LCOJr:
Eu tenho uma especulação a fazer. O filme
histórico de caráter épico-grandioso
parece ter saído de moda nos últimos três
anos. Mesmo Desmundo, de 2003, já substituía
a pompa por um interesse histórico-científico,
de fazer um filme com a língua que supostamente
falavam na época, com pessoas peludas e sujas
etc. Será que isso não reflete, de repente,
um momento em que não parece mais natural e viável
produzir uma imagem oficialesca?
DC: Acho que, quando o cinema brasileiro ressurgiu para
o público, essa idéia de "vamos mostrar
as belezas do país" era muito necessária,
precisava ter essa legitimação. Agora,
quando você vai fazer um olhar histórico,
tem muito mais a ver, por exemplo, a questão
da Lúcia Murat, que vai tentar ver uma trajetória
histórica. Por mais que você possa dizer
que essa trajetória tem muitos problemas, que
ela pode se transformar numa simplificação
grosseira, ela é uma tentativa de perceber um
caminho sendo seguido historicamente. Já não
há mais a idéia de pegar a grande figura
do passado, apesar de que vai acabar saindo o filme
sobre o Santos Dumont, isso sempre acontece.
RG: Claro, quando abrir a porteira pra elefante branco
vai aparecer de novo...
LCOJr: A Lúcia Murat faz uma arqueologia de uma
luta de classes. Mal feita, porém faz.
GSJr: Mal feita porque ela abre demais o leque.
LCOJr: A questão é que não existe
mais, contudo, uma classe cinematográfica se
sentindo incentivada e estimulada pelo governo a produzir
uma história oficial. Mas existe sim uma nova
relação, provisória que seja, entre
as políticas de incentivo à produção
cinematográfica e a maneira que a produção
cinematográfica responde a esse estímulo.
DC: Tem a idéia da urgência dos filmes,
seja os filmes de época ou os atuais. Ao invés
de você mostrar o Brasil das grandes figuras você
quer mostrar o cotidiano.
RG: Tem um filme que é histórico desse
ano e que pega pelo intimismo que é o Vida
de Menina. Mas é em outra chave. Se você
pega os filmes grandiosos, em que é para construir
cenários, sujar a rua de cocô de cavalo,
de feno, aquelas coisas assim, há dois grandes
fracassos estéticos recentes muito por falta
de orçamento. Um já de uns três
anos atrás é o Sonhos Tropicais,
do André Sturm, em que você vê que
falta dinheiro para ele filmar as coisas. E o Cafundó
também, que tenta escapar da falta de dinheiro
através da montagem, fazendo umas elipses completamente
confusas. Escolhe-se a chave do intimismo.
EG: Concerto Campestre também é
assim. Um filme de época que se passa no século
XIX, no Sul, e conta a história de um fazendeiro,
feito pelo Abujamra, que quer construir uma orquestra
com os matutos, e o filme acaba se desdobrando mais
pelo romance do Leonardo Vieira com a filha do cara.
RG: Garrincha funciona assim também. Você
olha e diz: "falta dinheiro pra essa cena que o
cara quis fazer".
DC: Em Garrincha falta muita coisa, na verdade...
Eu queria voltar pro filme da Lúcia Murat, o
Quase Dois Irmãos, para notar como o filme
vai trabalhar essa questão da urgência
no olhar histórico, de forma ora bem sucedida,
ora não. Houve um certo consenso talvez na nossa
redação de que a parte que funciona melhor
é a parte dos anos setenta. A parte dos anos
cinqüenta não funciona, porque não
soa nem como uma idéia de memória nem
como uma coisa real.
GSJr: Tem um excesso de idealização ali.
DC: Exatamente, é completamente idealizado. E
a parte dos anos 90, em que ela tenta dar uma atualidade
total ao filme, é de um melodrama moralista que
também não funciona. Já a parte
dos anos setenta parece que é um filme que ela
teve muito tesão em fazer, talvez pela história
pessoal dela, porque ela tenha convivido com todas aquelas
questões, e porque a história é
realmente interessante, essa coisa dos presos terem
aprendido as estratégias de organização
dos presos políticos, isso é uma história
muito interessante e forte. Se ela fizesse só
esse filme dos anos setenta seria um grande filme. Esse
filme dos anos setenta é um dos melhores filmes
brasileiros do ano.
RG: Eu não consigo desvincular, porque ele existe
lá para criar uma lógica pro hoje e é
uma lógica muito esquisita. Se a parte dos anos
setenta é boa, acima de tudo é porque
é a única parte que tem realmente uma
unidade, uma unidade de uma coisa que não foi
exaurida, e que mesmo que em algum sentido faça
parte do discurso oficial, de um discurso de que ninguém
discorda – que o crime organizado nasce a partir daí
–, ele não foi divulgado pela mídia, a
ficção brasileira não criou isso
ainda, então mal ou bem ele tem essa novidade.
Agora, basicamente todo o argumento do filme é
um argumento pra lá de exaurido e com o seu quê
de desgaste e de mitificação de classe-média,
que é o discurso do Zuenir Ventura de Cidade
Partida.
TM: O filme todo parte do hoje. Na verdade ele está
todo ancorado no hoje. E pra mim ele se alinha, como
proposta, com todos esses outros filmes de favela pautados
no Cidade Partida.
DC: Além dessa coisa do Zuenir Ventura, o que
me incomoda nessa parte do hoje é aquela coisa
melodramática absolutamente forçada, a
menina sendo estuprada, o deputado querendo dar dinheiro
pro bandido pra poder criar escolas, enfim, eu acho
isso meio constrangedor. Mas acima de tudo esse filme
parece ter surgido de um incômodo com o Cidade
de Deus, ele parece querer ser um Cidade de Deus
da esquerda. E é impressionante como a vitalidade
integral do Cidade de Deus não está
nesse filme. Fica parecendo que a esquerda caducou de
fato.
LCOJr: As partes na favela são pura estética-ONG.
DC: Aqueles tiroteios, nada funciona... Ela tinha um
filme bom pra fazer, na cadeia, e quis criar uma grande
tese, e não é sempre que se consegue fazer
um bom cinema de tese.
EG: Ela quis adequar a trama a uma tese.
RG: É a mesma estratégia de um certo cinema
de esquerda que vai tentar pegar, a partir do personagem
típico da classe média e da classe pobre,
do asfalto e do morro, e ver como eles funcionam no
registro da década de 50 – do jornalista que
tenta patrocinar, dar voz ao morro –, depois na década
de 70 com os guerrilheiros e os outros presos. O jornalista
é um intelectual, o guerrilheiro é um
intelectual e o deputado dos dias atuais também.
Então a questão desses filmes que tentam
fazer o curto-circuito da classe alta e da classe baixa,
você vê isso em Quase Dois Irmãos,
é que eles tentam inserir a posição
do intelectual diante disso, e é por isso que
ele é completamente homogêneo em relação
ao Cidade Partida, porque o Zuenir também
parte do ponto de vista do que é um intelectual
de classe-média alta, como ele está encarando
esse mundo que não dá certo. A chave da
Murat é de que há uma falência do
intelectual na mediação entre morro e
asfalto. Em todos os tempos há falência,
mas agora aparentemente ela assume uma gravidade muito
maior: o intelectual não consegue impedir que
a filha seja namorada do traficante.
LCOJr: Inclusive isso culmina num jogo de montagem paralela
constrangedor, em que ele está atravessando um
bloco de carnaval e sua filha está sendo estuprada
pela gangue rival do namorado. Acho essa uma das seqüências
mais lamentáveis do cinema brasileiro em 2005.
RG: Como eu brinquei numa mesa redonda lá com
a turma para a qual dou aula, essa cena se interpreta
como um efeito que parece com aquela segunda parte de
Laranja Mecânica quando o Alex tem que
ver todas as cenas de violência possíveis.
A intriga da Maria Flor, que termina com ela sendo estuprada,
é policialesca: "Meninas, não subam
o morro, porque olha o que vai acontecer com vocês".
LCOJr: É um alerta para as meninas de classe-média.
TM: O filme todo se baseia na montagem, ela junta os
três momentos históricos, e de forma muito
ruim.
GSJr: A gente continua num universo de esquerda dos
anos 70 até certo ponto romantizada, e pra mim
de uma forma excessiva, no filme do Toni Venturi, o
Cabra Cega.
RG: O herói do primeiro semestre do cinema brasileiro
de 2005 é o guerrilheiro. A Lúcia Murat
claramente sabia o que ela queria, mas o Toni Venturi
não sabia o que queria do personagem. Era para
ele ter uma aura de libertador, mas basicamente era
para inseri-lo num lugar de onde não pudesse
sair, e acaba sendo um hui clos sem muita força.
GSJr: A cena do terraço, quando toca "Eu
quero é botar o meu bloco na rua", do Sérgio
Sampaio, me deixou constrangido. Confesso que até
ali eu estava acompanhando o filme com alguma boa vontade.
Tem o cara que está isolado, como guerrilheiro,
e tem a mulher que leva comida pra ele. Rola o inevitável
caso amoroso entre eles, e tem uma hora, num momento
de libertação do universo, que ela o leva
pra um terraço, pra dar um banquete, isso ao
som de "Eu quero é botar o meu bloco na
rua", dando o sentido de liberdade.
RG: O filme cria dentro daquele apartamento uma coisa
tão mitificada que desloca completamente a função
do personagem. Ele poderia ser simplesmente um cara
perseguido pela polícia por um crime qualquer
que o filme não funcionaria muito diferente.
GSJr: A crítica não é muito colocada,
apesar de você ter presenças de forças
repressoras no filme.
EG: Mas esse filme é melhor que o Latitude
Zero, em que também tinham dois personagens
confinados, homem e mulher.
GSJr: Latitude Zero pra mim é mais bem
sucedido porque ele não trabalha numa chave realista
e ponto final. Ele assume que está num universo
fora do real, e aí pelo menos conseguiu transmitir
alguma verdade. Aqueles personagens perdidos naquele
apartamento em Cabra Cega realmente não
me dizem nada.
RG: E vale lembrar que, do ponto de vista das recorrências,
lembra muito a cena do terraço de O Primeiro
Dia, em que o terraço também é
visto como a libertação, e sempre uma
libertação meio mítica, meio impossível,
porque quando volta pro asfalto o sujeito é morto.
Em Cabra Cega, mal ou bem, o sujeito não
vai ter a liberdade quando sair de lá.
DC: Eu fiquei vendo agora aqui essa lista de bilheterias
e notei uma coisa muito curiosa: três filmes naquela
faixa média e três filmes lá embaixo,
filmes que de certa maneira estavam restritos a ficar
num circuito mais culto, circuito-Unibanco, e os cineastas
mais jovens conseguiram de certa maneira sair um pouco
mais disso. Um é o Casa de Areia, na
verdade a gente sabia que era um projeto muito maior,
mas o Andrucha fez sabendo que não ia dar grande
público... Casa de Areia, e tem e
os dois filmes que passaram em Cannes, o Cidade Baixa
e o Cinema, Aspirina e Urubus, parecem ter
uma vontade de cinema muito próxima dos três
últimos da lista, Bens Confiscados, Harmada
e O Signo do Caos... Uma vontade de fazer um
cinema com mais vigor, mesmo sabendo que vai perder
um certo público por conta disso, sem ceder a
uma série de coisas. Talvez o filme do Carlão
seja mais problemático em relação
a isso, porque ele faz uma série de concessões.
RG: Quais concessões você acha que Bens
Confiscados faz?
DC: A questão mais grave do filme para mim, sendo
sincero, é a personagem da Betty Faria. O Carlão
gosta muito de protagonistas que sejam testemunhas.
O filme é muito voltado para a Betty, que não
é totalmente uma testemunha, e aí acho
que tem um problema, é que o tema do filme que
fica muito subjacente, vem muito pouco à tona,
e o grande tema da protagonista, a meu ver, é
a velhice dela. Se você for ver o filme como o
olhar de uma pessoa que está envelhecendo e se
percebendo envelhecer, ele é muito mais forte
do que visto apenas como um filme de uma testemunha.
Mas eu acho que isso é pouco trazido à
tona, devido à própria presença
da Betty Faria, vista como uma estrela de cinema...
Porque, de todo jeito, colocar a Betty para fazer o
papel da gostosona já não dá mais
tempo... Acho normal notar que foi uma concessão
botar ela, que é uma estrela de cinema, para
fazer aquele papel. Mas, voltando, me parece que esses
filmes que citei estão mais preocupados em ser
cinema do que em conceder e chegar ao público.
E é engraçado como os três filmes
de realizadores jovens conseguem, por uma série
de caminhos, escapar dos maus tratos que o mercado brasileiro
oferece a esse tipo de cinema.
RG: Mas isso tem uma outra razão. Os três
filmes de diretores veteranos têm estilos já
consolidados, que nasceram muito em contato com o público
no momento em que eles estavam começando a ser
cineastas, e eles não têm mais motivo e
também não têm mais uma sintonia
para pegar um público novo, que é outra
geração. Isso cria um certo efeito anacrônico?
Cria, e eu acho que já criava com Garotas
do ABC, um filme que pela própria tessitura
já está destinado a um certo tipo de público
que não existe mais.
DC: Acho que existe, mas não vai mais ao cinema,
fica assistindo filmes na TV.
RG: Bens Confiscados tem uma vontade tão
grande de cinema a ponto de se inserir de cara num registro
cada vez mais desgastado do cinema, do cinema de gênero,
que é o melodrama. O último melodrama
que queria ser melodrama com os instrumentos mesmos
de significação do melodrama tinha sido
o filme do Amylton de Almeida, O Amor Está
no Ar. Se a gente pegar a matriz sirkiana do melodrama,
ele funciona com um nível de irrealidade enorme,
e aí sim, logo no começo de Bens Confiscados
a gente vê todas aquelas folhas mortas na escadaria
da casa da suicida.
DC: Que, verdade seja dita, é um dos inícios
mais espetaculares dos últimos tempos. É
impressionante a força daquele início
do filme.
RG: É sensacional... E em Filhas do Vento,
nesse sentido, o que se cria de irrealismo é
mais por uma certa falta de saber-fazer do diretor do
que por uma inserção num tipo de código.
EG: Gaijin 2 também trabalha numa chave
de melodrama.
RG: Bens Confiscados é ao contrário:
ele vai com toda força nisso. Não é
uma força pop, no sentido de que os jovens hoje
vão encampar. Ao contrário: o jovem tem
uma certa auto-consciência que o espectador do
melodrama, se tem, precisa fingir que não tem
para conseguir assistir. Se existe um fracasso de público
do filme, ele é por conta disso.
DC: Mas acho que o fracasso desses três filmes
dos veteranos é 99,9 % do lançamento.
Os filmes foram descartados, ficaram na mão da
Riofilme, cuja distribuidora está indo por água
abaixo, se auto-destruindo, e por conta disso os filmes
lançados por ela caem junto. Bens Confiscados,
inclusive, é um filme da Riofilme, e acabou sendo
lançado pela Imovision.
GSJr: Mas diferente do filme do Capovilla e do filme
do Sganzerla, independentemente da qualidade dos dois
filmes, o Bens Confiscados tinha um potencial
de público muito maior se lançado decentemente.
DC: Sem sombra de dúvida. Poderia ter um público
muito maior se bem divulgado e, sobretudo, se chegasse
às regiões mais populares.
GSJr: Mas no caso do Bens Confiscados pelo menos
houve alguma insistência em manter o filme em
cartaz, mesmo que fosse na Casa França-Brasil.
RG: O filme ainda está em cartaz, e pode até
passar esses números que temos agora em mãos.
Parte 1: Os
espaços ocupados e a visibilidade dos filmes
Parte 2: Representações
e reflexos da realidade: ausência de um elogio
do agora.
Parte 4: Os novos talentos
da ficção e o documentário.
Parte 5: Casa
de Areia, Sganzerla e O Signo do Caos, Feminices
e o cinema de Domingos Oliveira.
|