CINEMA FALADO PARTE 2
O documento e o conceito. O documento não é o conceito.

RG: Se você parar para pensar, até os filmes de que a gente gosta menos, ou de que não gosta, são documentários que não são feitos by the book. À exceção do Entreatos, que é em certa medida emulado com um pé no cinema direto de eleição, os filmes do Robert Drew, e tem o ritmo todo pautado nos filmes com os Beatles do Richard Lester – mas como uma ausência estruturante, porque isso dificilmente teria passado pela cabeça do João Moreira Salles. Mas eu acho curioso que um filme como Justiça, ou Fala Tu, diferente de Evandro Teixeira, que eu acho um bom filme, seja feito by the book. Existe uma fórmula certa de documentário. Todos eles estão lidando em alguma medida com um terreno experimental de filmagem, de o que filmar, de como filmar, mas existe claramente uma linha de separação, que é feita não só na filmagem, mas principalmente na montagem, que é o conceito. O Prisioneiro da Grade de Ferro é um filme que tem conceito, Raízes do Brasil idem. E que não vão além desse conceito.

DC: Mas esse conceito não surge antes da filmagem.

RG: Ele se encontra ou não se encontra, ele tem de aparecer de alguma forma no momento em que o filme está sendo feito.

GSJr: Fábio Fabuloso tem esse conceito, até de forma despretensiosa, mas tem um conceito fechado. Apesar de eu não ser fã do filme, reconheço que ele consegue atingir aquilo a que se propõe, ao contrário do Fala Tu, em que você não sabe ao que o filme está se propondo, justamente por não ter um conceito.

Eduardo Valente: Fábio Fabuloso poderia ter um pouquinho menos do jegue teimoso. O filme é mais esperto que a sua própria esperteza.

LCOJr: O filme é simpático, mas de vez em quando exagera nas suas figuras de bobeira.

DC: Mas tem um retrato carinhoso lá. Eu acho que essa relação da câmera com eles é legal porque de certa maneira acaba não sendo um documentarista chegando: é antes a galera. Eles estão se mostrando para a câmera, mas é um filme de galera.

LCOJr: As melhores partes do filme são aquelas que mostram a idéia da galera do surf como uma grande família. Tem até aquele garoto que era fã do Fábio e acaba sendo meio que adotado por ele.

DC: A relação de admiração pelo Fábio é legal, é mais bem construída do que nos outros.

LCOJr: Os depoimentos dos surfistas profissionais são excelentes, você vê lá o Kelly Slater falando dele.

DC: E eles estão sempre brincando.

EV: Pois é, mas o problema é justamente que o cara não confia que esse material é interessante por si mesmo e quer fazer brincadeirinha em cima, para o filme "ter ritmo, ter graça". Como se aquilo já não tivesse graça e ritmo. Todas as escorregadas que o filme dá são aí.

LCOJr: Tem um sacrilégio que são cenas de surf em que o cara está pegando a onda da vida dele e o filme acelera a imagem, faz ela ficar indo e voltando. Isso realmente destrói a cena por completo. Aliás, o filme tem uma "esperteza" de montagem que foi o que mais me incomodou.

EV: Não, o que mais me incomodou foi o primeiro filme com letterbox da história do cinema.

LCOJr: É verdade. Vou falar da segunda coisa que mais me incomodou. A primeira foi mesmo o filme possuir letterbox, coisa muito esquisita, não dá para entender aquilo. E faz parte do filme, porque todas as legendas estão ali na parte preta de baixo. A segunda coisa que mais me incomodou, então, foram aqueles offzinhos lá do jegue, aqueles baiões, aquelas mal engendradas derivações de literatura de cordel.

GSJr: Isso a gente pode chamar de "Ilha das Floresices" do filme.

LCOJr: Sabe o que me lembrou muito mais do que Ilha das Flores? O Esporte Espetacular nos seus piores momentos, lá na época do Fernando Vanucci e da Milena Ceribelli, quando eles se vestiam de caipira e ficavam tentando forçar um sotaque, contar uma historinha engraçadinha para falar de esporte. Me lembrou muito. Mas o filme é simpático, só a idéia de fazer um filme com o Fábio Gouveia já valeu a pena.

EV: Nessa questão da veracidade etc e tal, por mais que a gente dê volta em torno dela, não há como não chegar no Coutinho, que é onde eu acho que a coisa se configura de uma forma mais complicada. Ele sempre teve essa questão do momento, e de que ali não tem uma verdade, tem a interação entre ele e o personagem naquele momento específico e o que sai disso. Mas em Peões, especificamente, há o interesse com uma história fixa e coletiva que, por exemplo, não tinha no Babilônia 2000, não tinha em nenhum dos filmes recentes dele, em que havia uma realidade muito específica e que se auto-sustentava, sem precisar remeter a alguma coisa que forma uma certa memória coletiva não só do grupo que está sendo entrevistado, mas também do país. Ou seja, você mistura não só a questão da memória como a questão da história. E a história está na tela do filme, também à diferença dos outros filmes recentes do Coutinho, através das cenas dos filmes dos anos 70, através das fotografias, das imagens de tv. E tem dois momentos bonitos: primeiro a busca dos personagens, porque o filme tem uma grandeza em conseguir – mais uma vez, como o Coutinho sempre faz – botar suas tripas de fora, o seu formato de realização ser junto com o próprio filme e os dois virarem um só, o que eu acho que é sempre uma das grandes sacadas de que um documentarista pode lançar mão para demonstrar, ao mesmo tempo, os limites e a grandeza da sua missão. A segunda coisa é o fato de que cada personagem ali inegavelmente interpreta um personagem e uma lembrança de país que está sendo construída por conta de ter aquele companheiro em evidência. Se esse filme fosse feito dez anos antes ou se o Lula não tivesse feito carreira, não tivesse concorrendo à presidência, certamente as entrevistas todas teriam um outro peso, as lembranças seriam feitas de forma completamente diferente. Então há essa mitologia, porque é um grande filme de mitologia, e por isso é uma idéia muito boa a apresentação conjunta com Entreatos, porque compõe essa idéia de mitologia de uma forma muito rica. E talvez o Lula onipresente seja uma das coisas mais bonitas do filme, também. O Lula está sempre nos discursos das pessoas e sempre naquelas imagens. O Coutinho sacou muito bem, não sei o quanto aquilo já estava na forma do filme pensado, mas acho que ele meio que descobriu que aquelas imagens são essenciais pro filme, as imagens dos filmes diretos, que ele podia retirar, num primeiro momento, mas que de acordo com o conceito se torna importante, pela dialética constante entre o discurso micro daquelas pessoas e as imagens quase que automaticamente épicas de tudo aquilo, seja dos palanques ou, principalmente, daquela preparação do Lula quando ele está indo para um dos comícios maiores. Ali está bem resolvida essa questão de que a gente não precisa se preocupar com a veracidade ou mesmo com a sensação de real, mas acima de tudo com a capacidade do documentarista mesclar o que é o seu processo de apreensão de um tema e o que está na frente da câmera dele, e dessa dialética tirar o filme. No caso do Coutinho, como no caso do Sacramento, a gente percebe isso se mesclando de uma forma precisa. Em vários outros filmes o que acontece é uma completa dissociação entre objetivos, imagens e junção de imagens, construção de significados pela montagem – que é onde boa parte do roteiro de um documentário se dá, na melhor das hipóteses – e a coisa simplesmente se perde. A gente falou bastante do Justiça, mas a cena que mais me choca ninguém ainda comentou, que é aquela do jantar na casa da defensora pública. É uma cena não só obviamente encenada, o que seria o menor dos problemas, mas que fica problemática num filme que tenta construir toda sua especificidade, tenta se legitimar pela sua utilização de um certo cinema direto à Frederick Wiseman.

RG: Acho que a figura do filme é menos o cinema direto do que o Johan van der Keuken que é um documentarista holandês, lá de onde a Maria Augusta Ramos é formada, e que lida com encenações mesmo.

EV: Sim, mas o complicado daquela cena é que o filme tem, no meio do seu discurso, todo um orgulho de não usar entrevistas, e aquela cena é uma entrevista. Disfarçar uma cena para que ela caiba no seu discurso, quando claramente ela está ferindo o seu conceito, tentar dar uma passada de perna no espectador e dizer que não usou um determinado recurso, quando na verdade o está usando disfarçado, aí a coisa fica meio complicada, porque entra na honestidade. E tem uma coisa de O Prisioneiro que precisa ser mencionada que é uma questão essencial no documentário, até no National Geographic, que é o ineditismo de uma imagem. No manancial de imagens que a gente tem hoje jogadas principalmente pelo jornalismo, achar ainda uma imagem inédita é uma coisa muito difícil. E aquela seqüência da "noite de um detento", se já não tivesse perfeitamente inserida no conceito, se não tivesse uma série de outros momentos impressionantes, aquilo ali seria uma validação por si mesmo, porque ninguém nunca tinha visto. É de uma força inacreditável pelo inédito.

LCOJr: E não é uma epifania rosselliniana, é diferente. Não é também uma coisa do Kiarostami, de no meio de um plano a que Jonathan Rosenbaum gosta de chamar "long cosmic shot" (plano-seqüência cósmico), termos uma imagem que parece feita por alguém que nunca foi ao cinema, uma imagem anterior à história do cinema, de quem ainda está descobrindo o mundo através daquele dispositivo do cinema, aquela coisa mágica. Ali em O Prisioneiro eu vejo também uma coisa mágica, mas para a qual não sei ainda achar uma definição, é totalmente diferente de todo o resto. Mas é também como se ali você estivesse descobrindo uma imagem de uma forma que nem o cinema ainda sabia como fazer para descobrir. Aquele tempo de espera até que aquilo aconteça é um tempo de espera totalmente próprio, totalmente do filme. Tanto é que aquela cena não à toa é montada como uma espécie de clímax mesmo. Não é nem clímax, é o presente que o filme dá para quem está assistindo.

EV: Tem a cartela: "Noite de um detento".

LCOJr: Tem cartela, mas quando vêm o fogos de artifício é como se fosse um presente mesmo.

RG: Voltando um pouco ao Peões e à questão de tradição de história e de relato, é curioso que se fale que o Coutinho a cada filme faz o mesmo filme quando me parece que, mesmo nos filmes que se parecem demais uns com os outros, como no caso do Babilônia 2000 como uma espécie de spin off do Santo Forte, ele está na verdade testando a possibilidade daquele método como se fosse a primeira vez em que o utilizasse. Isso fica mais claro em Peões porque ele joga aquele método para retirar o que tem, mas não se baseia no método comum. E as entrevistas não têm a mesma função, não exercem o mesmo papel. O filme tem uma ausência estruturante, que é a figura do Lula na presidência, hoje, e a figura do Lula que não está presente a não ser em imagens ou no relato de seus colegas. Ele está lá o tempo inteiro e não está.

DC: É o que o Eduardo falou da mitificação. De certa maneira você constrói a figura do Lula imaginariamente.

RG: Se você pensar em Edificio Master e Santo Forte, são filmes completamente horizontais do ponto de vista histórico, tentam dar conta de um hoje que curiosamente não é o Peões. Entreatos tenta muito mais dar conta de um hoje, de um diário do que é o ano de 2002 do que Peões, que tenta – e nesse sentido eu o acho muito parecido com Cabra Marcado para Morrer – entender o que aconteceu num período de vinte anos.

LCOJr: Entreatos me passa muito a idéia de um filme que se quer como simplesmente o filme que estava no lugar certo na hora certa. Parece um filme do privilégio de quem pôde estar ali durante a campanha do Lula.

RG: É o lado do cinema direto, que é quase uma figura jornalística que nos irmãos Mason existiu completamente: o grande documentarismo é o melhor jornalismo, não o jornalismo cotidiano, mas um grande jornalismo como testemunha das mudanças históricas de um país.

LCOJr: Sim, com o detalhe de que é um momento histórico privilegiado. Não é aquela coisa do filme do Wiseman que simplesmente vai entrar numa instituição e ficar três meses lá. Trata-se de captar um momento que você de antemão já sabe que é um momento histórico importante, e você vai buscar se colocar dentro dele.

EV: Mas o próprio João Moreira Salles fala que se surpreendia a cada dia, por não saber, uma vez começado o jogo, como seriam as suas regras. Eu acho muito impressionante o tipo de entrada que aquela equipe teve. O cabedal de imagens que eles levantaram é absolutamente inédito e revelador de coisas para além da personalidade do Lula. É muito fascinante a revelação de questões estruturais sobre a política no Brasil, e quiçá no mundo, como aquela seqüência toda do debate. Menos por filmar do que por jogar com aquela tensão na montagem. A pesquisa de opinião, a construção da imagem do candidato em tempo real, essa coisa de re-adequar quem você é em tempo real de acordo com as respostas que alguns estão dando. O filme tem uma felicidade muito grande para além da figura do Lula.

LCOJr: Que é co-autor do filme...

EV: O Lula é co-autor, mas há uma felicidade da equipe do filme em conseguir ter tido a entrada que esse grupo político permitiu que ela tivesse, com gradações, como a gente vê em algumas cenas, o que é óbvio, e ter conseguido fazer um raio-x de um determinado processo político brasileiro no início do século XXI. O processo de construção de imagem necessário, não só de forma marketeira, e nesse ponto a figura do Duda Mendonça é muito interessante pro filme, mas até de forma político-partidária mesmo, o tipo de jogos de seção e concessão não apenas em relação à imagem, mas em relação ao próprio programa partidário que se carrega e que terá de ser reordenado a partir de algumas opções. A televisão, ou o próprio jornalismo escrito, pode ter tentado em algum momento tecer teses muito interessantes sobre isso, mas acho que é a primeira vez que temos as imagens ali, que por si mesmas comprovam uma série de coisas. Nesse ponto, é muito interessante o João Moreira Salles ter insistido no valor histórico dessas imagens para além do filme dele. A história de ele falar que as fitas master de tudo que ele gravou – e inclusive daquilo que ele achou que eminentemente não podia ser colocado no filme num momento político como o de hoje – vão ficar guardadas e que daqui a quarenta anos, quando todas as pessoas vivas relacionadas ao filme não estiverem mais no cenário onde elas podem ser afetadas, isso será disponibilizado, pensando como um cabedal histórico mesmo, de imagens de arquivo. O filme supre isso de uma forma um tanto satisfatória, e para além do discurso que o filme Entreatos consegue estruturar em uma hora e cinqüenta e seis minutos, com seus vacilos, suas subidas e suas descidas. Há esse fascínio próprio da imagem, que é menos de achar certos momentos íntimos do Lula, que são muito interessantes mais pelo co-autor Lula do que por qualquer outra coisa, do que de mostrar pequenos momentos da construção do processo político que são muito interessantes.

DC: O processo político de certa maneira é podado. A gente vê pela própria figura do José Dirceu. As negociações políticas do filme são parcialmente limadas, a gente vê só por um viés um pouco fechado. Tem aquela cena em que o Dirceu vai discutir política e pergunta: "Tá gravando?".

EV: Até porque é insano desejar que fosse diferente. É impossível desejar a abertura total dessas imagens porque é da natureza do jogo. E as pessoas estão no poder agora, por isso eu falo de uma coisa que penso ser razoavelmente inédita: é um filme que está sendo lançado comercialmente para ser sorvido por quem quer que deseje ou possa pagar o ingresso e ter acesso a essas imagens de pessoas que estão no poder no mesmo país nesse exato momento, sem que elas tenham tido nenhuma intervenção – e aqui vou tomar as palavras do João Moreira Salles, porque realmente acredito no que ele relatou – na edição, no olhar, em querer saber de que forma estão sendo retratadas. Retomando a coisa que foi dita de que o filme foi claramente feito para tentar traçar um retrato simpático do Lula, concordo com o João Moreira Salles, a gente viu isso até no debate, quando ele diz que o Lula nos obriga uma simpatia pela figura dele, mas, politicamente falando, inúmeras pessoas que assim desejem podem usar o filme como prova de completas inadequações do Lula à presidência, a uma série de coisas que fizeram não só em artigos, em reportagens feitas no lançamento do filme, como também no próprio debate no Odeon uma série de pessoas encontrou provas no filme de que o Lula é um presidente completamente inadequado pro Brasil. O filme demonstra que é muito simpático pessoalmente ao Lula, mas na dimensão política a coisa fica em aberto.

LCOJr: Mas em nenhum momento eu quis dizer que o filme nos faz simpatizar com o presidente-Lula. Agora, com o Lula-personagem é impossível não simpatizar.

DC: Há um consenso de que o nome Entreatos sugere uma coisa que o filme não é. Porque o grande assunto do filme é o processo de construção da imagem do Lula, o que nada tem de entreatos, no máximo são as coxias. É o momento em que você prepara um discurso, inclusive fazendo a barba.

RG: "Coxias" seria um grande nome pro filme, muito mais honesto.

EV: Mas aí o distribuidor deve ter falado: "Você passa na porta do cinema e vê escrito ‘Coxias’, você entra?". É "Coxinhas"? É "Caxias"? [risos]

RG: Talvez tenham dois minutos de entreatos no filme.

DC: O grande registro político do filme, além da própria idéia da construção da imagem do Lula, é o momento de reflexão do Lula tentando se avaliar naquele avião, que é um olhar auto-indulgente, auto-mitificador, mas que de certa maneira mostra que há uma percepção política do cenário nacional e internacional. Ele faz uma avaliação da esquerda bastante crítica.

RG: Essa cena inclusive poderia ser um extra do DVD do filme do Coutinho, pois está muito mais próxima conceitualmente do Peões, por essa telescopagem histórica. Mas a coisa que mais me interessa no Entreatos, apesar de eu achar que o filme tem um problema de estrutura mesmo, mas um problema muito pensado, é que ele em vários momentos abre mão da mestria documentarista, botando imagens mal fotografadas crendo que aquele momento é muito mais forte do que qualquer problema técnico, e ao mesmo tempo um João Moreira Salles arquivista que dá lugar ao João Moreira Salles documentarista mesmo. Ele bota várias cenas que não se prestam muito bem ao filme, ao prolongamento do filme, ou ao conceito de entreatos ou de camarim, mas que estão lá porque ele acha que são interessantes. E isso faz de Entreatos um objeto visual muito curioso, porque é quase um arquivo vivo, atinge uma dimensão maior como arquivo do hoje do que como um filme estruturado como documentário. Ele tem mais mérito nessa forma de arquivo.

DC: Isso é quase oposto ao outro filme do João Moreira Salles, Nelson Freire, que de arquivo não tinha absolutamente nada e que só se resumia como filme, construção de personagem.

RG: Há de se admitir que, como questão de método de filmagem e de fazer com que aquilo tudo aconteça de forma natural, o João Moreira Salles tem de ser frisado, porque não é todo cineasta que consegue fazer com que as pessoas que estão sendo filmadas consigam de fato se desenvolver a contento.

DC: A ajuda do Walter Carvalho foi muito importante, por ele se dar bem com o Lula e tudo mais.

RG: Retomando a idéia do conceito, acho muito curioso que existam alguns filmes. Um não é um documentarista, o Nelson Pereira, mas sobra conceito em Raízes do Brasil. Peões e O Prisioneiro claramente estão trabalhando um certo conceito de imagem, vêem aquela imagem como um problema. E do outro lado há os filme que encaram a imagem mais como valor de face. Talvez seja possível dizer a respeito de Fala Tu que ele encara a imagem de uma posição naif, acreditando profundamente na imagem daquilo que está mostrando.

LCOJr: Uma espécie de "adamismo icônico" que ainda sobrevive.

DC: Eu falava naquela hora, sobre o Nelson Pereira, de ele ter consciência do seu limite e de como isso é o tema subjacente do filme. Ao mesmo tempo Raízes do Brasil é mistificador e desmistificador, porque ele sabe que não tem como absorver o próprio Sérgio Buarque, então ele constrói um discurso de história do Brasil e do trabalho do Sérgio Buarque e mostra a versão da família, que é uma outra relação completamente oposta, e nenhuma delas dá conta, de fato, do que pode ser o Sérgio Buarque de Holanda, do que é uma pessoa. Tem uma coisa muito interessante: seria muito fácil pro Nelson conseguir, além dos livros que são lidos, gravações do Sérgio Buarque falando, se anunciando, explicando suas teses, e ele usar esses sons. Mas ele só usa algumas imagens, inclusive aquela imagem muito forte dele dançando e brincando com a Miúcha, no dia em que ela casa com o João Gilberto. A única vez em que a gente ouve a voz do Sérgio Buarque é cantando uma música que não tem absolutamente nada a ver com toda a obra dele, que não tem absolutamente nenhuma relação que não seja de carinho, de curiosidade em saber quem é essa pessoa. O Nelson conta todo o percurso intelectual segundo o livro, seguindo aquela regra de colocar em paralelo o que ele fez e o que estava acontecendo no país, e conta o que as pessoas lembram dele, mas a gente não vai ter um acesso direto ao Sérgio Buarque e ao pensamento do Sérgio Buarque através dessa fórmula, a gente vai ter uma sugestão. O Nelson falou que nunca quis fazer um filme para substituir os livros do Sérgio Buarque. Inclusive o filme ajuda a provocar a curiosidade intelectual das pessoas em ir ler os livros. Ele nem quer dar conta da obra nem quer dar conta da pessoa, mas fazer um filme. E nisso a oposição entre os dois filmes, a liga que ele dá é muito interessante.

RG: O fato do vol. 1 do Raízes do Brasil ser aquele que é e o vol. 2 ser o outro, quando todo mundo suporia o contrário, que primeiro viria o homem pensador em seu país e depois o retrato familiar, mostra que o Nelson quer construir, sobretudo na parte 1, a idéia de como uma figura consegue sair de seu próprio corpo e ser um nome, ser livros. Ele tem esse maravilhamento, que ele não tenta explicar, mas que ele tenta entender como um corpo que tem uma vida como qualquer outro, que tem uma família, sai disso e vai para aquela outra figura. Os trechos lidos parecem mais fragmentos como outros quaisquer, não há uma síntese do discurso, mas antes testemunhos, algo que foi escrito por ele. O primeiro valor de importância de cada trecho é o de ser algo que foi escrito por ele; são vestígios desse corpo que existiu e se cristalizou em livros, se eternizou.

DC: Essa relação de corpo e posição intelectual é muito divertida quando a gente vê o testemunho do Antonio Cândido, que é uma figura fundamental, principalmente na área de literatura, em que tem todo um respaldo, todo um respeito, e ele brinca na frente da câmera, pergunta se acabou e faz uma brincadeira com o Nelson. Ou seja, tem uma relação de pessoas vivendo e trabalhando a sério mas que são pessoas e ponto.

RG: Já que a gente falou muito en passant do Glauber – O Filme, é curioso notar que o último depoimento, que é o do João Ubaldo Ribeiro, seja parecido com a parte 1 do Raízes do Brasil, que é a parte de fato mais brincalhona, anedótica. E o que o Silvio Tendler tenta fazer está claramente no exato oposto do que o Nelson tenta. Ele tenta construir uma figura épica, mas ao mesmo tempo a própria forma do filme nega completamente toda essa glória glauberiana. Não tem nada mais careta do que esse filme, não tem nada de mais mau gosto do que aqueles grafismos e efeitos visuais. É um Glauber de almanaque.

EV: Que tenta ser quebrado por um anedotismo barato.

DC: É o "pensamento morto de Glauber Rocha".

RG: Justamente. Morto e enterrado. Se ele não estava enterrado, o filme trata de enterrar.

EV: E vamos voltar à questão do conceito: a falta de estabelecer um conceito que carrega a narrativa por si mesmo. De repente, quando você acha que aquilo não terá nada a ver no filme, ele cai na esparrela de listar filme a filme, passar uma pequena cena e um breve comentário, como se cada uma dessas cenas e desses comentários explicasse desde Barravento até A Idade da Terra passando por todos os outros. Você pega Terra em Transe, Deus e o Diabo, ou qualquer filme do Glauber, sobre o que ninguém consegue terminar um pensamento completo mesmo analisando plano a plano, e aí você faz isso com um minuto e meio para cada filme.

RG: E é extremamente estúpido porque dá um trabalho incrível você tentar sintetizar um percurso através de filmes em uma cena ou em um depoimento. Basicamente ele está atendendo a pressupostos que o filme não pede. É uma coisa comum de um certo documentarismo, esse sim by the book, então acho muito interessante que tenhamos já falado de todos os outros que não são by the book, que não têm um modelo de excelência ao qual seguir e no qual o mérito estaria imediatamente ligado ao respeito à maneira de fazer. Em Glauber – O Filme não: existe essa fórmula e a figura do Glauber o tempo todo está fugindo, pedindo alguma coisa que não seja isso. Se em figuras mais conservadoras essa síntese já é incrivelmente perniciosa, no Glauber então não faz o menor sentido.

EV: E nesse ponto repete algumas problemáticas, talvez até pior resolvidas, do Onde a Terra Acaba, que fazia a mesma coisa com o Mário Peixoto. É a mesma imprecisão entre método e personagem.

RG: Só que, nesse caso, mais para nível Nelson Freire. Onde a Terra Acaba é também um filme sobre um afásico, mas que não sabe lidar com isso.


Parte 1: Um ano de documentários?

Parte 3: Um passeio pelo mercado.

Parte 4: O cinema como parque temático.

Parte 5: Garotas do ABC e os hábitos do olhar.