RG:
Se você parar para pensar, até os filmes
de que a gente gosta menos, ou de que não gosta,
são documentários que não são
feitos by the book. À exceção
do Entreatos, que é em certa medida emulado
com um pé no cinema direto de eleição,
os filmes do Robert Drew, e tem o ritmo todo pautado
nos filmes com os Beatles do Richard Lester mas como
uma ausência estruturante, porque isso dificilmente
teria passado pela cabeça do João Moreira
Salles. Mas eu acho curioso que um filme como Justiça,
ou Fala Tu, diferente de Evandro Teixeira,
que eu acho um bom filme, seja feito by the book.
Existe uma fórmula certa de documentário.
Todos eles estão lidando em alguma medida com
um terreno experimental de filmagem, de o que filmar,
de como filmar, mas existe claramente uma linha de separação,
que é feita não só na filmagem,
mas principalmente na montagem, que é o conceito.
O Prisioneiro da Grade de Ferro é um filme
que tem conceito, Raízes do Brasil idem.
E que não vão além desse conceito.
DC: Mas esse conceito não surge antes da filmagem.
RG: Ele se encontra ou não se encontra, ele tem
de aparecer de alguma forma no momento em que o filme
está sendo feito.
GSJr: Fábio Fabuloso tem esse conceito,
até de forma despretensiosa, mas tem um conceito
fechado. Apesar de eu não ser fã do filme,
reconheço que ele consegue atingir aquilo a que
se propõe, ao contrário do Fala Tu,
em que você não sabe ao que o filme está
se propondo, justamente por não ter um conceito.
Eduardo Valente: Fábio Fabuloso poderia
ter um pouquinho menos do jegue teimoso. O filme é
mais esperto que a sua própria esperteza.
LCOJr: O filme é simpático, mas de vez
em quando exagera nas suas figuras de bobeira.
DC: Mas tem um retrato carinhoso lá. Eu acho
que essa relação da câmera com eles
é legal porque de certa maneira acaba não
sendo um documentarista chegando: é antes a galera.
Eles estão se mostrando para a câmera,
mas é um filme de galera.
LCOJr: As melhores partes do filme são aquelas
que mostram a idéia da galera do surf como uma
grande família. Tem até aquele garoto
que era fã do Fábio e acaba sendo meio
que adotado por ele.
DC: A relação de admiração
pelo Fábio é legal, é mais bem
construída do que nos outros.
LCOJr: Os depoimentos dos surfistas profissionais são
excelentes, você vê lá o Kelly Slater
falando dele.
DC: E eles estão sempre brincando.
EV: Pois é, mas o problema é justamente
que o cara não confia que esse material é
interessante por si mesmo e quer fazer brincadeirinha
em cima, para o filme "ter ritmo, ter graça".
Como se aquilo já não tivesse graça
e ritmo. Todas as escorregadas que o filme dá
são aí.
LCOJr: Tem um sacrilégio que são cenas
de surf em que o cara está pegando a onda da
vida dele e o filme acelera a imagem, faz ela ficar
indo e voltando. Isso realmente destrói a cena
por completo. Aliás, o filme tem uma "esperteza"
de montagem que foi o que mais me incomodou.
EV: Não, o que mais me incomodou foi o primeiro
filme com letterbox da história do cinema.
LCOJr: É verdade. Vou falar da segunda coisa
que mais me incomodou. A primeira foi mesmo o filme
possuir letterbox, coisa muito esquisita, não
dá para entender aquilo. E faz parte do filme,
porque todas as legendas estão ali na parte preta
de baixo. A segunda coisa que mais me incomodou, então,
foram aqueles offzinhos lá do jegue, aqueles
baiões, aquelas mal engendradas derivações
de literatura de cordel.
GSJr: Isso a gente pode chamar de "Ilha das Floresices"
do filme.
LCOJr: Sabe o que me lembrou muito mais do que Ilha
das Flores? O Esporte Espetacular nos seus piores
momentos, lá na época do Fernando Vanucci
e da Milena Ceribelli, quando eles se vestiam de caipira
e ficavam tentando forçar um sotaque, contar
uma historinha engraçadinha para falar de esporte.
Me lembrou muito. Mas o filme é simpático,
só a idéia de fazer um filme com o Fábio
Gouveia já valeu a pena.
EV: Nessa questão da veracidade etc e tal, por
mais que a gente dê volta em torno dela, não
há como não chegar no Coutinho, que é
onde eu acho que a coisa se configura de uma forma mais
complicada. Ele sempre teve essa questão do momento,
e de que ali não tem uma verdade, tem a interação
entre ele e o personagem naquele momento específico
e o que sai disso. Mas em Peões, especificamente,
há o interesse com uma história fixa e
coletiva que, por exemplo, não tinha no Babilônia
2000, não tinha em nenhum dos filmes recentes
dele, em que havia uma realidade muito específica
e que se auto-sustentava, sem precisar remeter a alguma
coisa que forma uma certa memória coletiva não
só do grupo que está sendo entrevistado,
mas também do país. Ou seja, você
mistura não só a questão da memória
como a questão da história. E a história
está na tela do filme, também à
diferença dos outros filmes recentes do Coutinho,
através das cenas dos filmes dos anos 70, através
das fotografias, das imagens de tv. E tem dois momentos
bonitos: primeiro a busca dos personagens, porque o
filme tem uma grandeza em conseguir mais uma vez,
como o Coutinho sempre faz botar suas tripas de fora,
o seu formato de realização ser junto
com o próprio filme e os dois virarem um só,
o que eu acho que é sempre uma das grandes sacadas
de que um documentarista pode lançar mão
para demonstrar, ao mesmo tempo, os limites e a grandeza
da sua missão. A segunda coisa é o fato
de que cada personagem ali inegavelmente interpreta
um personagem e uma lembrança de país
que está sendo construída por conta de
ter aquele companheiro em evidência. Se esse filme
fosse feito dez anos antes ou se o Lula não tivesse
feito carreira, não tivesse concorrendo à
presidência, certamente as entrevistas todas teriam
um outro peso, as lembranças seriam feitas de
forma completamente diferente. Então há
essa mitologia, porque é um grande filme de mitologia,
e por isso é uma idéia muito boa a apresentação
conjunta com Entreatos, porque compõe
essa idéia de mitologia de uma forma muito rica.
E talvez o Lula onipresente seja uma das coisas mais
bonitas do filme, também. O Lula está
sempre nos discursos das pessoas e sempre naquelas imagens.
O Coutinho sacou muito bem, não sei o quanto
aquilo já estava na forma do filme pensado, mas
acho que ele meio que descobriu que aquelas imagens
são essenciais pro filme, as imagens dos filmes
diretos, que ele podia retirar, num primeiro momento,
mas que de acordo com o conceito se torna importante,
pela dialética constante entre o discurso micro
daquelas pessoas e as imagens quase que automaticamente
épicas de tudo aquilo, seja dos palanques ou,
principalmente, daquela preparação do
Lula quando ele está indo para um dos comícios
maiores. Ali está bem resolvida essa questão
de que a gente não precisa se preocupar com a
veracidade ou mesmo com a sensação de
real, mas acima de tudo com a capacidade do documentarista
mesclar o que é o seu processo de apreensão
de um tema e o que está na frente da câmera
dele, e dessa dialética tirar o filme. No caso
do Coutinho, como no caso do Sacramento, a gente percebe
isso se mesclando de uma forma precisa. Em vários
outros filmes o que acontece é uma completa dissociação
entre objetivos, imagens e junção de imagens,
construção de significados pela montagem
que é onde boa parte do roteiro de um documentário
se dá, na melhor das hipóteses e a coisa
simplesmente se perde. A gente falou bastante do Justiça,
mas a cena que mais me choca ninguém ainda comentou,
que é aquela do jantar na casa da defensora pública.
É uma cena não só obviamente encenada,
o que seria o menor dos problemas, mas que fica problemática
num filme que tenta construir toda sua especificidade,
tenta se legitimar pela sua utilização
de um certo cinema direto à Frederick Wiseman.
RG: Acho que a figura do filme é menos o cinema
direto do que o Johan van der Keuken que é um
documentarista holandês, lá de onde a Maria
Augusta Ramos é formada, e que lida com encenações
mesmo.
EV: Sim, mas o complicado daquela cena é que
o filme tem, no meio do seu discurso, todo um orgulho
de não usar entrevistas, e aquela cena é
uma entrevista. Disfarçar uma cena para que ela
caiba no seu discurso, quando claramente ela está
ferindo o seu conceito, tentar dar uma passada de perna
no espectador e dizer que não usou um determinado
recurso, quando na verdade o está usando disfarçado,
aí a coisa fica meio complicada, porque entra
na honestidade. E tem uma coisa de O Prisioneiro
que precisa ser mencionada que é uma questão
essencial no documentário, até no National
Geographic, que é o ineditismo de uma imagem.
No manancial de imagens que a gente tem hoje jogadas
principalmente pelo jornalismo, achar ainda uma imagem
inédita é uma coisa muito difícil.
E aquela seqüência da "noite de um detento",
se já não tivesse perfeitamente inserida
no conceito, se não tivesse uma série
de outros momentos impressionantes, aquilo ali seria
uma validação por si mesmo, porque ninguém
nunca tinha visto. É de uma força inacreditável
pelo inédito.
LCOJr: E não é uma epifania rosselliniana,
é diferente. Não é também
uma coisa do Kiarostami, de no meio de um plano a que
Jonathan Rosenbaum gosta de chamar "long cosmic
shot" (plano-seqüência cósmico),
termos uma imagem que parece feita por alguém
que nunca foi ao cinema, uma imagem anterior à
história do cinema, de quem ainda está
descobrindo o mundo através daquele dispositivo
do cinema, aquela coisa mágica. Ali em O Prisioneiro
eu vejo também uma coisa mágica, mas para
a qual não sei ainda achar uma definição,
é totalmente diferente de todo o resto. Mas é
também como se ali você estivesse descobrindo
uma imagem de uma forma que nem o cinema ainda sabia
como fazer para descobrir. Aquele tempo de espera até
que aquilo aconteça é um tempo de espera
totalmente próprio, totalmente do filme. Tanto
é que aquela cena não à toa é
montada como uma espécie de clímax mesmo.
Não é nem clímax, é o presente
que o filme dá para quem está assistindo.
EV: Tem a cartela: "Noite de um detento".
LCOJr: Tem cartela, mas quando vêm o fogos de
artifício é como se fosse um presente
mesmo.
RG: Voltando um pouco ao Peões e à
questão de tradição de história
e de relato, é curioso que se fale que o Coutinho
a cada filme faz o mesmo filme quando me parece que,
mesmo nos filmes que se parecem demais uns com os outros,
como no caso do Babilônia 2000 como uma
espécie de spin off do Santo Forte,
ele está na verdade testando a possibilidade
daquele método como se fosse a primeira vez em
que o utilizasse. Isso fica mais claro em Peões
porque ele joga aquele método para retirar
o que tem, mas não se baseia no método
comum. E as entrevistas não têm a mesma
função, não exercem o mesmo papel.
O filme tem uma ausência estruturante, que é
a figura do Lula na presidência, hoje, e a figura
do Lula que não está presente a não
ser em imagens ou no relato de seus colegas. Ele está
lá o tempo inteiro e não está.
DC: É o que o Eduardo falou da mitificação.
De certa maneira você constrói a figura
do Lula imaginariamente.
RG: Se você pensar em Edificio Master e
Santo Forte, são filmes completamente
horizontais do ponto de vista histórico, tentam
dar conta de um hoje que curiosamente não é
o Peões. Entreatos tenta muito
mais dar conta de um hoje, de um diário do que
é o ano de 2002 do que Peões, que
tenta e nesse sentido eu o acho muito parecido com
Cabra Marcado para Morrer entender o que aconteceu
num período de vinte anos.
LCOJr: Entreatos me passa muito a idéia
de um filme que se quer como simplesmente o filme que
estava no lugar certo na hora certa. Parece um filme
do privilégio de quem pôde estar ali durante
a campanha do Lula.
RG: É o lado do cinema direto, que é quase
uma figura jornalística que nos irmãos
Mason existiu completamente: o grande documentarismo
é o melhor jornalismo, não o jornalismo
cotidiano, mas um grande jornalismo como testemunha
das mudanças históricas de um país.
LCOJr: Sim, com o detalhe de que é um momento
histórico privilegiado. Não é aquela
coisa do filme do Wiseman que simplesmente vai entrar
numa instituição e ficar três meses
lá. Trata-se de captar um momento que você
de antemão já sabe que é um momento
histórico importante, e você vai buscar
se colocar dentro dele.
EV: Mas o próprio João Moreira Salles
fala que se surpreendia a cada dia, por não saber,
uma vez começado o jogo, como seriam as suas
regras. Eu acho muito impressionante o tipo de entrada
que aquela equipe teve. O cabedal de imagens que eles
levantaram é absolutamente inédito e revelador
de coisas para além da personalidade do Lula.
É muito fascinante a revelação
de questões estruturais sobre a política
no Brasil, e quiçá no mundo, como aquela
seqüência toda do debate. Menos por filmar
do que por jogar com aquela tensão na montagem.
A pesquisa de opinião, a construção
da imagem do candidato em tempo real, essa coisa de
re-adequar quem você é em tempo real de
acordo com as respostas que alguns estão dando.
O filme tem uma felicidade muito grande para além
da figura do Lula.
LCOJr: Que é co-autor do filme...
EV: O Lula é co-autor, mas há uma felicidade
da equipe do filme em conseguir ter tido a entrada que
esse grupo político permitiu que ela tivesse,
com gradações, como a gente vê em
algumas cenas, o que é óbvio, e ter conseguido
fazer um raio-x de um determinado processo político
brasileiro no início do século XXI. O
processo de construção de imagem necessário,
não só de forma marketeira, e nesse ponto
a figura do Duda Mendonça é muito interessante
pro filme, mas até de forma político-partidária
mesmo, o tipo de jogos de seção e concessão
não apenas em relação à
imagem, mas em relação ao próprio
programa partidário que se carrega e que terá
de ser reordenado a partir de algumas opções.
A televisão, ou o próprio jornalismo escrito,
pode ter tentado em algum momento tecer teses muito
interessantes sobre isso, mas acho que é a primeira
vez que temos as imagens ali, que por si mesmas comprovam
uma série de coisas. Nesse ponto, é muito
interessante o João Moreira Salles ter insistido
no valor histórico dessas imagens para além
do filme dele. A história de ele falar que as
fitas master de tudo que ele gravou e inclusive daquilo
que ele achou que eminentemente não podia ser
colocado no filme num momento político como o
de hoje vão ficar guardadas e que daqui a quarenta
anos, quando todas as pessoas vivas relacionadas ao
filme não estiverem mais no cenário onde
elas podem ser afetadas, isso será disponibilizado,
pensando como um cabedal histórico mesmo, de
imagens de arquivo. O filme supre isso de uma forma
um tanto satisfatória, e para além do
discurso que o filme Entreatos consegue estruturar
em uma hora e cinqüenta e seis minutos, com seus
vacilos, suas subidas e suas descidas. Há esse
fascínio próprio da imagem, que é
menos de achar certos momentos íntimos do Lula,
que são muito interessantes mais pelo co-autor
Lula do que por qualquer outra coisa, do que de mostrar
pequenos momentos da construção do processo
político que são muito interessantes.
DC: O processo político de certa maneira é
podado. A gente vê pela própria figura
do José Dirceu. As negociações
políticas do filme são parcialmente limadas,
a gente vê só por um viés um pouco
fechado. Tem aquela cena em que o Dirceu vai discutir
política e pergunta: "Tá gravando?".
EV: Até porque é insano desejar que fosse
diferente. É impossível desejar a abertura
total dessas imagens porque é da natureza do
jogo. E as pessoas estão no poder agora, por
isso eu falo de uma coisa que penso ser razoavelmente
inédita: é um filme que está sendo
lançado comercialmente para ser sorvido por quem
quer que deseje ou possa pagar o ingresso e ter acesso
a essas imagens de pessoas que estão no poder
no mesmo país nesse exato momento, sem que elas
tenham tido nenhuma intervenção e aqui
vou tomar as palavras do João Moreira Salles,
porque realmente acredito no que ele relatou na edição,
no olhar, em querer saber de que forma estão
sendo retratadas. Retomando a coisa que foi dita de
que o filme foi claramente feito para tentar traçar
um retrato simpático do Lula, concordo com o
João Moreira Salles, a gente viu isso até
no debate, quando ele diz que o Lula nos obriga uma
simpatia pela figura dele, mas, politicamente falando,
inúmeras pessoas que assim desejem podem usar
o filme como prova de completas inadequações
do Lula à presidência, a uma série
de coisas que fizeram não só em artigos,
em reportagens feitas no lançamento do filme,
como também no próprio debate no Odeon
uma série de pessoas encontrou provas no filme
de que o Lula é um presidente completamente inadequado
pro Brasil. O filme demonstra que é muito simpático
pessoalmente ao Lula, mas na dimensão política
a coisa fica em aberto.
LCOJr: Mas em nenhum momento eu quis dizer que o filme
nos faz simpatizar com o presidente-Lula. Agora, com
o Lula-personagem é impossível não
simpatizar.
DC: Há um consenso de que o nome Entreatos
sugere uma coisa que o filme não é. Porque
o grande assunto do filme é o processo de construção
da imagem do Lula, o que nada tem de entreatos, no máximo
são as coxias. É o momento em que você
prepara um discurso, inclusive fazendo a barba.
RG: "Coxias" seria um grande nome pro filme,
muito mais honesto.
EV: Mas aí o distribuidor deve ter falado: "Você
passa na porta do cinema e vê escrito Coxias,
você entra?". É "Coxinhas"?
É "Caxias"? [risos]
RG: Talvez tenham dois minutos de entreatos no filme.
DC: O grande registro político do filme, além
da própria idéia da construção
da imagem do Lula, é o momento de reflexão
do Lula tentando se avaliar naquele avião, que
é um olhar auto-indulgente, auto-mitificador,
mas que de certa maneira mostra que há uma percepção
política do cenário nacional e internacional.
Ele faz uma avaliação da esquerda bastante
crítica.
RG: Essa cena inclusive poderia ser um extra do DVD
do filme do Coutinho, pois está muito mais próxima
conceitualmente do Peões, por essa telescopagem
histórica. Mas a coisa que mais me interessa
no Entreatos, apesar de eu achar que o filme
tem um problema de estrutura mesmo, mas um problema
muito pensado, é que ele em vários momentos
abre mão da mestria documentarista, botando imagens
mal fotografadas crendo que aquele momento é
muito mais forte do que qualquer problema técnico,
e ao mesmo tempo um João Moreira Salles arquivista
que dá lugar ao João Moreira Salles documentarista
mesmo. Ele bota várias cenas que não se
prestam muito bem ao filme, ao prolongamento do filme,
ou ao conceito de entreatos ou de camarim, mas que estão
lá porque ele acha que são interessantes.
E isso faz de Entreatos um objeto visual muito
curioso, porque é quase um arquivo vivo, atinge
uma dimensão maior como arquivo do hoje do que
como um filme estruturado como documentário.
Ele tem mais mérito nessa forma de arquivo.
DC: Isso é quase oposto ao outro filme do João
Moreira Salles, Nelson Freire, que de arquivo
não tinha absolutamente nada e que só
se resumia como filme, construção de personagem.
RG: Há de se admitir que, como questão
de método de filmagem e de fazer com que aquilo
tudo aconteça de forma natural, o João
Moreira Salles tem de ser frisado, porque não
é todo cineasta que consegue fazer com que as
pessoas que estão sendo filmadas consigam de
fato se desenvolver a contento.
DC: A ajuda do Walter Carvalho foi muito importante,
por ele se dar bem com o Lula e tudo mais.
RG: Retomando a idéia do conceito, acho muito
curioso que existam alguns filmes. Um não é
um documentarista, o Nelson Pereira, mas sobra conceito
em Raízes do Brasil. Peões
e O Prisioneiro claramente estão trabalhando
um certo conceito de imagem, vêem aquela imagem
como um problema. E do outro lado há os filme
que encaram a imagem mais como valor de face. Talvez
seja possível dizer a respeito de Fala Tu
que ele encara a imagem de uma posição
naif, acreditando profundamente na imagem daquilo
que está mostrando.
LCOJr: Uma espécie de "adamismo icônico"
que ainda sobrevive.
DC: Eu falava naquela hora, sobre o Nelson Pereira,
de ele ter consciência do seu limite e de como
isso é o tema subjacente do filme. Ao mesmo tempo
Raízes do Brasil é mistificador
e desmistificador, porque ele sabe que não tem
como absorver o próprio Sérgio Buarque,
então ele constrói um discurso de história
do Brasil e do trabalho do Sérgio Buarque e mostra
a versão da família, que é uma
outra relação completamente oposta, e
nenhuma delas dá conta, de fato, do que pode
ser o Sérgio Buarque de Holanda, do que é
uma pessoa. Tem uma coisa muito interessante: seria
muito fácil pro Nelson conseguir, além
dos livros que são lidos, gravações
do Sérgio Buarque falando, se anunciando, explicando
suas teses, e ele usar esses sons. Mas ele só
usa algumas imagens, inclusive aquela imagem muito forte
dele dançando e brincando com a Miúcha,
no dia em que ela casa com o João Gilberto. A
única vez em que a gente ouve a voz do Sérgio
Buarque é cantando uma música que não
tem absolutamente nada a ver com toda a obra dele, que
não tem absolutamente nenhuma relação
que não seja de carinho, de curiosidade em saber
quem é essa pessoa. O Nelson conta todo o percurso
intelectual segundo o livro, seguindo aquela regra de
colocar em paralelo o que ele fez e o que estava acontecendo
no país, e conta o que as pessoas lembram dele,
mas a gente não vai ter um acesso direto ao Sérgio
Buarque e ao pensamento do Sérgio Buarque através
dessa fórmula, a gente vai ter uma sugestão.
O Nelson falou que nunca quis fazer um filme para substituir
os livros do Sérgio Buarque. Inclusive o filme
ajuda a provocar a curiosidade intelectual das pessoas
em ir ler os livros. Ele nem quer dar conta da obra
nem quer dar conta da pessoa, mas fazer um filme. E
nisso a oposição entre os dois filmes,
a liga que ele dá é muito interessante.
RG: O fato do vol. 1 do Raízes do Brasil ser
aquele que é e o vol. 2 ser o outro, quando todo
mundo suporia o contrário, que primeiro viria
o homem pensador em seu país e depois o retrato
familiar, mostra que o Nelson quer construir, sobretudo
na parte 1, a idéia de como uma figura consegue
sair de seu próprio corpo e ser um nome, ser
livros. Ele tem esse maravilhamento, que ele não
tenta explicar, mas que ele tenta entender como um corpo
que tem uma vida como qualquer outro, que tem uma família,
sai disso e vai para aquela outra figura. Os trechos
lidos parecem mais fragmentos como outros quaisquer,
não há uma síntese do discurso,
mas antes testemunhos, algo que foi escrito por ele.
O primeiro valor de importância de cada trecho
é o de ser algo que foi escrito por ele; são
vestígios desse corpo que existiu e se cristalizou
em livros, se eternizou.
DC: Essa relação de corpo e posição
intelectual é muito divertida quando a gente
vê o testemunho do Antonio Cândido, que
é uma figura fundamental, principalmente na área
de literatura, em que tem todo um respaldo, todo um
respeito, e ele brinca na frente da câmera, pergunta
se acabou e faz uma brincadeira com o Nelson. Ou seja,
tem uma relação de pessoas vivendo e trabalhando
a sério mas que são pessoas e ponto.
RG: Já que a gente falou muito en passant
do Glauber O Filme, é curioso notar
que o último depoimento, que é o do João
Ubaldo Ribeiro, seja parecido com a parte 1 do Raízes
do Brasil, que é a parte de fato mais brincalhona,
anedótica. E o que o Silvio Tendler tenta fazer
está claramente no exato oposto do que o Nelson
tenta. Ele tenta construir uma figura épica,
mas ao mesmo tempo a própria forma do filme nega
completamente toda essa glória glauberiana. Não
tem nada mais careta do que esse filme, não tem
nada de mais mau gosto do que aqueles grafismos e efeitos
visuais. É um Glauber de almanaque.
EV: Que tenta ser quebrado por um anedotismo barato.
DC: É o "pensamento morto de Glauber Rocha".
RG: Justamente. Morto e enterrado. Se ele não
estava enterrado, o filme trata de enterrar.
EV: E vamos voltar à questão do conceito:
a falta de estabelecer um conceito que carrega a narrativa
por si mesmo. De repente, quando você acha que
aquilo não terá nada a ver no filme, ele
cai na esparrela de listar filme a filme, passar uma
pequena cena e um breve comentário, como se cada
uma dessas cenas e desses comentários explicasse
desde Barravento até A Idade da Terra
passando por todos os outros. Você pega Terra
em Transe, Deus e o Diabo, ou qualquer filme
do Glauber, sobre o que ninguém consegue terminar
um pensamento completo mesmo analisando plano a plano,
e aí você faz isso com um minuto e meio
para cada filme.
RG: E é extremamente estúpido porque dá
um trabalho incrível você tentar sintetizar
um percurso através de filmes em uma cena ou
em um depoimento. Basicamente ele está atendendo
a pressupostos que o filme não pede. É
uma coisa comum de um certo documentarismo, esse sim
by the book, então acho muito interessante
que tenhamos já falado de todos os outros que
não são by the book, que não
têm um modelo de excelência ao qual seguir
e no qual o mérito estaria imediatamente ligado
ao respeito à maneira de fazer. Em Glauber
O Filme não: existe essa fórmula
e a figura do Glauber o tempo todo está fugindo,
pedindo alguma coisa que não seja isso. Se em
figuras mais conservadoras essa síntese já
é incrivelmente perniciosa, no Glauber então
não faz o menor sentido.
EV: E nesse ponto repete algumas problemáticas,
talvez até pior resolvidas, do Onde a Terra
Acaba, que fazia a mesma coisa com o Mário
Peixoto. É a mesma imprecisão entre método
e personagem.
RG: Só que, nesse caso, mais para nível
Nelson Freire. Onde a Terra Acaba é
também um filme sobre um afásico, mas
que não sabe lidar com isso.
Parte 1: Um
ano de documentários?
Parte 3: Um passeio
pelo mercado.
Parte 4: O cinema como
parque temático.
Parte 5: Garotas do
ABC e os hábitos do olhar.
|