma ficção. De fato o nordeste, até em Central do Brasil, tem um espaço mitológico que existe lá, e o nordeste é o centro do Brasil, ele sai da Central do Brasil para ir para o centro do Brasil. E em Cinema, Aspirina e Urubus eu vejo de fato uma reconfiguração. Se de certa forma o Dois Filhos de Francisco vai fazer a redistribuição do capital cultural entre os valores da classe baixa – a música sertaneja – e vai fazer ele ascender, o Cinema, Aspirina e Urubus tenta jogar mais para a realidade um espaço que antes era concebido só como mito. Acho que são dois ganhos... Fome zero de ficção (risos).

LARM: Acho que a figura do estrangeiro conta muito no Cinema, Aspirina e Urubus.

RG: Ele tem uma função muito parecida com a função do estrangeiro em Tudo É Brasil do Sganzerla.

DC: Mas o olhar do Orson Welles desenvolvido nos filmes do Rogério é o olhar do gênio que encontra aquilo que as pessoas não estão vendo. E no Cinema, Aspirina e Urubus o estrangeiro não está enxergando nada além, ele tem um olhar de superfície. A questão principal dele, assim como de quinhentos personagens estrangeiros que infestaram o cinema brasileiro, é que ele está em fuga, ele precisa do Brasil para escapar, ele não pode ser achado.

RG: Existem mil diferenças porque os filmes são completamente diferentes, mas acho que tem essa maneira do estrangeiro reconfigurar o olhar. Ele não dá a verdade do lugar, mas ele o reconfigura.

LARM: Essa quebra está totalmente ligada à figura do estrangeiro.

GSJr: E no caso do estrangeiro do Cinema, Aspirina e Urubus ele não vem com uma verdade preconcebida.

LARM: Ele poderia vir com uma idéia preconcebida que em última instância seria a do diretor. Ele serve como um trampolim mesmo, para saltar dessa imagem mitológica e dessa outra que está até meio caduca.

DC: Já que estamos falando de sertão mitológico, acho que podíamos falar de um dos grandes filmes do ano, que é O Fim e o Princípio, do Coutinho... Tudo é um grande mcguffin, o Werneck falou isso na crítica que escreveu e é verdade: o Coutinho usa vários mcguffins no filme pra falar na verdade sobre morte. E eu diria mais do que sobre morte: esse é o filme mais pessoal do Coutinho, no sentido de que o grande personagem do filme é o Coutinho. Tem o Cabra Marcado para Morrer, é claro, no qual ele é um personagem mais que fundamental. Mas nesse filme é tanto quanto no Cabra, no mínimo. Porque na verdade ele está tentando descobrir porque ele faz cinema, o que ele quer. E daí não tem como fugir da trajetória, eu peço desculpas por todos esses psicologismos inevitáveis, por essa coisa de fazer referência ao criador, do fato do Coutinho ter uma herança marxista-comunista e ter uma herança de quem não acredita em questões metafísicas, em vida após a morte, e de repente ele faz um filme para descobrir por que faz filmes e por que se fazem essas coisas todas. Então ele recebe a incumbência de fazer um filme sem saber o que quer e não se define, simplesmente resolve ir fazer logo o filme e as perguntas que faz para as pessoas são sempre recorrentes: "O que é a morte? Como é sua vida? Por que você está me falando isso?". E os moradores estão sempre percebendo isso, eles põem isso em questão com ele, eles perguntam o porquê daquelas perguntas. Tem um cara que pergunta: "Você acredita em Deus?", e o Coutinho responde: "Não, eu não acredito".

EG: Na verdade ele tenta não falar.

RG: Ele faz a estratégia do analista: devolve a pergunta.

DC: Acho isso absolutamente fortíssimo no filme, que se chama O Fim e o Princípio. Parece que ele está falando do fim da vida e do princípio da existência, da criação, da finalidade dessaa coisa toda. E o filme passa isso, não é um tema escondido; o filme o tempo todo apresenta isso.

RG: Eu tenho alguns problemas com isso... É o filme do Coutinho que eu menos aprecio desde muito tempo. Vi apenas uma vez, então naturalmente estou restrito a apenas um olhar. Mas de certa forma ele conjuga um pouco do que mais me incomoda num outro filme dele, que eu acho o mais fraco desde Santo Forte, que é o Babilônia 2000, que é o fato dele impor uma questão que não se faz presente pela trajetória da aventura: a idéia de por que no morro da Babilônia ele está perguntado sobre ano novo, da mesma forma como me parece que a idéia da morte num momento aparece como uma constatação, pelo fato de que naturalmente tem toda uma vida e tem toda uma iconografia de uma vida rural que está se perdendo, porque todo mundo que é novo viaja, vai para a cidade, onde tem mais oportunidade, ou onde tem todas as atenções. Ser jovem implica você participar de um mundo urbano, e não agrário, arcaico. Agora, em algum momento, para tratar disso, será necessário ele fugir um pouco mais do tipo de estética que ele consolida, a estética da entrevista, do encontro, do jamais saber previamente o que se vai falar, do filme de conversa, e o filme parte de algo muito aberto. É um grande filme de suspense, ao menos até o momento em que não se sabe sobre o que vai ser, e meu ritmo de interesse invariavelmente decai muito quando eu vejo que o filme volta para as mesmas recorrências de conversa, que em algum momento acaba se transformando num subterfúgio para ter filme. Nesse filme as vozes das pessoas da equipe me incomodam mais do que nos anteriores. O Coutinho sempre tinha uma coisa muito forte de enquadramento e de montagem, de ritmar uma entrevista com outra, e são entrevistas que nunca são reiterativas, mas, ao contrário, funcionam pela dissonância interna, e nesse filme não: vejo as entrevistas mais como uma coisa de ratificação, mesmo porque esses personagens não têm tanto discurso a dar, e acho que esse é um ponto de fissura forte do filme, porque urbanos gostam de ficcionar muito sobre si mesmos – os urbanos têm uma economia da palavra diferente dos camponeses; palestrar para camponeses é falar bobagem, porque eles não gostam disso, acham que é coisa de gente de fora – e acho que nisso o filme cria uma iconografia sensacional. Mas ao mesmo tempo não existe uma coesão interna dos elementos como eu vejo e como acho que faz a força dos filmes que acho muito superiores, como Peões, Edifício Máster, Santo Forte. Tudo lá está muito mais coeso, é muito mais essencial, e tudo se liga.

DC: Antes me parece que eram filmes de depoimento. E esse agora me parece um filme de conversa. A figura do Coutinho, mesmo tentando não falar, está sempre muito presente, ele está sempre sendo posto em questão, e o porquê dele estar fazendo aquilo está sempre sendo posto em questão, isso eu acho muito forte. Os outros filmes não são filmes de diálogo: ele vai colher idéias e faz perguntas. Em O Fim e o Princípio as perguntas o denunciam muito mais.

TM: No início parece que ele está questionando o próprio método dele. Há aquela moça, é ela que está fazendo aquela mediação, e aquilo tudo fica transparente ali. Essa coisa da conversa mesmo, de um bate-papo. E nem transparece tanto o que seria essa discussão "para que estou aqui? Por que faço cinema? Qual o sentido da vida?". E sendo isso na verdade o motivo dessa estrutura toda, eu acho que as coisas não estão casadas. Essa motivação de estar lá conversando com as pessoas, por mais que as cenas valham por si, não está exatamente casada com a atitude mesma do filme. Ele se perde, se enfraquece na própria questão de ir pro nordeste, buscar aquele vilarejo para esse questionamento.

LCOJr: Não vi O Fim e o Princípio, mas todos os filmes do Coutinho são sobre o dispositivo-Coutinho...

RG: Esse dispositivo em alguma medida falha pelo registro do palestrar ser diferente, o ficcionar sobre si ser diferente na vida de um camponês e na vida de alguém urbano, que está já inteiramente imbuído desse discurso de ficção, da televisão, dos múltiplos discursos de ficção. Fazer parte do núcleo urbano é ter uma ficção sobre si mesmo – as pessoas se sentem realizadas ao receber a atenção de alguém que quer que elas falem para ser registrado, mediatizado –, e o dispositivo funciona meio capenga em O Fim e o Princípio, é como se o filme não pedisse tanto o dispositivo.

TM: É como se entrasse em curto-circuito, o dispositivo e o material do filme.

GSJr: Mas isso vem um pouco da própria indefinição, dele chegar lá sem definir o objeto, o tema. E esse contraste entre o que o Coutinho conseguiu fazer nos outros filmes, de fabulação da figura urbana, e essa dificuldade de fabulação – até do entender o que é cinema e o que esse cara está fazendo ali – em O Fim e o Princípio traz para mim muito interesse ao filme.

DC: Essa crise do dispositivo me traz interesse, porque ele percebe, expõe a questão. Em todos os filmes, as regras são muito claras sempre e dependem muito da nossa aceitação das regras e das relações que a gente vai ter com os depoimentos. Mas nesse agora essa problematização é muito saudável, é um tema do filme.

TM: Mas a questão que o Ruy estava falando é um pouco a de ver o que pede aquilo que você está encontrando. Então se o seu dispositivo não se aplica, ele teria como buscar uma outra forma. O que ele encontra é muito legal, as conversas, o diálogo, o fato de ser de repente uma prova é bastante interessante, mas no final se perde.

DC: Mas aí você está encarando como tema o retrato da comunidade. Qual o tema do filme para você? Para mim não é esse, não é a comunidade. Se fosse para ser um retrato daquelas pessoas, esse dispositivo é falho. A partir do momento em que não é...

TM: As conversas são muito boas, mas elas poderiam render mais em termos de exploração daquele universo mesmo, independente de ser ou não retrato...

LARM: Então por que ele foi pra lá?

DC: Mas é exatamente isso. Existe uma idéia de imaginário do verdadeiro sertão que ele vai lá para tentar descobrir, como o cara que vai para o oráculo: "eu quero entender minha vida no oráculo". E aí vocês estão achando que ele tinha de falar do oráculo, e não: ele está falando dele! Se o Coutinho ler isso eu tenho certeza de que vai odiar, porque é sabido que ele não gosta que as pessoas se preocupem com o que ele fala dele mesmo, mas isso é evidente no filme. Ele não vai fazer o filme porque quer falar daquelas pessoas, ele está indo lá porque existe um imaginário, ele vai pro meio do sertão da Paraíba. Ele descobre quem são eles no caminho, apenas. Deram dinheiro pra ele fazer um filme, um documentário, e ele não tinha tema, por isso resolveu arriscar. Ele começa o filme falando isso: "Recebemos dinheiro da Petrobrás e resolvemos fazer um filme. Escolhemos aleatoriamente, saímos do espaço urbano".

RG: Como a Petrobrás dá uma grana para um cara que não sabe o que vai fazer?

DC: Mas é o Coutinho! A Petrobrás vive fazendo isso. Eu posso discordar plenamente do esquema que faz isso acontecer, mas no caso desse filme foi altamente bem sucedido e fez muito bem pro cinema do Coutinho. Não é mais aquela coisa de: "eu quero encontrar as pessoas de verdade da classe média, porque não quero falar da classe média, mas das pessoas". De repente ele mostrou que não está falando de religiosidade, não está falando da classe média, não está procurando um universo.

LARM: Até por perceber que o dispositivo-Coutinho já está se tornando um senso comum, ele chega e mexe nessa questão.

RG: Exatamente. A idéia de base de O Fim e o Princípio era o próprio Coutinho fugir daquilo que vinha sendo seu cinema. Fugindo pela própria vontade dele, porque os filmes em si não vinham perdendo nada por desgaste. Mas a idéia não é só o projeto, é também o resultado. Esse ano ainda tem um filme de uma assistente recorrente do Coutinho, que é o Morro da Conceição, que curiosamente também vai pegar a população idosa de uma localidade, uma localidade que tem particularmente seu interesse por ser um lugar muito pouco conhecido do centro do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo central e isolado. Se o recorte do Coutinho de alguma forma exige um catalisador, é naturalizado pelo fato de que praticamente só tem população idosa, o Morro da Conceição é um recorte da vontade da diretora, um recorte arbitrário, porque ela claramente sabia o que queria fazer, mas é um recorte que não tenta exprimir o que o nome do filme dá. No que o filme se constitui? Ao mesmo tempo, nas entrevistas que a Cristiana Grumbach faz, mais ou menos na linha Coutinho, e com alguns planos longos de paisagens sobretudo urbanas, fazendo com que as fachadas das casas, com que as ruas, com que as pessoas andando, chegando a suas casas ou chegando de casa, com que aquela vista – porque é importante a vista também –, com que aquelas coisas falem. Se de certa forma esses planos funcionam muito bem, são muito bonitos isoladamente, têm uma evocação poética mas ao mesmo tempo mostram a idade daquelas casas, acho que tanto o recorte dos entrevistados é ligeiramente esquisito pra mim – o fato de filmar vovozinhas que nasceram ou que vieram muito novinhas para lá, e não filmar toda uma população que começou a habitar o Morro da Conceição depois, tanto nordestinos quanto negros, etc... Não creio que ela tenha feito intencionalmente uma clivagem racial do filme, mas isso aparece, e é algo estranho. Mas eu não sei que tipo de registro, que tipo de iconografia ela quer, se é mais pela base da simpatia.

DC: Os mais fofos?...

RG: Pois é, mas os mais fofos, o que isso quer dizer a respeito do Morro da Conceição? O Coutinho não vai pegar o nome da localidade e dar o nome do filme. Ela vai. Pra ela o Morro da Conceição é aquilo, então? E naturalmente, quando ela faz essa atribuição, aquilo quer dizer um monte de coisas. Como o Fernando Meirelles quando ele não chama o seu filme de Tráfico, chama de Cidade de Deus. De forma que essa escolha dela parece esquisita para mim, e ao mesmo tempo as conversas não têm o poder de evocação tão grande quanto as conversas do Coutinho.

GSJr: É até agradável você ouvir as histórias daqueles personagens, mas enquanto cinema parece um sub-Coutinho. Por mais que ela tenha trabalhado com o Coutinho, eu acho que ela não consegue transmitir a mesma força.

TM: Eu acho que ela não consegue fugir dessa pecha.

RG: A pessoa que cunhou o termo, o Felipe Bragança, não está aqui, mas é algo já mencionado na Contracampo como praga-Coutinho, que é essa tentativa de transplantar as idéias do Coutinho e achar que isso vale para qualquer registro, seja etnográfico, seja um registro dos encontros, ou simplesmente da gostosura que é estar criando um diálogo para o cinema.

LCOJr: É, tem um momento em que as pessoas que estudam o Coutinho, exaltam o Coutinho, começaram a propagá-lo como uma bula para o novo documentarismo brasileiro.

TM: No caso do Morro da Conceição, "Morro da Conceição" é como se fosse um espaço-tempo que ela está tentando localizar, um espaço-tempo perdido. Então acho que é por isso a escolha de só falar com as velhinhas, porque ela tenta buscar não o Morro da Conceição que existe hoje, não fazer um mapa daquele morro, mas sim se aproveitar do fato de ser um lugar que pouca gente conhece, um lugar escondido, para buscar o Morro da Conceição num outro tempo, como se fosse um universo perdido no Rio de Janeiro que é Rio de Janeiro e ao mesmo tempo não é.

RG: Mas isso não é ligeiramente neurótico para você?

TM: Eu acho complicado...

LARM: Pode ser saudosista?

GSJr: Mas isso é complicado, porque ela cria um espaço no passado que tem uma vitalidade no presente, só que o filme não trabalha um contraste visível entre passado e presente, e você pouco sabe sobre o Morro da Conceição propriamente dito.

TM: O que eu acho complicado é que o filme não chega a dar a dimensão de memória que isso tem. Porque na verdade ela está tentando trabalhar com a memória, mas o filme não dá àquilo tudo, àquele retrato uma dimensão de memória. É aí que fica problemático, porque parece realmente que no Morro da Conceição hoje só habita velhinha, enquanto na verdade ela quer se remeter à memória daquele espaço. Mas não tem essa conceitualização em volta.

RG: Eu acho que você não pode pedir do filme algo que ele não quer ser. E nesse sentido ele não quer ser uma radiografia sobre o Morro da Conceição hoje. Mas você pode fazer perguntas sobre as conseqüências da proposta que ela quis.

TM: Acho que a grande conseqüência é essa. Ela não consegue dar a dimensão de memória. As velhinhas pegam as fotografias e começam a contar a história dos filhos, "era assim, era assado", mas o filme não se coloca nessa posição de tratamento de memória.

GSJr: Na maior parte do tempo as entrevistas funcionariam da mesma forma se as velhinhas morassem em Copacabana, em Madureira ou qualquer outro lugar.

TM: Justamente. Elas estariam provavelmente falando do mesmo lugar de forma saudosista. Existe uma dose de saudosismo muito grande. E a diretora não deixa transparecer como ela se coloca em relação a esse saudosismo. Ela realmente é só a entrevistadora.

RG: Essa é a verdadeira ausência estruturante do filme.

GSJr: Antes de passar para outros filmes, gostaria de fazer um breve comentário sobre o Morro da Conceição. Já que no começo a gente falou de estratégias de divulgação e lançamento dos filmes de pouco público. Eu queria chamar atenção de um dado curioso – que até me levou a assistir ao filme no dia em que eu assisti, já que eu não tinha me programado para ver naquele dia – é que o filme foi lançado numa sala no Unibanco Arteplex, e quando você chegava na bilheteria, qualquer que fosse o filme que você ia assistir, tinha lá uma divulgadora fazendo corpo a corpo: "Você já assistiu a Morro da Conceição? Sabe do que trata o filme?", entregando jornalzinho do filme, material de publicidade. Talvez se isso fosse assumido também por outros filmes de pequeno porte, sendo o caso de filmes lançados num cinema de várias salas... Eu lembro que o filme estava passando mais ou menos na mesma época de O Signo do Caos.

EG: No filme do Bianchi também tinha gente distribuindo flyer do filme.

RG: O próprio O Signo do Caos teve um jornalzinho que era distribuído, inclusive na retrospectiva do Sganzerla que acontecia no CCBB na semana anterior do lançamento.

GSJr: Mas não teve essa marcação de chegar conversando contigo, de forma simpática, apresentando o filme.

RG: Realmente, nesse sentido fez diferença, a estratégia é sensacional.

DC: Imagina como deve ter sido o pessoal da divulgação do filme do Bianchi, devia chegar já dando um pescotapa e falando: "Ô rapá, já viu esse filme?" (risos)

RG: Aproveitando que estamos na seara documental, eu queria falar sobre uma linha geral de documentários que já existe há um bom tempo, talvez exista desde Anésia – Um Vôo no Tempo, que são filmes cujo motivo de ser exibido em salas de cinema você não vê.

GSJr: Abundam documentários que não precisavam de cinema...

TM: Que é a minha grande questão com Soldado de Deus...

RG: São projetos que podem até ser muito legais, inclusive. Independente do mérito do filme, se são bons, se são informativos. Acho que na maioria são filmes informativos, mas que só encontram inserção num circuito de cinema pelo fato de o documentário estar com uma certa voga e pelo fato de ter sua fonte de captação através de editais para longa-metragem a ser exibido em cinema. Mas basicamente eles poderiam funcionar tão bem, ou melhor, e serem mais vistos em redes de televisão, aberta ou a cabo.

DC: Se passasse na TV, né? Mas o cinema brasileiro não consegue entrar na TV, mas essa já é uma questão que a gente conhece muito bem.

GSJr: E nessa linha, o que a gente tem além de Soldado de Deus.

DC: Doutores da Alegria com certeza...

RG: E acho que Sou Feia mas Tô na Moda também. Houve um momento em que cabia à reportagem investigativa de televisão fazer o que Sou Feia mas Tô na Moda fez. Se você pegar um programa como o Documento Especial, por exemplo, ele fazia coisas assim. Não poderia ter um documentário na linha de Sou Feia mas Tô na Moda sobre a Vila Mimosa? Isso foi feito pelo Documento Especial há sei lá quantos anos. Da mesma forma que antes fazia sentido jornalismo investigativo existir nas páginas dos jornais diários e que a partir de um momento não fez mais sentido – e hoje se você quer fazer jornalismo investigativo o resultado vai ser um livro –, o cinema ocupa hoje o espaço que pertencia à televisão nas grandes reportagens investigativas. E isso acaba dando filmes que são bem legais de ver – porque têm uma urgência temática, como Sou Feia mas Tô na Moda. Podia ser um filme muito melhor? Podia. Mas, ao mesmo tempo, só pela pouca atenção que é dada midiaticamente, já dá toda a graça de assistir a um filme como esse no circuito. Mas, de alguma forma, isso participa de uma mudança, de uma partilha diferenciada hoje daquilo que existia antes. E é terrível ver que a televisão cada vez faz menos coisas interessantes.

GSJr: A gente acaba considerando esses documentários como uma leva repetitiva e reiterativa entre si, apesar de eu gostar do filme, Sou Feia mas Tô na Moda, e de achar que ele pega a força do momento, mas o filme é televisão pura. Dessa forma a gente acaba caindo num filme que me chamou a atenção porque poderia ter sido a mesma coisa, simplesmente um tratamento de jornalismo de aventuras, um filme-jornal sobre alpinismo, e que por um acidente de destino na concepção acabou sendo um filme que, apesar de eu não achar que foi bem sucedido, mas que eu achei muito interessante de assistir, que foi o Extremo Sul.

EG: Eu acho o contrário. Eu acho que o fato de o grupo da expedição não ser bem-sucedido em chegar na montanha melhorou muito o filme. Enriqueceu o filme o fato de a equipe não ter conseguido subir a montanha.

GSJr: Sem dúvida. Isso torna o filme mais interessante. Mas, por outro lado, você valoriza uma manipulação da diretora, porque ela tinha o filme dela em torno de um determinado personagem – e ela começa a enaltecer o sujeito que ela faz ser protagonista do filme – em contrapartida aos demais alpinistas que não querem continuar no percurso. Então o filme acaba se tornando até curioso. Mas eu acho fraco e até certo ponto canalha, quando ela decide tornar o outro grupo um bando de manés, uns vilões, uns covardes diante daquele herói que, se você for fazer uma análise do grupo, parece ser o menos preparado.

EG: Não sei, eu não acho que ela enaltece tanto esse personagem. O que eu acho mais interessante no filme é a mudança de tom que o filme tem, porque parece que ela começou a fazer um filme, e na metade ela muda totalmente. O filme começa rápido, os cortes são rápidos, como se fosse um programa esportivo, e a equipe de filmagem nunca aparece. Depois, tem um corte abrupto e a equipe começa a aparecer, começa a locução da diretora, e o plano final é da diretora, frustrada, olhando para o fracasso do empreendimento dela. Nesse aspecto eu acho o filme muito bom.

GSJr: Claro, essa mudança torna o filme interessante. Se a expedição fosse bem-sucedida, talvez o filme fosse mais um como vários outros. Mas ele dispõe desses dispositivos que eu considero meio duvidosos do ponto de vista da direção.

RG: Passamos então para os documentários musicais. Da mesma forma que o teatro carioca, para existir num determinado momento, passou a se apoiar na reconstituição da vida dos grandes cantores dos anos 30, 40 – acho que o número de exemplos é tão grande que dispensa menção nominal –, e essa foi uma maneira de o teatro conseguir sua inserção de público e sua voga social, hoje de certa forma o documentário se configura do mesmo jeito hoje. Naturalmente eu estou falando de Vinícius, mas também de Coisa Mais Linda, que eu nem vi, de Maria Bethânia...

TM: Mas isso é uma coisa que vem desde antes, com Paulinho da Viola.

DC: Na verdade é uma coisa que sempre existiu, mas que está reaparecendo.

RG: Eu acho que no caso do Maria Bethânia é mais esquisito, você tem o sentimento estranho de que está na sala de cinema mas você poderia estar vendo o extra do DVD de Brasileirinho. No caso do Vinícius, não. Eu acho que já é um filme mais programado para ser algo de mais envergadura. Se é ou se não é, a gente pode discutir, eu pessoalmente acho que não. Acho que o filme tem um personagem muito maior que o filme. Naturalmente, a vida que todo mundo fala que o próprio Vinícius tinha falta incrivelmente ao filme Vinícius. É o Vinícius prêt-à-porter para um público específico que quer ver o Vinícius não numa chave da vitalidade mas da memória da vitalidade, de um simulacro de vitalidade. Acho que isso está inserido tanto nas interpretações – que são totalmente estilizantes, num sentido oposto ao vital, no sentido de que muito mais vale a nota certa do que a vitalidade da nota.

DC: É bom esclarecer, você está falando das interpretações musicais, não?

RG: Sim, as musicais. Mas ao mesmo tempo a própria narrativa do filme é uma narrativa que não flui pela vivacidade e pela urgência, mas ao contrário, pelo rame-rame de uma linguagem de documentário oficial. Acho que se nós olhamos para a tela e sentimos que não faz muito sentido esse filme estar aqui, nessa sala de cinema, é exatamente porque a gente está acostumado a ver na sala de cinema um certo tipo de documentário que tem projeto estético forte. Desde Anésia e chegando a Soldado de Deus, são filmes que têm um interesse historiográfico muito grande mas não têm um foco estético vigoroso nem um projeto, como o têm o Coutinho, o João Moreira Salles e outros. E eu acho que o Vinícius também participa dessa pauta, o filme tenta fazer uma linguagem oficial, mas ele acaba encontrando sua inserção do ponto de vista do espetáculo cinematográfico ao fazer essa coisa da nostalgia que o teatro já tinha trabalhado.

DC: Na verdade eu acho que Vinícius tem uma consistência estética, sim. Eu acho que o Miguel Farias é um cara que entende o suficiente para fazer uma coisa bem-amarrada. Ao contrário, talvez o problema seja que esse projeto estético nos pareça caduco. Porque ele é muito certinho, porque ele é muito convencional, porque ele é bem conhecido de todos nós. Mas nessa chave Vinícius é muito mais bem-sucedido do que o Coisa Mais Linda, um filme muito mais interessante de se ver, com todos os seus altos e baixos. O que me incomoda não é só essa coisa da nostalgia, mas uma coisa que vem junto com a nostalgia e do saudosismo, que é um grau de mitificação que acaba por se tornar uma coisa meio mórbida, uma coisa que não tem muita vida, uma coisa putrefata. E isso é muito evidente no Vinícius. Ao mesmo tempo em que existe um olhar muito carinhoso quando, por exemplo, o Chico Buarque fala do Vinícius – tem um olhar de um amigo e de um mito para ele –, todos os olhares são muito míticos. E se alguns olhares são míticos mas engraçados, como o da Tonia Carrero, outros são simplesmente caducos, como é o caso do Ferreira Gullar, que infelizmente está se tornando uma voz do reacionarismo brasileiro. Alguém precisa informar a ele que hoje é cada vez mais uma figura extremamente reacionária. E nesse filme é bastante reacionário o olhar que ele tem direcionado ao Vinícius de Morais. É atravancador de qualquer idéia de cultura. É uma travação, um bode. E transformam as falas do Chico Buarque também num bode – poderiam não ser num outro contexto, mas se tornam um bode. E nisso eu faço questão de ressaltar, que pra mim é uma coisa evidente do problema desse filme, é o fato de que todos os momentos mais vitais do filme, com a exceção de um, são tirados de um outro filme que já foi feito.

RG: Que é o filme da Susana de Moraes.

DC: Sim, o Vinícius, um Rapaz de Família, que é um grande filme, um filme impressionante, um filme que pretendia fugir da imagem conhecida do Vinícius, da Bossa Nova, e é muito bonito, mostra ele bêbado, mostra o Tom bêbado, e tem um ar de vitalidade. E qual é o outro momento em que o Vinícius do Miguel Farias foge dessa visão conhecida? É justamente o depoimento da diretora de Vinícus, um Rapaz de Família, e também filha do Vinícius, a Susana de Moraes. É o único depoimento do filme em que o entrevistado não está falando de um mito, mas de um homem: é ela falando do pai. E ela não diz que o Vinícius era uma maravilha. É óbvio que ela acha o Vinícius uma maravilha, que ama ele. Não precisa dizer isso. Mas ela fala da fragilidade dele, ela diz: "Ele não conseguia dizer uma verdade que doesse pra mim". E como ele não conseguia dizer uma verdade que doesse, ele criou uma situação horrível. Não tem nenhum encanto, mas justamente por não ter nenhum encanto, é muito bonito, porque cria-se um personagem realmente humano. "O Vinícius de Morais" não é aquela figura dos porres, que sofria e que depois ia sofrer num canto, e que era muito melhor do que o Beckett, essa coisa velha, esse discurso velho do Chico Buarque e do Ferreira Gullar. É óbvio que esse personagem que aparece não é um ser humano, porque o ser humano é de carne e osso e faleceu, mas parece na fala dela, para nós que estamos vendo o filme, que ali surgiu uma figura humana. É a sensação da arte nos parecer trazer uma coisa absolutamente real, absolutamente viva. E esse depoimento dela traz isso, assim como as imagens do filme dela também trazem. É uma pena, então, que Vinícius pareça ser no geral uma coisa morta com algumas coisas dentro que são muito vivas. Eu não me incomodo de maneira nenhuma com as interpretações das músicas e nem dos poemas. Joga para a platéia, mas eu acho que faz parte desse projeto estético. Mas me incomoda profundamente essa ideologia vendida de que Ipanema foi um lugar maravilhoso, e que o Brasil foi um lugar maravilhoso, e que esse lugar é morto e se perdeu.

EG: E o Coisa Mais Linda é a mesma coisa.

DC: Eu sei, exatamente. É o "Rio de amor que se perdeu", que está lá na carta ao Tom que o Vinícius escreveu. E, bom, o Vinícius do "Meu tempo é quando" é muito mais vital do que o Vinícius do "Rio de amor que se perdeu". E as jovens vão lá, olham e ficam pensando: "Oh! Como era bonito. Eu queria ter sido namorada do Vinícius de Morais". Tanta gente no mundo pra se amar, pra quê alguém vai querer namorar uma pessoa que já morreu?...

RG: É aquela coisa, o modo de consumo está inserido na estrutura do filme, é um filme que fala para as pessoas bem instaladas da Zona Sul, um maneira de vender "selvageria" para pessoas bem confortáveis, chorando uma certa nobreza perdida, um certo tempo passado, um pioneirismo que a classe média da Zona Sul numa época teve no tempo da Bossa Nova e hoje parece perdida para ela.

DC: Essa forma é enclausurada, o filme enclausura isso. Ele diz: "Esse tempo já passou. Olha, como era bonito esse tempo que já passou". Já passou pra ele!

TM: Eu acho que as interpretações tanto dos poemas quanto das músicas só reforçam isso. Eu acho que elas fazem parte desse processo.

RG: E eu concordo. Acho que Olívia Byington, Camila Morgado, Monica Salmaso, todos estão inteiramente inseridos nessa lógica. Tanto que quando o Zeca Pagodinho aparece você toma um susto, ele é um OVNI naquilo. As pessoas riram na sessão em que eu estava. Claro! O Zeca Pagodinho é um sujeito que tem um discurso articulado com uma coisa que está acontecendo hoje. Ao passo que o resto está ruminando um discurso necrófilo, já desgastado. Todas essas figuras são cantoras da "nova MPB", mas é uma nova MPB de gueto que só funciona num determinado registro de "bom gosto", é algo que não tem o elemento do escracho lírico, do escracho de vida boêmia que o Vinícius tinha.

LARM: Guardadas as devidas proporções, é essa a sensação que a gente tem com Glauber o Filme, do Silvio Tendler.

D: Mas não dá para comparar, o Vinícius é um filme aceitável.

LARM: Mas eu acho que a idéia de trabalhar em torno dessa coisa necrófila, e de transformar o Glauber meio que num super-herói, só raramente é quebrado no filme. Tem um ou outro depoimento, como a fala do João Ubaldo. De resto, é uma mitificação constante

RG: Mas vamos então para um filme que de certa forma pega a coisa do musical e, como o Gilberto menciona a partir do Extremo Sul, também tem uma coisa muito questionável em relação aos seus retratados, que é o A Pessoa É para o Que Nasce...

LARM: Esse eu só vi o curta.


RG: O curta é extremamente diferente, é uma chave mítico-poética, algo sobre os mistérios da vida, a questão do destino. Mas quando ele se transforma em longa, ele é uma coisa inteiramente diferente...

GSJr: Eu, ao contrário, só vi o longa, e vi faz tempo, mas guardo acima de tudo uma certa idéia de cafetinagem, meio consciente, meio envergonhada, meio morde e assopra.

RG: É, eu acho que a chave do filme é o paternalismo. Ele realmente partilha de um desejo muito grande de tornar essas figuras, fazer com que o filme seja o veículo para dar o devido valor a essas figuras sensacionais, e eu creio que em cada fotograma ele mostra o paternalismo e a manipulação da imagem delas. Porque o filme inteiro só vende elas como pobres coitadinhas, inclusive fazendo um registro muito complicado porque, afinal de contas, o cinema é um registro de visibilidade, e é preciso considerar que existe um comportamento ético em relação a esse caráter do cinema, e no caso de se filmar pessoas cegas e completamente desprotegidas econômica e psicologicamente, e que o filme, para dizer o mínimo, não resolve essa questão ética.

DC: O filme cria um mocinho. O que é uma coisa estranhíssima: criar um filme para dizer que ele, o diretor, Roberto Berliner, é um mocinho, e que ele é um amor, e que ele está ajudando as pessoas, e que elas são todas tão ingênuas e indefesas e ele está ajudando muito. É uma tese bem problemática.

RG: O que é engraçado, porque é um filme que as pessoas de "bom coração", que não têm essa segunda leitura, que vêem o filme ingenuamente, elas saem do filme encantadas porque o sujeito é bonzinho, e ao mesmo tempo nunca vi respostas tão revoltadas de alunos em relação a essa aposta de propor o paternalismo miserabilista do diretor.

GSJr: E todos os conflitos que ele explora, em cima dos quais ele constrói o filme dele, são as coisas mais miserabilistas: a história da mulher que teve um marido que foi assassinado, a história de uma que descobre que o pai é o padrasto e que abusava das moças cegas quando meninas, é o conflito com a filha que vai ficando adolescente e não aceita aquilo... Ele vai cavucar mesmo todo o sofrimento possível.

RG: E assim esse filme acaba construindo uma visão pornográfica em relação ao mundo retratado. Pornográfica porque você está vendo aqueles que não podem ver e porque você está criando uma ficção, um olhar inteiramente distanciado. É a pornografia da ONG, do "falar por aqueles que não têm voz". Parece muito com o filme americano das crianças nascidas nos bordéis do Irã [Nascidos nos Bordéis/Born into Brothels]. Também é um filme que cria todos aqueles olhares benevolentes, todo mundo adora, as pessoas saem chorando, e que participa também dessa linhagem de uma relação pornográfica, exploratória com a pobreza.

Parte 1: Os espaços ocupados e a visibilidade dos filmes

Parte 2: Representações e reflexos da realidade: ausência de um elogio do agora.

Parte 3: Olhares históricos.

Parte 5: Casa de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices e o cinema de Domingos Oliveira.

 

 





Cidade Baixa, de Sérgio Machado


O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho