RG: Talvez valha como valor
de posição de um outro status internacional
da figura dele, talvez seja por isso que ele tenha aceitado,
ou talvez porque tinha coisas que lhe interessavam de
fato, esteticamente, para trabalhar. Agora, a gente
passou pelo olhar do público, pela expectativa
de público e o que um filme significa em relação
ao público, mas uma coisa decisiva esse ano me
pareceu também, tanto em relação
ao público em geral como ao público especializado,
se dar nesse aspecto da imprensa e da crítica,
sobretudo com relação ao filme do Carlão,
Garotas do ABC, que foi recebido mesmo pelo público
mais sofisticado, não só da crítica
como de um típico espectador cinéfilo,
como já se falou aqui, como se fosse um filme
com más atuações e esquisito, quando
ele nunca teve a idéia de ser um filme com atuações
naturalistas. E o que me choca nessa opinião
avalizada, de críticos, é o fato de que
eles não sabem mais olhar para um filme que não
tem interpretações naturalistas.
DC: Mas isso não são todos. Até
no Globo o filme foi defendido.
RG: Não, a crítica falou mal dos atores,
de uma forma banal.
DC: Mas outros críticos do jornal manifestaram
no blog do Globo, que é publicado, legítimo,
que gostaram do filme, e a questão das interpretações
foi comentada como um problema em relação
ao público, mas que para eles não era.
RG: Mas no blog vão umas cem pessoas, no Rio
Show vão ler milhares.
GSJr: Mas, se não me falha a memória,
mesmo assim o Garotas do ABC ganhou o bonequinho
aplaudindo.
DC: O maior problema foi no Estado de São Paulo,
onde o filme foi muito mal visto, de uma forma muito
estúpida.
LCOJr: Mas eu acho que o Ruy queria tocar num ponto
que é um vício crítico, um jargão
que se chama "atuações convincentes".
RG: Que sempre existiu, na verdade...
LCOJr: Que sempre existiu, mas que atualmente se tornou
o paradigma de qualidade de um elenco. Esse "convincente"
entra nessa praia do naturalismo, de "você imaginaria
ele falando assim na vida real?", e é uma besteira.
EV: O que eu acho que acontece, muito claramente, pra
começar, é uma igualdade dessa faixa de
críticos e jornalistas especializados a um determinado
público, em que eles se igualam, se tornam a
mesma pessoa, do que eu diria que o grande ideólogo
é o Jaime Biaggio, no sentido de defender isso
mesmo, abertamente.
DC: Mas na verdade isso começa nos anos 80, com
Rogério Durst.
EV: Mas a definição do Jaime lá
no blog é "um crítico de cinema que escreve
como pessoa normal". Há uma primeira coisa que
é essa idéia que tenta excluir toda tentativa
de abrangência de certas questões, sejam
cinematográficas ou sejam para além do
cinema, algo como "cinema não é lugar
para isso". Está muito claro no Jaime, mas está
insidiosamente espalhado em quase todos os lugares.
A segunda coisa que eu acho muito interessante é
que, na verdade, tanto o público quanto esses
jornalistas introjetaram uma coisa – que eles renegam
hoje, por exemplo, quando sai um Olga, exatamente
porque o Olga também não é
naturalista, na verdade –, e o que eles introjetaram
na escrita deles é uma linguagem televisiva.
A linguagem televisiva está nessas figuras, e
muito menos no Olga, que está muito mais
perto de uma linguagem teatral e de uma certa dinâmica
que é muito típica de certos produtos
da Globo, como as minisséries, mas que não
tem nada a ver com a linguagem de que eles falam. É
uma linguagem puramente cinematográfica, que
a televisão incorporou, mas veio do cinema.
DC: A coisa dos closes tem nos filmes do Sergio
Leone.
EV: A verdadeira questão dessa "linguagem
televisiva", que é a desse naturalismo banal,
do naturalismo do plausível, em que determinou-se
que aquilo é naturalista, quando na verdade não
é, isso foi introjetado por todas essas figuras,
e você percebe isso claramente nos textos. Então
é engraçado ver que as mesmas figuras
que vão se voltar contra uma determinada "linguagem
televisiva" num filme que não tem tanto a ver
com essa questão estão julgando todos
os filmes baseados numa questão internalizada,
de um "televisionalismo" desse naturalismo. Porque é
um determinado naturalismo, já que há
vários naturalismos.
DC: Mas aí passa pelo talento e pela disposição
de pensar, porque a pessoa querer escrever sem utilizar
termos rebuscados, para ser plenamente entendido, é
a coisa mais simples. A questão é como
o cara vai se colocar diante do mundo e diante de um
filme a partir daí.
EV: O problema é que a idéia do "plausível"
passa a ser o critério.
LCOJr: Nos filmes do Dogma há todo tipo de atuação
canhestra, tosca, mas tem um tipo de linguagem, de trabalho
de câmera, movimentação e tal, que
sugere uma certa plausibilidade, um ultra-realismo de
reportagem de situações que a crítica
compra como um critério de naturalismo.
EV: Eu estava conversando com o Cléber lá
em São Paulo, e há uma coisa que parece
que está cada vez mais incrível de você
ver: as pessoas não têm mais a generosidade
de tentar entender o que o filme está fazendo,
o que está falando.
DC: Qual é a intenção...
EV: Eles estão querendo julgar os trabalhos baseados
nos critérios de qualidade deles, e não
dos filmes. Não faz o menor sentido... Um outro
caso em que eu li isso foi numa crítica do filme
do Castellito, Não se Mova, onde se criticava
que o filme "parece extremamente exagerado". Mas, oras,
o filme é exagerado! Isso de saída é
o pressuposto do cineasta.
LCOJr: E se o crítico não souber ver isso,
ele não está ali no papel dele como crítico.
EV: Pois é. Você está lendo o filme
a partir de quem, se não o diretor?
DC: Do tipo: "desse gênero de filme eu não
gosto". Aí não dá para conversar.
EV: Aí é o fim. "Animação
eu não vejo", "filme de terror eu não
vejo", já de saída... É um pouco
a folclorização da Bárbara Heliodora,
que só gosta de um determinado tipo de peça,
e é a crítica que avalia todas as peças
para O Globo, e isso não faz o menor sentido.
Tem gente até que faz a peça e, se a Bárbara
Heliodora gostar, fica confuso, diz: "Pô, eu estava
querendo fazer um negócio indo contra isso, ela
foi e gostou, então eu devo ter errado, eu errei
em algum lugar!".
RG: Mas uma coisa que eu estava querendo puxar, quando
falei do filme do Carlão, é que se trata
de um filme completamente ousado. Há uma ousadia
com os atores, e é uma ousadia que não
foi vista, não foi reparada por nenhum crítico.
Um modo de dramatização, de concepção
de cinema que é bastante anacrônico, no
sentido de que não é feito hoje mais por
ninguém, todo mundo abandonou o cultivo de uma
mise-en-scène, o cultivo de um movimento
de câmera querer significar alguma coisa, o cultivo
de uma certa fala parecer completamente implausível
porque ele quer reverenciar um outro cineasta ou porque
quer falar de idéias. Por exemplo, na primeira
cena de um almoço de uma das operárias
com o cara do sindicato: situação que
pertence ao cinema, pertence ao universo do cinema de
criar isso, e criar mundos que não têm
a ver com esse que está aí – e como isso
é absolutamente rico e precisa ser defendido.
Se a crítica tem um papel com o público,
serve para fazer o sujeito se informar, é o que
dá o salário para os jornalistas, tudo
bem. Mas não é esse o papel que vai inserir
os críticos na história da arte: o que
vai fazer isso é defender os filmes mais difíceis.
E é exatamente isso que é complicado:
quando surge uma barreira difícil, é aí
que o crítico deve aparecer e explicar por que
isso está aqui e por que faz sentido que esteja.
GSJr: Uma das maiores críticas que eu ouvi, porque
eu assisti ao filme do Carlão na cabine para
os críticos, foi a seqüência do baile.
Até pessoas que gostaram do filme se sentiram
plenamente incomodadas pela seqüência do
baile. E eu digo: aquilo não é um baile
da periferia, não tem um baile assim, com um
cara tocando, mas não é para ter mesmo!
Aquele baile é do Carlão, pô! Aquilo
é uma pura construção de um cinema
livre, de um universo particular.
LCOJr: E é num momento como esse que você
vê que os críticos não gostam mais
de cinema. O Garotas do ABC, em termos de iluminação,
cenografia, de toda a construção de ambiência,
é feito com um apreço raro no cinema brasileiro.
DC: O mais forte pra mim, acima de tudo, é a
relação com os personagens que o Carlão
faz e que é cada vez mais forte no seu cinema.
Ele já tentava trazer isso desde o início,
desde o Lilian M, e ele intensifica muito isso
nesse filme e no Bens Confiscados. A relação
dele com os personagens é uma coisa cada vez
mais forte, e nesse filme, especificamente, ele saiu
de novo do mundo dele, saiu do mundo da classe média
paulistana e foi lá conviver, quis conviver com
elas pra pensar o filme e discutir as questões.
O Ruy também falou isso comigo numa conversa:
esse é um dos problemas, porque de certa maneira
ele faz algo semelhante ao que faz O Prisioneiro,
mas não tem esse "lastro social", em que o espectador
"aprende algo", que O Prisioneiro tem. O que
interessa ao Carlão é mostrar que na classe
baixa existem dramas. E não é à
toa que existem questões que não são
apenas as de violência, existem questões
familiares, amorosas, e tudo isso interessa ao filme.
Por isso ele cria toda essa encenação.
GSJr: E dramaturgicamente é bem interessante
a forma como a Aurélia soluciona o problema dela
com o cara, porque você acha que vai ter um conflito,
que ele vai dar porrada na Aurélia, um fim assim,
e não dá, ela sai fora dali, se fecha
ali naquele momento do baile, e acabou. Ela sai do universo
do cara, que vai ser mal-resolvido por conta dele, via
outros caminhos, com os neo-nazistas. Mas isso é
muito interessante, essa quebra da expectativa de que
você vai ter um confronto violento, melodramático,
novelístico.
RG: Feito Como Nascem os Anjos, por exemplo...
EV: Eu acho que essa questão do personagem que
você colocou é importante porque os escaninhos
são por aí. O Ruy falou da coisa do cinema
pelo cinema, mas acho que em alguns momentos o crítico
ainda o permite: quando o autor diz na primeira cena:
"Esse é um filme sobre esse assunto".
DC: Pode virar cult-movie...
EV: Aí é chique, você pode dizer
que "o cara faz várias referências". O
diferente disso não é aceito, e aí
a gente pode colocar o caso do próprio Shyamalan
e da recepção ao filme dele, até
mais nos EUA do que fora de lá. Se você
procurar uma fortuna crítica sobre o filme dele...
RG: É uma fortuna crítica completamente
desafortunada.
EV: E o ponto é sempre esse: quando a questão
é um filme que apresenta personagens, e se apresenta
como um filme sobre personagens, aí você
não pode aceitar essas coisas coexistindo. Se
tem personagem e tem história, tem que ser naturalista,
dentro do que se concebe hoje como naturalismo e plausível.
Se tem qualquer outra coisa, é pretensioso, é
a primeira palavra que jogam, e a segunda é essa
da questão do não-crível. Se é
pretensioso e não-crível, então
está tudo resolvido. O Soderberg vai até
brincar, na cena lá do Bruce Willis, em que diminui
os filmes do Shyamalan, por exemplo, a saber se você
descobriu antes ou não qual é o segredo
do final. Se você descobriu antes, então
o filme não serve para nada, não tem nenhum
efeito. E é o que o Bruce Willis vai dizer, "se
o filme fez seiscentos milhões tem algum motivo",
e o motivo é que as pessoas se fascinam por aquele
mundo cinematográfico, não importa se
elas descobriram antes ou não, simplesmente fascina
o olhar. Agora, esse fascínio, que é típico
do cinema, não basta mais, pelo menos quando
o filme é de personagens.
RG: Não é à toa a referência
que o Daniel fez a O Prisioneiro, assim como
a coisa de que o Júnior falou, com relação
ao tema, claramente... É preciso lembrar que
Garotas do ABC ganhou um prêmio pelo argumento
[no Festival de Brasília]. E é
o prêmio mais canhestro, o júri precisa
voltar para a escola, sei lá, para o jardim de
infância.
DC: Parece burrice ou má-fé mesmo.
RG: Porque, obviamente, quando um júri dá
o prêmio de "argumento" ele parece acreditar que
é muito importante que se fale das pessoas do
ABC, mas não está disposto a encarar a
vida dessas pessoas, com uma forma de mise-en-scène
possível a partir da vida dessas pessoas, que
não vá ratificar o que elas já
sabem de antemão, ou seja, que essas pessoas
são pobres, a vida é dura etc. As pessoas
não podem ver uma vida amorosa como a de uma
mulher que goste do Arnold Schwarzenegger, por exemplo.
Já está errado, isso não pode ser
um personagem, da mesma forma que não pode ter
um personagem integralista.
DC: Ou uma vesga...
RG: Ou uma vesga, ou uma bêbada...
GSJr: Tem um personagem interessante, até por
ele o Carlão mostra um carinho, que é
um personagem que aparece na terceira seqüência,
quando a Aurélia vai pegar o ônibus: um
tarado que fica importunando as moças no ponto.
Esse personagem volta no final do filme como uma figura
do baile, e perfeitamente integrada naquele contexto.
LCOJr: Existe um desconforto notável das pessoas,
tanto do meio da crítica como do público
em geral, em relação a estar diante de
um filme que pega o ABC paulista – com luta sindical,
neo-nazismo, ódio aos nordestinos, toda aquela
região industrial de São Paulo – e que
entra nas casas das classes baixas para tentar acompanhar
como é a situação cotidiana com
uma mise-en-scène que remete a um certo
tipo de cinema que as pessoas não estão
acostumadas a ver. O sujeito acha que, numa situação
dessas, uma vez que os temas são sérios,
ele tem que ver aquele filminho "contido", em que a
câmera não se move, em que não existe
uma preocupação virtuosística que
escapa a um campo de referências "seguro".
DC: Espera-se o contrário, algo mais próximo
de Cidade de Deus.
EV: É a coisa das referências mesmo. O
Carlão vai inserir a soul music como uma
referência importante e essencial para o filme.
Trata-se de uma série de questões que
escapam à simples socialização
do espaço.
LCOJr: Ele está fazendo uma coisa de que, na
verdade, todo mundo vive reclamando a ausência,
que é a de tratar os personagens como pessoas
mesmo, abertos a todo tipo de vontade, todo tipo de
hobby.
EV: E com um carinho enorme. O problema é a ausência
de culpa...
RG: Mas é essa a figura do Carlão completa,
essa figura que ele herda de um determinado melodrama,
que é zurliniano numa medida, acho que mais do
que sirkiano, de dar a certa medida de cada personagem,
de não haver vilões. Mesmo quando um sujeito
é um canalha, a Betty Faria vai falar "Ah, mas
era um ótimo amante, tratava as mulheres a pão-de-ló...",
isso no Bens Confiscados.
GSJr: Ou a figura do tarado, como eu acabei de falar.
LCOJr: E o professor, o líder sindical, você
simpatiza com ele.
RG: O que eu acho que existe de curioso, por exemplo,
se você pegar Garotas do ABC e contrapor
a Contra Todos, é um profundo ódio
à ficção. Porque a ficção,
na verdade, serve para criar outros mundos, mas ela
é vista como servindo para ratificar o seu próprio,
ou para as expectativas que você já tem.
DC : A ficção para ser aceita tem que
ser naturalista.
RG: Contra Todos não tem ficção,
acontece tudo aquilo que você espera de cada personagem.
GS: E sabe um oposto? A coisa canalha que me incomoda
no Contra Todos é que ele faz uma coisa
contrária ao que o Carlão faz. Você
pegar, naquele universo da periferia, as pessoas levando
uma vida alegre, com emoções e sentimentos,
é o oposto daquela coisa que o Contra Todos
faz, de resumir o ódio e botar todos os males
do mundo dentro de uma mesma família, num excesso
de dramatização absurdo.
RG: O filme se baseia na lógica de que, se uma
merda pode acontecer, ela vai acontecer.
DC: Desde que seja intencional, desde que dependa da
maldade das pessoas.
RG: E o roteiro do filme é sobre as relações
de merda que se desenvolvem entre cada um dos personagens.
É um roteiro que pode se resumir a um diagrama
entre cada um e a merda que vai ocorrer.
DC: Em que cada um vai querer sacanear o outro.
RG: E o curioso é que, se você tem, como
no filme do Carlão, personagens de ficção,
personagens que não têm uma cara só,
que têm mais do que uma bidimensionalidade, você
pode fazer um filme. Mas, se você não tem,
como é que evolui a narrativa? Ela evolui por
twists, por viradas de roteiro, do que Contra
Todos está cheio, como naquele final horripilante,
em que se descobre que foi o amigo do sujeito que matou,
quando se esperava outra coisa. Como pode se desenvolver?
Só pode se desenvolver por essas viradas espertas,
esses jogos virtuosos com o espectador, e não
mais com a vida.
EV: E tem mais uma coisa em cuja tecla é importante
bater para ficar registrado, para não parecer,
como o Gilberto colocou, que a gente quer que as pessoas
olhem para a vida azulzinha e não para a vida
triste. A gente não cansa de citar o exemplo
dos Dardenne, em que a vida dos personagens é
muito dura, mas isso não impede que a câmera
esteja interessada por aquelas pessoas com generosidade
para entender quais são as complexidades da vida
dura das pessoas. Não é dizer que a vida
é boa, e as pessoas, na dificuldade, elas sobrevivem
porque têm coisas agradáveis na sua vida,
de jeito nenhum, a questão é outra.
GSJr: O filme do Carlão não se limita
a isso.
DC: E podem agir pessimamente, mas isso não vai
tornar o olhar negativo.
RG: E nem é o suposto carinho pelos personagens
que vai ser decisivo no Carlão e vai faltar ao
Roberto Moreira e vai dar a dimensão dos filmes.
É a abertura para um mundo, que é o mundo
da ficção, que um tem e o outro não
tem, definitivamente.
EV: Eu acho que carinho significa isso, inclusive porque
tem uma outra questão: o Roberto Moreira afirma
como é o mundo, e o Carlão intui o mundo
que ele vê. Isso é essencial na criação
e no criador, porque o Roberto Moreira está sempre
explicando para a gente. A recepção do
filme por quem gostou e por quem não gostou passa
por isso, sobretudo por quem gostou – ele "revela um
mundo para a gente, revela uma realidade". Então
está falando de uma realidade: "a vida é
assim". O Carlão não tem esse tipo
de pretensão, a realidade são muitas,
e, partindo de que são muitas, essa é
a versão que me interessa nessa realidade aqui.
Que não é uma realidade, é uma
transposição, uma transfiguração
da realidade via a figura do criador. Se não
for assim, é desonesto. A questão do Contra
Todos é essa, em última instância
é desonesto com o mundo, porque tenta enfrentar
o mundo com uma realidade que é só uma.
DC: É parte de uma tese, literalmente.
EV: Esse é o filme que mais literalmente partiu
de uma tese em todos os tempos: o roteiro era anexo
de uma tese de doutorado.
RG: Falando então do registro de periferia de
São Paulo, a gente tem que falar do De Passagem,
que é um filme que também sofreu.
DC: Antes disso, sobre o filme do Carlão, há
algumas questões que eu acho que a gente pode
ver nessa relação que ele estabeleceu
com o público e com o filme que são problemáticas.
Não só pelo ponto de vista de mostrar
o que ao público atual do cinema brasileiro não
interessa, mas também por uma relação
com esse público e esse mercado que, bem, é
muito estranho a gente falar de um filme partindo do
que se ouviu falar e do que se publicou sobre ele, mas,
sendo um início de série, naturalmente
ele já sofre por querer lançar várias
histórias e vários personagens e não
querer encaminhar todos os conflitos, que vão
ser resolvidos em outros episódios. Isso cria
um problema para o público e acho normal. Mas
também acho problemático o fato de, tendo
gostado do filme, sentir falta de mais algumas coisas
que pareciam ser enxugadas, pareciam ser apressadas,
e nisso eu acho muito sintomático ter sido dito
que o filme teria duas horas e meia e ter sido cortado
para ter menos de duas horas. Acho que isso é
uma relação com o mercado que é
problemática.
RG: Eu não sei, eu acho que tudo que precisa
estar lá está na tela, acho que como filme
ele se fez, como filme fechado em si ele funciona, e
não precisa de mais nada, ele existe.
DC: Existe, mas às vezes eu sinto que ele manca
nuns momentos, certos conflitos têm um tempo apressado,
parece que havia mais idéias do que tem lá.
GSJr: Mas, por ser um início de série,
ele não fecha, nem pretende. Aquele personagem,
por exemplo, do chefe das operárias com o líder
sindical é uma bola que ele levanta e nem pretende
fechar. Dentro do filme está bem resolvida, mas
a gente sabe que ainda pode render bem. Ou mesmo a outra
que tem um relacionamento sadomasoquista com o chefe
– tem até a cena em que só aparece a mão
do Carlão.
EV: Mas também tem uma coisa aí que é
o seguinte: a gente saber que é o primeiro de
uma série não invalida uma série
de questões que estão no filme. Porque
eu acho que tem uma coisa de construções
de universos do Carlão, que se você parar
e for olhar outros filmes dele, vai achar um monte desses
pontos soltos, porque não eram o foco do filme,
mas o Carlão gosta desse tipo de coisa.
GSJr: Alma Corsária tem isso aos montes.
DC: Isso não me incomoda, acho bom. O que me
incomoda é que, para apresentar todos esses universos,
o filme limita muito aquilo que seria a intriga principal.
Acho que a relação da Aurélia com
o namorado sai limitada nisso, praticamente não
há cenas entre os dois, fica uma coisa mais falada
do que vista, mais mencionada e que se resolve sem se
resolver.
RG: E aí tem a única cena que eu realmente
acho fraca, que é a quando ela sai do carro.
DC: A da briga dos dois, exatamente, ficou me parecendo
que aquilo era pra se desenvolver mais, eu senti falta
de algo. Poderia ter aquele resultado, mas dramaticamente
parece que ficou apressado. E aí fica aquela
coisa terrível de saber, de ouvir falar, mais
do que o filme tem, de saber que era pro filme ser mais
longo e foi enxugado. O próprio Carlão
disse que achava que ficava melhor enxuto, mas tem sempre
essa coisa de "mercado", então fica essa sensação
de o filme parecer sacrificado.
EV: Acho que, no mínimo, o Carlão descobriu
que, por questões de mercado, não vale
a pena mexer num filme. Se ele achar que deve, de todo
modo, o caso é outro.
DC: Mas se ganhou mil espectadores por causa de um pedaço
cortado, certamente não valeu a pena, porque
isso não interessa.
EV: Mas acho importante passar para o De Passagem.
RG: Acima de tudo, tem um dos maiores planos de cineasta,
de fato, desse novo cinema brasileiro. Tem vários
momentos bons, mas é um filme que evidentemente
não é um filme que funciona como um todo.
A relação entre os flash-backs e
a vida real não funciona a contento, acho que
todo mundo concorda com isso. Mas acho que a cena em
que o protagonista espera que uma porta se abra, para
que de fato ele consiga desvendar o mistério
do irmão, é uma cena de cineasta e é
um plano que só o cinema consegue, que não
tem literatura. Nessa medida, o Ricardo Elias nasce
como uma grande promessa, parcialmente já cumprida
no De Passagem.
EV: Eu acho que ele precisa conseguir resolver melhor
uma série de questões que estão
no roteiro, que do roteiro vão para a filmagem
e que da filmagem chegam na montagem, uma série
de pequenas coisinhas. É a coisa da manufatura,
mas eu acho que o olhar dele está estabelecido
no filme, é um olhar que nos interessa, que aponta
para uma série de questões interessantes,
de filmar e de olhar o mundo e tentar estruturar um
pensamento sobre o mundo. A partir do mundo talvez até
seja melhor. Mas é isso, é o detalhe,
é um acerto que ainda falta, e às vezes
você sentia que era por uma questão que
já estava no roteiro, às vezes você
sentia que era uma questão de filmagem, de alguns
atores que não funcionam como se gostaria, principalmente
nos personagens secundários. A intriga toda inicial,
por exemplo, na casa dele, funciona muito mal em decupagem
e em desempenho dos atores que só participam
daquela cena, principalmente o pai. A cena não
consegue te pegar como ele gostaria, claramente, pela
posição daquela cena no roteiro, no filme.
E eu em alguns momentos tive essa questão na
montagem, eu acho que a coisa dos flash-backs,
além de não funcionar, entrega o filme
a uma estrutura que ele se sente obrigado a repetir,
e que pelo menos a partir da segunda ida a essa estrutura
já não faz mais muito sentido, e passa
a ser quase burocrática nessa relação
de "agora a gente volta para lá, agora a gente
explica isso aqui com uma coisa de lá", e assim
vai.
LCOJr: Sendo que há uma concorrência desleal,
porque as cenas do presente são todas elas mais
bem-cuidadas e de mais interesse, são todas elas
mais interessantes e mais bem-filmadas, parece que ele
estava mais a fim de fazer aquilo ali.
EV: E os atores seguram muito mais. Mas eu acho que,
sem dúvida, é um filme de destaque nessa
leva, a meu ver.
LCOJr: No saldo final, é um dos filmes brasileiros
que eu destaco esse ano, é um filme com o qual
eu simpatizei de imediato. Enxergo vários problemas
de montagem, de decupagem, mas em compensação
é um filme que surge como uma promessa bacana
e que me pegou positivamente.
RG: Tudo acaba se resumindo no fato de que o filme tem
claramente um olhar. Quando a gente faz uma fissura
num ano com pouquíssimos sucessos estéticos
e muitos filmes que naufragaram completamente, a gente
vê que existe essa clivagem forte entre os filme
que têm um olhar e os filmes que não têm
ou que tentam fugir e dizer que esse um olhar é
"o" olhar. Acho que isso está muito claro, e
quando você vê um filme que tem um olhar,
mas que não consegue resolver a contento e até
o final esse olhar na tela, você se sente mais
movido a defender esse filme, mesmo com as suas falhas,
do que a defender um filme que basicamente fez tudo
que devia fazer para botar tudo no lugar certo, só
que esse 'lugar certo' no fim das contas é lugar
nenhum. Isso é a maioria: Como se Faz Um Filme
de Amor, por exemplo, ou Olga...
DC: Como se Faz Um Filme de Amor é um
dos mais problemáticos do ano.
EV: Tem uma coincidência interessante nessa história,
que é a origem comum do Ricardo Elias e do Paulo
Sacramento: eles são quase contemporâneos
da faculdade da ECA e realizaram ao longo dos anos 90
uma carreira de curtas-metragens muito forte. E aí
queria só problematizar uma questão, que
é a dificuldade que essa geração
está tendo de chegar ao longa-metragem. Você
tem aí estréias um tanto inesperadas,
porque dizer que o Ricardo Bocão estreou como
diretor de cinema antes do Eduardo Nunes em longa-metragem
é algo de um tanto peculiar.
RG: Ou Edgard Navarro...
EV - Para chegar mais atrás ainda... Mas esse
ano vai ter uma leva razoável, porque no prêmio
do BO do ano passado alguns curta-metragistas foram
premiados para estrear ou fazer o segundo filme, para
fazer um primeiro filme mais comercial, como no caso
do Belmonte, que já tinha o Subterrâneos,
que passou em festival mas não estreou em circuito,
mas o próprio Gustavo Acioly, o Cristian Saaghart,
o Bruno Vianna, são nomes que estão finalmente
realizando um longa depois de cinco ou seis curtas,
cada um deles de muita presença. E tem uma série
dos que ainda não realizaram, como o Camilo Cavalcante,
o Gustavo Spolidoro, Eduardo Nunes, uma galera grande
também. Mas é interessante porque, é
o que eu digo, independente de opções,
são olhares que já se formaram, porque
estão trabalhando há muito tempo formando
esse olhar. Essa é uma diferença que tem
que ser muito fortemente destacada, são olhares
que não se formaram agora. Ricardo Elias é
um estreante de cinema em 2004, mas ele é um
estreante em cinema em 1990. É uma nova geração,
mas é uma geração que batalhou
muito em cinema já. O mais estranho, que na verdade
não é estranho porque a gente sabe das
circunstâncias, mas o mais anormal é a
demora deles surgirem com esses olhares que estão
se formando há quinze anos.
DC: Para fechar esse tema, já que a gente está
chegando ao fim dos comentários sobre os filmes,
eu gostaria de notar que a gente fugiu de um assunto
que não nos interessou comentar aqui, mas sobre
o qual eu queria fazer um comentário antes do
fim. Mas antes queria notar que o Gilberto percebeu
um silêncio, sintomático, sobre um filme,
o Filme de Amor, do Bressane, que entrou na lista
dos dez mais da revista e também foi bem votado
pelos leitores, e não foi comentado.
RG: Acho que é mais porque o Bressane...
EV: É extemporâneo.
RG: É, mas ele ao mesmo tempo conseguiu armar
o seu nicho. Esse é um filme particularmente
feliz na trajetória recente, mas, ao mesmo tempo,
a gente vem desenvolvendo a nossa conversa por temas
e claramente o Bressane se adequa muito mais a certos
diretores que trabalham no curta-metragem com o cinema
experimental no Brasil do que ao que entra em cartaz.
Com a morte do Sganzerla, está cada vez mais
solitário nesse quesito de pensar o cinema, de
uma outra estruturação de imagens, nesse
filme sobretudo pela pintura.
DC: É um filme mais ambicioso, sob o aspecto
de feitura mesmo, de produção, do que
vários outros. As ambições podiam
ser muito grandes antes, como no caso de um São
Jerônimo, mas são ambições
que se limitavam às questões que o filme
estava trazendo, e nesse daí, exatamente, a questão
pictórica faz com que seja um filme mais caro,
de maior apuro.
RG: Não, a questão é que ele conseguiu
um produtor para fazer o filme dele. A questão
da mudança do patamar do filme, eu acho que se
deve basicamente ao Grupo Novo de Cinema ter querido
fazer um lançamento de uma produção
de um filme do Bressane, porque essa questão
da pintura, essa questão de trabalhar o cinema,
de trabalhar a imagem, isso está ao longo da
carreira dele.
DC: Eu tenho receio dos filmes do Bressane serem recebidos
de forma preguiçosa tanto a favor quanto contra.
Serem sempre aceitos como "mais um filme do Bressane",
portanto para alguns é bom, para outros é
ruim. E, para mim, isso é uma questão
que incomoda, porque eu gosto muito de alguns filmes
dele e desgosto muito de vários outros, e esse
eu não incluiria entre os sucessos, de maneira
nenhuma. Eu achei ele bastante confortável, até
demais, com esse papel de "discutir cinema", que já
tinha ficado melhor em vários filmes. A conversa
fica sempre no mais um filme de Bressane, em que ele
faz aquelas determinadas relações com
atores e montagem.
RG: Não é mais um filme de Bressane, mas
de uma certa forma ele é muito mais difícil
de discutir. Geralmente o filme pediria imagens que
a gente não pode colocar numa transcrição.
Agora, eu acho que o Bressane usa procedimentos diversos
que ele já usou, alguns ele utiliza de uma forma
nova, alguns ele usa de uma forma que a gente já
está acostumado. Agora, acima de tudo, eu vejo
no filme, como no São Jerônimo,
uma troca de ares profunda. Algo como retomar outros
temas, enfim, acho que no Dias de Nietzsche em Turim,
em alguma medida, ele repetia algumas coisas, como a
da literatura, da fala, algo que ele já tinha
feito com Machado de Assis ou com Oswald, e nesse, como
em São Jerônimo, acho que só
a relação com um outro fotógrafo
e a maneira de fazer uma nova produção
deram um gás que eu não estou acostumado
a ver, que eu só vejo de cinco em cinco anos
na carreira dele. E é nessa medida que eu acho
sim que é um ponto alto da filmografia recente
dele.
EV: E os outros filmes que a gente não mencionou
foi de propósito [risos].
GSJr: Alguns de propósito, outros não
foram falados porque a gente simplesmente não
teve a oportunidade de assistir! Não deu para
avaliar, nesses meandros de circuito, para gostar ou
não gostar, filmes como Samba Riachão.
DC: O Circo das Qualidades Humanas também
é o caso. Para fechar, como eu já falei,
queria comentar só uma coisa: que foi uma decisão
da gente não mencionar o "caso Ancinav" e toda
essa legislação, a questão de apoios
do Estado e mercado, que foram coisas que a gente discutiu
muito nos outros anos, mas dessa vez se decidiu que
agente não quer repisar em algo de que a gente
já falou bastante.
EV: Das outras vezes a gente não escreveu sobre
esses assuntos, mas a gente escreveu esse ano.
DC: Exatamente. Mas eu gostaria de dar os parabéns
para certos cineastas e ex-cineastas que – em meio à
atitude corajosa de atirar o respeito ético da
classe no lixo, na privada e dar a descarga junto com
tudo que estava lá – definem que existem no cinema
brasileiro aqueles que têm sucesso e aqueles que
são os fracassados, os que eternamente reclamam.
E eu fico muito feliz que haja aqueles que fazem sucesso,
dentre os quais eles se incluem gloriosamente, e vou
torcer para que neste ano e nos próximos eles
mostrem que fazem tanto sucesso que não precisam
da ajuda do governo, nem de qualquer incentivo fiscal
– seja através do apoio da Petrobrás,
que apóia via incentivos fiscais alguns nomes
tradicionais, e seja também dos nossos queridos
distribuidores norte-americanos, que dão dinheiro
para eles, que dêem dinheiro sem os incentivos
fiscais através do artigo 3 da Lei do Audiovisual.
Porque, afinal, eles fazem sucesso e irão certamente
recuperar todo o investimento na bilheteria, dado seu
imenso talento, que historicamente vêm comprovando.
E deixem o suporte do Estado para os ditos fracassados.
RG: Mas o talento deles, de certa forma, está
muito mais visível por trás das câmeras
do que nela, porque nela não se vê muito.
Mas isso faz a tristeza do cinema brasileiro e do Cinema
Falado, e eu prefiro ficar com a lembrança do
Eduardo, sobre novos realizadores que possivelmente
farão a felicidade do cinema brasileiro e dos
próximos Cinemas Falados, como o Gustavo Acioly,
Eduardo Nunes, Belmonte, entre outros... E que, enfim,
haja muitos filmes a se falar bem nos Cinemas Falados
dos próximos anos.
GS: Eu lembro, só para encerrar, que no ano passado
a gente encerrou pensando em possíveis filmes
num ano em que estaríamos otimistas. Alguns nem
estrearam, e é lamentável que a gente
tenha que dizer que a impressão que passou é
que, durante 2004, num determinado momento pareceu que
o cinema brasileiro estava com diarréia (risos)...
LCOJr: Eu termino só dizendo que espero que nosso
otimismo no final do ano passado, quando a gente pensou
que, a tirar pelos festivais, a gente ia ver um 2004
bem legal para o cinema brasileiro, eu espero que isso
tenha sido adiado para 2005.
Parte 1: Um
ano de documentários?
Parte 2: O documento
e o conceito. O documento não é o conceito.
Parte 3: Um passeio
pelo mercado.
Parte 4: O cinema como
parque temático.
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