CINEMA FALADO, PARTE 5
Garotas do ABC e os hábitos do olhar

RG: Talvez valha como valor de posição de um outro status internacional da figura dele, talvez seja por isso que ele tenha aceitado, ou talvez porque tinha coisas que lhe interessavam de fato, esteticamente, para trabalhar. Agora, a gente passou pelo olhar do público, pela expectativa de público e o que um filme significa em relação ao público, mas uma coisa decisiva esse ano me pareceu também, tanto em relação ao público em geral como ao público especializado, se dar nesse aspecto da imprensa e da crítica, sobretudo com relação ao filme do Carlão, Garotas do ABC, que foi recebido mesmo pelo público mais sofisticado, não só da crítica como de um típico espectador cinéfilo, como já se falou aqui, como se fosse um filme com más atuações e esquisito, quando ele nunca teve a idéia de ser um filme com atuações naturalistas. E o que me choca nessa opinião avalizada, de críticos, é o fato de que eles não sabem mais olhar para um filme que não tem interpretações naturalistas.

DC: Mas isso não são todos. Até no Globo o filme foi defendido.

RG: Não, a crítica falou mal dos atores, de uma forma banal.

DC: Mas outros críticos do jornal manifestaram no blog do Globo, que é publicado, legítimo, que gostaram do filme, e a questão das interpretações foi comentada como um problema em relação ao público, mas que para eles não era.

RG: Mas no blog vão umas cem pessoas, no Rio Show vão ler milhares.

GSJr: Mas, se não me falha a memória, mesmo assim o Garotas do ABC ganhou o bonequinho aplaudindo.

DC: O maior problema foi no Estado de São Paulo, onde o filme foi muito mal visto, de uma forma muito estúpida.

LCOJr: Mas eu acho que o Ruy queria tocar num ponto que é um vício crítico, um jargão que se chama "atuações convincentes".

RG: Que sempre existiu, na verdade...

LCOJr: Que sempre existiu, mas que atualmente se tornou o paradigma de qualidade de um elenco. Esse "convincente" entra nessa praia do naturalismo, de "você imaginaria ele falando assim na vida real?", e é uma besteira.

EV: O que eu acho que acontece, muito claramente, pra começar, é uma igualdade dessa faixa de críticos e jornalistas especializados a um determinado público, em que eles se igualam, se tornam a mesma pessoa, do que eu diria que o grande ideólogo é o Jaime Biaggio, no sentido de defender isso mesmo, abertamente.

DC: Mas na verdade isso começa nos anos 80, com Rogério Durst.

EV: Mas a definição do Jaime lá no blog é "um crítico de cinema que escreve como pessoa normal". Há uma primeira coisa que é essa idéia que tenta excluir toda tentativa de abrangência de certas questões, sejam cinematográficas ou sejam para além do cinema, algo como "cinema não é lugar para isso". Está muito claro no Jaime, mas está insidiosamente espalhado em quase todos os lugares. A segunda coisa que eu acho muito interessante é que, na verdade, tanto o público quanto esses jornalistas introjetaram uma coisa – que eles renegam hoje, por exemplo, quando sai um Olga, exatamente porque o Olga também não é naturalista, na verdade –, e o que eles introjetaram na escrita deles é uma linguagem televisiva. A linguagem televisiva está nessas figuras, e muito menos no Olga, que está muito mais perto de uma linguagem teatral e de uma certa dinâmica que é muito típica de certos produtos da Globo, como as minisséries, mas que não tem nada a ver com a linguagem de que eles falam. É uma linguagem puramente cinematográfica, que a televisão incorporou, mas veio do cinema.

DC: A coisa dos closes tem nos filmes do Sergio Leone.

EV: A verdadeira questão dessa "linguagem televisiva", que é a desse naturalismo banal, do naturalismo do plausível, em que determinou-se que aquilo é naturalista, quando na verdade não é, isso foi introjetado por todas essas figuras, e você percebe isso claramente nos textos. Então é engraçado ver que as mesmas figuras que vão se voltar contra uma determinada "linguagem televisiva" num filme que não tem tanto a ver com essa questão estão julgando todos os filmes baseados numa questão internalizada, de um "televisionalismo" desse naturalismo. Porque é um determinado naturalismo, já que há vários naturalismos.

DC: Mas aí passa pelo talento e pela disposição de pensar, porque a pessoa querer escrever sem utilizar termos rebuscados, para ser plenamente entendido, é a coisa mais simples. A questão é como o cara vai se colocar diante do mundo e diante de um filme a partir daí.

EV: O problema é que a idéia do "plausível" passa a ser o critério.

LCOJr: Nos filmes do Dogma há todo tipo de atuação canhestra, tosca, mas tem um tipo de linguagem, de trabalho de câmera, movimentação e tal, que sugere uma certa plausibilidade, um ultra-realismo de reportagem de situações que a crítica compra como um critério de naturalismo.

EV: Eu estava conversando com o Cléber lá em São Paulo, e há uma coisa que parece que está cada vez mais incrível de você ver: as pessoas não têm mais a generosidade de tentar entender o que o filme está fazendo, o que está falando.

DC: Qual é a intenção...

EV: Eles estão querendo julgar os trabalhos baseados nos critérios de qualidade deles, e não dos filmes. Não faz o menor sentido... Um outro caso em que eu li isso foi numa crítica do filme do Castellito, Não se Mova, onde se criticava que o filme "parece extremamente exagerado". Mas, oras, o filme é exagerado! Isso de saída é o pressuposto do cineasta.

LCOJr: E se o crítico não souber ver isso, ele não está ali no papel dele como crítico.

EV: Pois é. Você está lendo o filme a partir de quem, se não o diretor?

DC: Do tipo: "desse gênero de filme eu não gosto". Aí não dá para conversar.

EV: Aí é o fim. "Animação eu não vejo", "filme de terror eu não vejo", já de saída... É um pouco a folclorização da Bárbara Heliodora, que só gosta de um determinado tipo de peça, e é a crítica que avalia todas as peças para O Globo, e isso não faz o menor sentido. Tem gente até que faz a peça e, se a Bárbara Heliodora gostar, fica confuso, diz: "Pô, eu estava querendo fazer um negócio indo contra isso, ela foi e gostou, então eu devo ter errado, eu errei em algum lugar!".

RG: Mas uma coisa que eu estava querendo puxar, quando falei do filme do Carlão, é que se trata de um filme completamente ousado. Há uma ousadia com os atores, e é uma ousadia que não foi vista, não foi reparada por nenhum crítico. Um modo de dramatização, de concepção de cinema que é bastante anacrônico, no sentido de que não é feito hoje mais por ninguém, todo mundo abandonou o cultivo de uma mise-en-scène, o cultivo de um movimento de câmera querer significar alguma coisa, o cultivo de uma certa fala parecer completamente implausível porque ele quer reverenciar um outro cineasta ou porque quer falar de idéias. Por exemplo, na primeira cena de um almoço de uma das operárias com o cara do sindicato: situação que pertence ao cinema, pertence ao universo do cinema de criar isso, e criar mundos que não têm a ver com esse que está aí – e como isso é absolutamente rico e precisa ser defendido. Se a crítica tem um papel com o público, serve para fazer o sujeito se informar, é o que dá o salário para os jornalistas, tudo bem. Mas não é esse o papel que vai inserir os críticos na história da arte: o que vai fazer isso é defender os filmes mais difíceis. E é exatamente isso que é complicado: quando surge uma barreira difícil, é aí que o crítico deve aparecer e explicar por que isso está aqui e por que faz sentido que esteja.

GSJr: Uma das maiores críticas que eu ouvi, porque eu assisti ao filme do Carlão na cabine para os críticos, foi a seqüência do baile. Até pessoas que gostaram do filme se sentiram plenamente incomodadas pela seqüência do baile. E eu digo: aquilo não é um baile da periferia, não tem um baile assim, com um cara tocando, mas não é para ter mesmo! Aquele baile é do Carlão, pô! Aquilo é uma pura construção de um cinema livre, de um universo particular.

LCOJr: E é num momento como esse que você vê que os críticos não gostam mais de cinema. O Garotas do ABC, em termos de iluminação, cenografia, de toda a construção de ambiência, é feito com um apreço raro no cinema brasileiro.

DC: O mais forte pra mim, acima de tudo, é a relação com os personagens que o Carlão faz e que é cada vez mais forte no seu cinema. Ele já tentava trazer isso desde o início, desde o Lilian M, e ele intensifica muito isso nesse filme e no Bens Confiscados. A relação dele com os personagens é uma coisa cada vez mais forte, e nesse filme, especificamente, ele saiu de novo do mundo dele, saiu do mundo da classe média paulistana e foi lá conviver, quis conviver com elas pra pensar o filme e discutir as questões. O Ruy também falou isso comigo numa conversa: esse é um dos problemas, porque de certa maneira ele faz algo semelhante ao que faz O Prisioneiro, mas não tem esse "lastro social", em que o espectador "aprende algo", que O Prisioneiro tem. O que interessa ao Carlão é mostrar que na classe baixa existem dramas. E não é à toa que existem questões que não são apenas as de violência, existem questões familiares, amorosas, e tudo isso interessa ao filme. Por isso ele cria toda essa encenação.

GSJr: E dramaturgicamente é bem interessante a forma como a Aurélia soluciona o problema dela com o cara, porque você acha que vai ter um conflito, que ele vai dar porrada na Aurélia, um fim assim, e não dá, ela sai fora dali, se fecha ali naquele momento do baile, e acabou. Ela sai do universo do cara, que vai ser mal-resolvido por conta dele, via outros caminhos, com os neo-nazistas. Mas isso é muito interessante, essa quebra da expectativa de que você vai ter um confronto violento, melodramático, novelístico.

RG: Feito Como Nascem os Anjos, por exemplo...

EV: Eu acho que essa questão do personagem que você colocou é importante porque os escaninhos são por aí. O Ruy falou da coisa do cinema pelo cinema, mas acho que em alguns momentos o crítico ainda o permite: quando o autor diz na primeira cena: "Esse é um filme sobre esse assunto".

DC: Pode virar cult-movie...

EV: Aí é chique, você pode dizer que "o cara faz várias referências". O diferente disso não é aceito, e aí a gente pode colocar o caso do próprio Shyamalan e da recepção ao filme dele, até mais nos EUA do que fora de lá. Se você procurar uma fortuna crítica sobre o filme dele...

RG: É uma fortuna crítica completamente desafortunada.

EV: E o ponto é sempre esse: quando a questão é um filme que apresenta personagens, e se apresenta como um filme sobre personagens, aí você não pode aceitar essas coisas coexistindo. Se tem personagem e tem história, tem que ser naturalista, dentro do que se concebe hoje como naturalismo e plausível. Se tem qualquer outra coisa, é pretensioso, é a primeira palavra que jogam, e a segunda é essa da questão do não-crível. Se é pretensioso e não-crível, então está tudo resolvido. O Soderberg vai até brincar, na cena lá do Bruce Willis, em que diminui os filmes do Shyamalan, por exemplo, a saber se você descobriu antes ou não qual é o segredo do final. Se você descobriu antes, então o filme não serve para nada, não tem nenhum efeito. E é o que o Bruce Willis vai dizer, "se o filme fez seiscentos milhões tem algum motivo", e o motivo é que as pessoas se fascinam por aquele mundo cinematográfico, não importa se elas descobriram antes ou não, simplesmente fascina o olhar. Agora, esse fascínio, que é típico do cinema, não basta mais, pelo menos quando o filme é de personagens.

RG: Não é à toa a referência que o Daniel fez a O Prisioneiro, assim como a coisa de que o Júnior falou, com relação ao tema, claramente... É preciso lembrar que Garotas do ABC ganhou um prêmio pelo argumento [no Festival de Brasília]. E é o prêmio mais canhestro, o júri precisa voltar para a escola, sei lá, para o jardim de infância.

DC: Parece burrice ou má-fé mesmo.

RG: Porque, obviamente, quando um júri dá o prêmio de "argumento" ele parece acreditar que é muito importante que se fale das pessoas do ABC, mas não está disposto a encarar a vida dessas pessoas, com uma forma de mise-en-scène possível a partir da vida dessas pessoas, que não vá ratificar o que elas já sabem de antemão, ou seja, que essas pessoas são pobres, a vida é dura etc. As pessoas não podem ver uma vida amorosa como a de uma mulher que goste do Arnold Schwarzenegger, por exemplo. Já está errado, isso não pode ser um personagem, da mesma forma que não pode ter um personagem integralista.

DC: Ou uma vesga...

RG: Ou uma vesga, ou uma bêbada...

GSJr: Tem um personagem interessante, até por ele o Carlão mostra um carinho, que é um personagem que aparece na terceira seqüência, quando a Aurélia vai pegar o ônibus: um tarado que fica importunando as moças no ponto. Esse personagem volta no final do filme como uma figura do baile, e perfeitamente integrada naquele contexto.

LCOJr: Existe um desconforto notável das pessoas, tanto do meio da crítica como do público em geral, em relação a estar diante de um filme que pega o ABC paulista – com luta sindical, neo-nazismo, ódio aos nordestinos, toda aquela região industrial de São Paulo – e que entra nas casas das classes baixas para tentar acompanhar como é a situação cotidiana com uma mise-en-scène que remete a um certo tipo de cinema que as pessoas não estão acostumadas a ver. O sujeito acha que, numa situação dessas, uma vez que os temas são sérios, ele tem que ver aquele filminho "contido", em que a câmera não se move, em que não existe uma preocupação virtuosística que escapa a um campo de referências "seguro".

DC: Espera-se o contrário, algo mais próximo de Cidade de Deus.

EV: É a coisa das referências mesmo. O Carlão vai inserir a soul music como uma referência importante e essencial para o filme. Trata-se de uma série de questões que escapam à simples socialização do espaço.

LCOJr: Ele está fazendo uma coisa de que, na verdade, todo mundo vive reclamando a ausência, que é a de tratar os personagens como pessoas mesmo, abertos a todo tipo de vontade, todo tipo de hobby.

EV: E com um carinho enorme. O problema é a ausência de culpa...

RG: Mas é essa a figura do Carlão completa, essa figura que ele herda de um determinado melodrama, que é zurliniano numa medida, acho que mais do que sirkiano, de dar a certa medida de cada personagem, de não haver vilões. Mesmo quando um sujeito é um canalha, a Betty Faria vai falar "Ah, mas era um ótimo amante, tratava as mulheres a pão-de-ló...", isso no Bens Confiscados.

GSJr: Ou a figura do tarado, como eu acabei de falar.

LCOJr: E o professor, o líder sindical, você simpatiza com ele.

RG: O que eu acho que existe de curioso, por exemplo, se você pegar Garotas do ABC e contrapor a Contra Todos, é um profundo ódio à ficção. Porque a ficção, na verdade, serve para criar outros mundos, mas ela é vista como servindo para ratificar o seu próprio, ou para as expectativas que você já tem.

DC : A ficção para ser aceita tem que ser naturalista.

RG: Contra Todos não tem ficção, acontece tudo aquilo que você espera de cada personagem.

GS: E sabe um oposto? A coisa canalha que me incomoda no Contra Todos é que ele faz uma coisa contrária ao que o Carlão faz. Você pegar, naquele universo da periferia, as pessoas levando uma vida alegre, com emoções e sentimentos, é o oposto daquela coisa que o Contra Todos faz, de resumir o ódio e botar todos os males do mundo dentro de uma mesma família, num excesso de dramatização absurdo.

RG: O filme se baseia na lógica de que, se uma merda pode acontecer, ela vai acontecer.

DC: Desde que seja intencional, desde que dependa da maldade das pessoas.

RG: E o roteiro do filme é sobre as relações de merda que se desenvolvem entre cada um dos personagens. É um roteiro que pode se resumir a um diagrama entre cada um e a merda que vai ocorrer.

DC: Em que cada um vai querer sacanear o outro.

RG: E o curioso é que, se você tem, como no filme do Carlão, personagens de ficção, personagens que não têm uma cara só, que têm mais do que uma bidimensionalidade, você pode fazer um filme. Mas, se você não tem, como é que evolui a narrativa? Ela evolui por twists, por viradas de roteiro, do que Contra Todos está cheio, como naquele final horripilante, em que se descobre que foi o amigo do sujeito que matou, quando se esperava outra coisa. Como pode se desenvolver? Só pode se desenvolver por essas viradas espertas, esses jogos virtuosos com o espectador, e não mais com a vida.

EV: E tem mais uma coisa em cuja tecla é importante bater para ficar registrado, para não parecer, como o Gilberto colocou, que a gente quer que as pessoas olhem para a vida azulzinha e não para a vida triste. A gente não cansa de citar o exemplo dos Dardenne, em que a vida dos personagens é muito dura, mas isso não impede que a câmera esteja interessada por aquelas pessoas com generosidade para entender quais são as complexidades da vida dura das pessoas. Não é dizer que a vida é boa, e as pessoas, na dificuldade, elas sobrevivem porque têm coisas agradáveis na sua vida, de jeito nenhum, a questão é outra.

GSJr: O filme do Carlão não se limita a isso.

DC: E podem agir pessimamente, mas isso não vai tornar o olhar negativo.

RG: E nem é o suposto carinho pelos personagens que vai ser decisivo no Carlão e vai faltar ao Roberto Moreira e vai dar a dimensão dos filmes. É a abertura para um mundo, que é o mundo da ficção, que um tem e o outro não tem, definitivamente.

EV: Eu acho que carinho significa isso, inclusive porque tem uma outra questão: o Roberto Moreira afirma como é o mundo, e o Carlão intui o mundo que ele vê. Isso é essencial na criação e no criador, porque o Roberto Moreira está sempre explicando para a gente. A recepção do filme por quem gostou e por quem não gostou passa por isso, sobretudo por quem gostou – ele "revela um mundo para a gente, revela uma realidade". Então está falando de uma realidade: "a vida é assim". O Carlão não tem esse tipo de pretensão, a realidade são muitas, e, partindo de que são muitas, essa é a versão que me interessa nessa realidade aqui. Que não é uma realidade, é uma transposição, uma transfiguração da realidade via a figura do criador. Se não for assim, é desonesto. A questão do Contra Todos é essa, em última instância é desonesto com o mundo, porque tenta enfrentar o mundo com uma realidade que é só uma.

DC: É parte de uma tese, literalmente.

EV: Esse é o filme que mais literalmente partiu de uma tese em todos os tempos: o roteiro era anexo de uma tese de doutorado.

RG: Falando então do registro de periferia de São Paulo, a gente tem que falar do De Passagem, que é um filme que também sofreu.

DC: Antes disso, sobre o filme do Carlão, há algumas questões que eu acho que a gente pode ver nessa relação que ele estabeleceu com o público e com o filme que são problemáticas. Não só pelo ponto de vista de mostrar o que ao público atual do cinema brasileiro não interessa, mas também por uma relação com esse público e esse mercado que, bem, é muito estranho a gente falar de um filme partindo do que se ouviu falar e do que se publicou sobre ele, mas, sendo um início de série, naturalmente ele já sofre por querer lançar várias histórias e vários personagens e não querer encaminhar todos os conflitos, que vão ser resolvidos em outros episódios. Isso cria um problema para o público e acho normal. Mas também acho problemático o fato de, tendo gostado do filme, sentir falta de mais algumas coisas que pareciam ser enxugadas, pareciam ser apressadas, e nisso eu acho muito sintomático ter sido dito que o filme teria duas horas e meia e ter sido cortado para ter menos de duas horas. Acho que isso é uma relação com o mercado que é problemática.

RG: Eu não sei, eu acho que tudo que precisa estar lá está na tela, acho que como filme ele se fez, como filme fechado em si ele funciona, e não precisa de mais nada, ele existe.

DC: Existe, mas às vezes eu sinto que ele manca nuns momentos, certos conflitos têm um tempo apressado, parece que havia mais idéias do que tem lá.

GSJr: Mas, por ser um início de série, ele não fecha, nem pretende. Aquele personagem, por exemplo, do chefe das operárias com o líder sindical é uma bola que ele levanta e nem pretende fechar. Dentro do filme está bem resolvida, mas a gente sabe que ainda pode render bem. Ou mesmo a outra que tem um relacionamento sadomasoquista com o chefe – tem até a cena em que só aparece a mão do Carlão.

EV: Mas também tem uma coisa aí que é o seguinte: a gente saber que é o primeiro de uma série não invalida uma série de questões que estão no filme. Porque eu acho que tem uma coisa de construções de universos do Carlão, que se você parar e for olhar outros filmes dele, vai achar um monte desses pontos soltos, porque não eram o foco do filme, mas o Carlão gosta desse tipo de coisa.

GSJr: Alma Corsária tem isso aos montes.

DC: Isso não me incomoda, acho bom. O que me incomoda é que, para apresentar todos esses universos, o filme limita muito aquilo que seria a intriga principal. Acho que a relação da Aurélia com o namorado sai limitada nisso, praticamente não há cenas entre os dois, fica uma coisa mais falada do que vista, mais mencionada e que se resolve sem se resolver.

RG: E aí tem a única cena que eu realmente acho fraca, que é a quando ela sai do carro.

DC: A da briga dos dois, exatamente, ficou me parecendo que aquilo era pra se desenvolver mais, eu senti falta de algo. Poderia ter aquele resultado, mas dramaticamente parece que ficou apressado. E aí fica aquela coisa terrível de saber, de ouvir falar, mais do que o filme tem, de saber que era pro filme ser mais longo e foi enxugado. O próprio Carlão disse que achava que ficava melhor enxuto, mas tem sempre essa coisa de "mercado", então fica essa sensação de o filme parecer sacrificado.

EV: Acho que, no mínimo, o Carlão descobriu que, por questões de mercado, não vale a pena mexer num filme. Se ele achar que deve, de todo modo, o caso é outro.

DC: Mas se ganhou mil espectadores por causa de um pedaço cortado, certamente não valeu a pena, porque isso não interessa.

EV: Mas acho importante passar para o De Passagem.

RG: Acima de tudo, tem um dos maiores planos de cineasta, de fato, desse novo cinema brasileiro. Tem vários momentos bons, mas é um filme que evidentemente não é um filme que funciona como um todo. A relação entre os flash-backs e a vida real não funciona a contento, acho que todo mundo concorda com isso. Mas acho que a cena em que o protagonista espera que uma porta se abra, para que de fato ele consiga desvendar o mistério do irmão, é uma cena de cineasta e é um plano que só o cinema consegue, que não tem literatura. Nessa medida, o Ricardo Elias nasce como uma grande promessa, parcialmente já cumprida no De Passagem.

EV: Eu acho que ele precisa conseguir resolver melhor uma série de questões que estão no roteiro, que do roteiro vão para a filmagem e que da filmagem chegam na montagem, uma série de pequenas coisinhas. É a coisa da manufatura, mas eu acho que o olhar dele está estabelecido no filme, é um olhar que nos interessa, que aponta para uma série de questões interessantes, de filmar e de olhar o mundo e tentar estruturar um pensamento sobre o mundo. A partir do mundo talvez até seja melhor. Mas é isso, é o detalhe, é um acerto que ainda falta, e às vezes você sentia que era por uma questão que já estava no roteiro, às vezes você sentia que era uma questão de filmagem, de alguns atores que não funcionam como se gostaria, principalmente nos personagens secundários. A intriga toda inicial, por exemplo, na casa dele, funciona muito mal em decupagem e em desempenho dos atores que só participam daquela cena, principalmente o pai. A cena não consegue te pegar como ele gostaria, claramente, pela posição daquela cena no roteiro, no filme. E eu em alguns momentos tive essa questão na montagem, eu acho que a coisa dos flash-backs, além de não funcionar, entrega o filme a uma estrutura que ele se sente obrigado a repetir, e que pelo menos a partir da segunda ida a essa estrutura já não faz mais muito sentido, e passa a ser quase burocrática nessa relação de "agora a gente volta para lá, agora a gente explica isso aqui com uma coisa de lá", e assim vai.

LCOJr: Sendo que há uma concorrência desleal, porque as cenas do presente são todas elas mais bem-cuidadas e de mais interesse, são todas elas mais interessantes e mais bem-filmadas, parece que ele estava mais a fim de fazer aquilo ali.

EV: E os atores seguram muito mais. Mas eu acho que, sem dúvida, é um filme de destaque nessa leva, a meu ver.

LCOJr: No saldo final, é um dos filmes brasileiros que eu destaco esse ano, é um filme com o qual eu simpatizei de imediato. Enxergo vários problemas de montagem, de decupagem, mas em compensação é um filme que surge como uma promessa bacana e que me pegou positivamente.

RG: Tudo acaba se resumindo no fato de que o filme tem claramente um olhar. Quando a gente faz uma fissura num ano com pouquíssimos sucessos estéticos e muitos filmes que naufragaram completamente, a gente vê que existe essa clivagem forte entre os filme que têm um olhar e os filmes que não têm ou que tentam fugir e dizer que esse um olhar é "o" olhar. Acho que isso está muito claro, e quando você vê um filme que tem um olhar, mas que não consegue resolver a contento e até o final esse olhar na tela, você se sente mais movido a defender esse filme, mesmo com as suas falhas, do que a defender um filme que basicamente fez tudo que devia fazer para botar tudo no lugar certo, só que esse 'lugar certo' no fim das contas é lugar nenhum. Isso é a maioria: Como se Faz Um Filme de Amor, por exemplo, ou Olga...

DC: Como se Faz Um Filme de Amor é um dos mais problemáticos do ano.

EV: Tem uma coincidência interessante nessa história, que é a origem comum do Ricardo Elias e do Paulo Sacramento: eles são quase contemporâneos da faculdade da ECA e realizaram ao longo dos anos 90 uma carreira de curtas-metragens muito forte. E aí queria só problematizar uma questão, que é a dificuldade que essa geração está tendo de chegar ao longa-metragem. Você tem aí estréias um tanto inesperadas, porque dizer que o Ricardo Bocão estreou como diretor de cinema antes do Eduardo Nunes em longa-metragem é algo de um tanto peculiar.

RG: Ou Edgard Navarro...

EV - Para chegar mais atrás ainda... Mas esse ano vai ter uma leva razoável, porque no prêmio do BO do ano passado alguns curta-metragistas foram premiados para estrear ou fazer o segundo filme, para fazer um primeiro filme mais comercial, como no caso do Belmonte, que já tinha o Subterrâneos, que passou em festival mas não estreou em circuito, mas o próprio Gustavo Acioly, o Cristian Saaghart, o Bruno Vianna, são nomes que estão finalmente realizando um longa depois de cinco ou seis curtas, cada um deles de muita presença. E tem uma série dos que ainda não realizaram, como o Camilo Cavalcante, o Gustavo Spolidoro, Eduardo Nunes, uma galera grande também. Mas é interessante porque, é o que eu digo, independente de opções, são olhares que já se formaram, porque estão trabalhando há muito tempo formando esse olhar. Essa é uma diferença que tem que ser muito fortemente destacada, são olhares que não se formaram agora. Ricardo Elias é um estreante de cinema em 2004, mas ele é um estreante em cinema em 1990. É uma nova geração, mas é uma geração que batalhou muito em cinema já. O mais estranho, que na verdade não é estranho porque a gente sabe das circunstâncias, mas o mais anormal é a demora deles surgirem com esses olhares que estão se formando há quinze anos.

DC: Para fechar esse tema, já que a gente está chegando ao fim dos comentários sobre os filmes, eu gostaria de notar que a gente fugiu de um assunto que não nos interessou comentar aqui, mas sobre o qual eu queria fazer um comentário antes do fim. Mas antes queria notar que o Gilberto percebeu um silêncio, sintomático, sobre um filme, o Filme de Amor, do Bressane, que entrou na lista dos dez mais da revista e também foi bem votado pelos leitores, e não foi comentado.

RG: Acho que é mais porque o Bressane...

EV: É extemporâneo.

RG: É, mas ele ao mesmo tempo conseguiu armar o seu nicho. Esse é um filme particularmente feliz na trajetória recente, mas, ao mesmo tempo, a gente vem desenvolvendo a nossa conversa por temas e claramente o Bressane se adequa muito mais a certos diretores que trabalham no curta-metragem com o cinema experimental no Brasil do que ao que entra em cartaz. Com a morte do Sganzerla, está cada vez mais solitário nesse quesito de pensar o cinema, de uma outra estruturação de imagens, nesse filme sobretudo pela pintura.

DC: É um filme mais ambicioso, sob o aspecto de feitura mesmo, de produção, do que vários outros. As ambições podiam ser muito grandes antes, como no caso de um São Jerônimo, mas são ambições que se limitavam às questões que o filme estava trazendo, e nesse daí, exatamente, a questão pictórica faz com que seja um filme mais caro, de maior apuro.

RG: Não, a questão é que ele conseguiu um produtor para fazer o filme dele. A questão da mudança do patamar do filme, eu acho que se deve basicamente ao Grupo Novo de Cinema ter querido fazer um lançamento de uma produção de um filme do Bressane, porque essa questão da pintura, essa questão de trabalhar o cinema, de trabalhar a imagem, isso está ao longo da carreira dele.

DC: Eu tenho receio dos filmes do Bressane serem recebidos de forma preguiçosa tanto a favor quanto contra. Serem sempre aceitos como "mais um filme do Bressane", portanto para alguns é bom, para outros é ruim. E, para mim, isso é uma questão que incomoda, porque eu gosto muito de alguns filmes dele e desgosto muito de vários outros, e esse eu não incluiria entre os sucessos, de maneira nenhuma. Eu achei ele bastante confortável, até demais, com esse papel de "discutir cinema", que já tinha ficado melhor em vários filmes. A conversa fica sempre no mais um filme de Bressane, em que ele faz aquelas determinadas relações com atores e montagem.

RG: Não é mais um filme de Bressane, mas de uma certa forma ele é muito mais difícil de discutir. Geralmente o filme pediria imagens que a gente não pode colocar numa transcrição. Agora, eu acho que o Bressane usa procedimentos diversos que ele já usou, alguns ele utiliza de uma forma nova, alguns ele usa de uma forma que a gente já está acostumado. Agora, acima de tudo, eu vejo no filme, como no São Jerônimo, uma troca de ares profunda. Algo como retomar outros temas, enfim, acho que no Dias de Nietzsche em Turim, em alguma medida, ele repetia algumas coisas, como a da literatura, da fala, algo que ele já tinha feito com Machado de Assis ou com Oswald, e nesse, como em São Jerônimo, acho que só a relação com um outro fotógrafo e a maneira de fazer uma nova produção deram um gás que eu não estou acostumado a ver, que eu só vejo de cinco em cinco anos na carreira dele. E é nessa medida que eu acho sim que é um ponto alto da filmografia recente dele.

EV: E os outros filmes que a gente não mencionou foi de propósito [risos].

GSJr: Alguns de propósito, outros não foram falados porque a gente simplesmente não teve a oportunidade de assistir! Não deu para avaliar, nesses meandros de circuito, para gostar ou não gostar, filmes como Samba Riachão.

DC: O Circo das Qualidades Humanas também é o caso. Para fechar, como eu já falei, queria comentar só uma coisa: que foi uma decisão da gente não mencionar o "caso Ancinav" e toda essa legislação, a questão de apoios do Estado e mercado, que foram coisas que a gente discutiu muito nos outros anos, mas dessa vez se decidiu que agente não quer repisar em algo de que a gente já falou bastante.

EV: Das outras vezes a gente não escreveu sobre esses assuntos, mas a gente escreveu esse ano.

DC: Exatamente. Mas eu gostaria de dar os parabéns para certos cineastas e ex-cineastas que – em meio à atitude corajosa de atirar o respeito ético da classe no lixo, na privada e dar a descarga junto com tudo que estava lá – definem que existem no cinema brasileiro aqueles que têm sucesso e aqueles que são os fracassados, os que eternamente reclamam. E eu fico muito feliz que haja aqueles que fazem sucesso, dentre os quais eles se incluem gloriosamente, e vou torcer para que neste ano e nos próximos eles mostrem que fazem tanto sucesso que não precisam da ajuda do governo, nem de qualquer incentivo fiscal – seja através do apoio da Petrobrás, que apóia via incentivos fiscais alguns nomes tradicionais, e seja também dos nossos queridos distribuidores norte-americanos, que dão dinheiro para eles, que dêem dinheiro sem os incentivos fiscais através do artigo 3 da Lei do Audiovisual. Porque, afinal, eles fazem sucesso e irão certamente recuperar todo o investimento na bilheteria, dado seu imenso talento, que historicamente vêm comprovando. E deixem o suporte do Estado para os ditos fracassados.

RG: Mas o talento deles, de certa forma, está muito mais visível por trás das câmeras do que nela, porque nela não se vê muito. Mas isso faz a tristeza do cinema brasileiro e do Cinema Falado, e eu prefiro ficar com a lembrança do Eduardo, sobre novos realizadores que possivelmente farão a felicidade do cinema brasileiro e dos próximos Cinemas Falados, como o Gustavo Acioly, Eduardo Nunes, Belmonte, entre outros... E que, enfim, haja muitos filmes a se falar bem nos Cinemas Falados dos próximos anos.

GS: Eu lembro, só para encerrar, que no ano passado a gente encerrou pensando em possíveis filmes num ano em que estaríamos otimistas. Alguns nem estrearam, e é lamentável que a gente tenha que dizer que a impressão que passou é que, durante 2004, num determinado momento pareceu que o cinema brasileiro estava com diarréia (risos)...

LCOJr: Eu termino só dizendo que espero que nosso otimismo no final do ano passado, quando a gente pensou que, a tirar pelos festivais, a gente ia ver um 2004 bem legal para o cinema brasileiro, eu espero que isso tenha sido adiado para 2005.

Parte 1: Um ano de documentários?

Parte 2: O documento e o conceito. O documento não é o conceito.

Parte 3: Um passeio pelo mercado.

Parte 4: O cinema como parque temático.