CINEMA FALADO, PARTE 3
Um passeio pelo mercado

EV: Queria puxar agora um outro assunto, voltando um pouco para o início. A discussão de público é mesmo uma discussão falsa. Inclusive o próprio O Globo, que fez a matéria citada no início claramente como uma questão de editoria, para as pessoas lerem a manchete e comprarem o jornal achando que tinha alguma coisa polêmica. A matéria afirmava uma coisa e apenas o título dizia que tinha sido um ano desastroso. "O sonho acabou" era o título, mas a matéria dizia que 2003 sempre tinha sido considerado um ano anormal, em termos da quantidade de blockbusters, então não era medição para nada, e que na verdade as expectativas para 2004 eram menores do que o resultado final, de modo que o ano tinha de ser comparado às expectativas criadas e não ao ano de 2003. E nesse ponto o ano foi melhor até do que se esperava. O market share brasileiro foi de 14 %, sendo que antes de 2003 você não tinha nenhum ano passando de 8 %. Se 2003 e 2004 trocassem de lugar seria considerada uma subida constante muito boa. E é um número bastante razoável esse market share de 2004. O que essa falsa questão apaga é que a grande questão que continua permeando o cinema brasileiro em relação a público é a morte do filme médio, e a separação de dois estratos completamente distintos: os mega filmes lançados pela Globo Filmes e aqueles que não têm a menor possibilidade de serem vistos por quase ninguém.

DC: Essa discussão do filme médio necessita de uma diferenciação do porquê esse discurso está em voga, muita gente dizendo que quer fazer filmes médios, e usando orçamentos maiores que os de filmes baratos, pois são filmes médios... e por aí vai. Mas o fato é que vários filmes foram feitos para ser filmes médios, mas não conseguiram.

EV: O meu discurso de forma nenhuma é de que não existem filmes médios, e sim de que não existe mais mercado para filmes médios.

DC: Ou existe mas não está sendo acessível, não se está sabendo o caminho para ele.

GSJr: A falta de mercado para o filme do Carlão é uma clara prova disso.

EV: Aí a gente pode tocar em dois pontos interessantes. Há dois tipos de filmes sendo feitos hoje, e acho até que o do Carlão estaria num terceiro tipo. Um é o do filme que ambiciona uma comunicabilidade grande com o público, mas se dando também através de valores artísticos: estou falando de filmes como Narradores de Javé, De Passagem... Garotas do ABC entra nisso, embora o Carlão tenha essa história anterior de um contato com um outro público que acarreta um peso um pouco diferente para o filme dele. E eu colocaria nessa qualidade o próprio Benjamin, e alguns outros, que são filmes que tentam mesclar um cinema de autor, de arte, por assim dizer, mas que não buscam constantemente a relação com o público e que acreditam ser possível chegar a esse público.

DC: Eu adicionaria então pelo menos O Outro Lado da Rua e, mesmo que problemático, o Como Fazer um Filme de Amor.

RG: Nina, também.

EV: Como Fazer um Filme de Amor e Nina acho que caberiam na outra categoria que eu gostaria de contextualizar, que é a dos filmes que, antes de mais nada, são projetos de público, que incorporam já na sua gênese uma série de idéias de popularização, antes do seu conceito de filme, e que aí tentam montar um conceito diferencial. Não é o caso de um Cazuza ou de um Olga. Porque o filme médio está ali e cada um está aproximando o que é essa idéia de filme médio por um lado. Um está vindo por um conceito anterior de cinema de autor e cinema de arte e aí tentando tornar esse cinema mais popular – ao contrário de cineastas como Bressane etc e etc –, fazendo esse esforço de querer ser visto, e do outro lado existem filmes que querem radicalmente ser vistos, mas que estruturam sua linguagem de uma forma não tão abrangente quanto os enormes lançamentos da Globo Filmes, e que ainda assim são lançamentos pesados. Eu colocaria aí Redentor, Nina, o próprio Como Fazer um Filme de Amor, que é um filme popular antes de qualquer outra coisa, que antes de qualquer conceito de realização e de expressão de uma idéia surge como proposta de contato com o público, e tenta estruturar sua narrativa a partir disso.

LCOJr: Talvez o De Passagem.

EV: Não sei, porque o De Passagem foi feito com um B.O. por ex-alunos da ECA que tinham um projeto de cinema em torno daquilo, e que, a partir do prêmio em Gramado, acreditaram num potencial superior de contato com o público que a realidade veio a comprovar que era enganoso, impraticável.

LCOJr: Eu vi no UCI num domingo à noite e acho um filme que dialoga com o público.

EV: O UCI criou no ano passado, muito por conta dos números de 2003 que subiram as cotas de tela, e que, baseadas na estatística de 2004, já foram reduzidas para 2005, alguns filmes que só chegaram ao público porque esses cinemas tinham que passar algum filme. É folclórico a gente citar, mas é fato: tanto o Viva Sapato quanto o Círculo das Qualidades Humanas não só entraram em cartaz como ficaram por semanas, às vezes três ou quatro semanas, com relatos e com números comprovando que as salas estavam quase que totalmente vazias, mas o UCI tinha de manter os filmes em cartaz porque era dezembro e havia a cota a ser cumprida.

DC: Os filmes foram tratados com muita crueldade, porque entraram em cartaz com zero de divulgação.

EV: Nenhuma possibilidade de serem vistos.

GSJr: Assim como o Samba Riachão no Cinemark Downtown.

EV: Isso se assemelha um pouco àquela tática dos exibidores com o curta-metragem no início dos anos 80. Criar o fracasso para derrubar uma lei. Ninguém tinha nenhuma esperança de que esses filmes fossem dá certo com o público.

RG: Fizeram isso com Matou a Família e Foi ao Cinema em 1969.

LCOJr: O Círculo das Qualidades Humanas bizarramente ficou sendo pré-estrado durante uns três fins de semana no UCI. Eu não estava entendendo, cheguei a pensar que podia ser um filme que ia chegar para tentar alguma coisa grande.

DC: Ninguém sabia do que se tratava, foi jogado em uma ou duas salas.

EV: Entre nós ninguém sabe do que se trata.

RG: O que significa duas coisas. Tem um problema sério que vai da feitura do filme à sua divulgação. Dá-se um dinheiro para fazer os filmes e não se dá um dinheiro para que eles passem, ou quando se dá, tanto do ponto de vista da proposta do filme, Nina sendo um caso claro, quanto da divulgação a coisa é feita errada. São filmes que ou são mal feitos, sem nenhuma das qualidades que se busca quando se quer um público maior, ou, mesmo que se ganhe um bom dinheiro de divulgação, esta é feita de forma tão inadequada que eles não conseguem cativar ninguém a ver os filmes.

GSJr: O lançamento de Nina no Rio cai nesse quadro de bizarrice também. O filme estreou no Espaço Star One e no Art Fashion Mall. Só melhorou um pouco quando foi na terceira semana pro Museu da República, onde se sustentou por mais duas semanas.

DC: E ele ganhou o prêmio na Petrobrás e gastou bastante grana na divulgação.

EV: O filme estreou com bonequinho aplaudindo de pé.

GSJr: E curioso o filme se sustentar duas semanas no Museu da República, que é um cinema freqüentado por um público que não é nada o público alvo do filme.

DC: Ao mesmo tempo em que eu sei que é unanimidade na redação o fato do filme não ser bem sucedido, não ser um filme querido por nós, dá para acreditar que ele poderia sim encontrar o seu público, se lançado de forma mais eficiente.

EV: A gente estava no Tim Festival e no intervalo entre os shows passava o comercial do filme no telão, e eu falava: "Pô, até que os caras tiveram uma idéia boa, porque tem tudo a ver, quem está aqui pode perfeitamente curtir esse filme". O problema é que o que leva as pessoas ao cinema hoje é por um lado um mistério, no que diz respeito à diferenciação entre um filme e outro dentro de um certo caráter, mas por outro lado não é nada misterioso. O Nina não traz nenhum dos pontos de contato desses grandiosos filmes. São dois problemas, na verdade. Um já está batido, mas não deixa por isso de ser problema: que os filmes não têm outro público hoje que não seja o público de classe média alta das grandes cidades, porque nas cidades do interior, em sua grande maioria, não há mais cinemas, e na periferia muito menos. De Passagem, Garotas do ABC, vários desses filmes têm relatos de exibições em que eles eram muito bem recebidos em lugares fora dos grandes centros. E é um publico com o qual o cinema brasileiro sempre contou para manter seus números bons nos anos 70 e até início dos 80. Narradores de Javé era um filme pra isso...

DC: Esse mercado hoje em dia vê filmes em DVD e vídeo, e a gente não sabe como é a distribuição, se ela poderia crescer e está sendo mal feita, ou se está sendo maior do que a gente imagina. Não há como fazer esse controle de quantas vezes um DVD saiu de uma locadora e quantas pessoas viram.

EV: E o segundo problema que vejo bem claro é a questão dos lançamentos uniformizados pelas distribuidoras. Você passa por uma fase de completo excesso de oferta de filmes em relação ao mercado, no Brasil e no mundo, e o que acontece é que os filmes não têm tempo para existir. Um filme desses, quando lançado, precisa dar certo na primeira semana. Na segunda semana, se não tiver dado certo, ele já está numa só sala e na terceira está sendo retirado de cartaz. O fenômeno que começou toda essa onda do cinema brasileiro, que foi o Carlota Joaquina, hoje parece totalmente impossível, dez anos depois. Um filme que chegou a 1 milhão de espectadores sendo lançado com duas cópias em cada grande cidade, só que se segurando firme, mantendo público, indo a cada cidade pequena, fazendo contatos pessoalmente. As distribuidoras não têm esse tipo de cuidado com esses filmes de jeito nenhum. As pequenas não fazem isso por falta de dinheiro, então ficam aqueles lançamentos banais, de circuito Estação, Arteplex, no mesmo esquema das majors, só que diminuindo o número de cópias, quer dizer, lança com tudo, vê se deu, se não deu na segunda semana está no Estação Botafogo 2, na terceira saiu. E as grandes distribuidoras fazem a mesma coisa num nível muito maior: lançou com 80 cópias, espera primeira semana, se na segunda não deu, corta. Foi o que aconteceu muito claramente com Contra Todos, que a partir dos prêmios internacionais e a partir de um certo bafafá em torno do filmes nesses festivais, atraiu a atenção do Fernando Meirelles via O2 e depois atraiu a atenção do distribuidor, que no caso foi a Warner, que deu a atenção de um lançamento de filme médio para grande, e na segunda semana a operação já estava completamente abortada.

DC: Vale comentar que o Carlota Joaquina tem um quê de Brancaleone, de figura solitária, porque a Carla Camurati meteu o filme debaixo do braço e saiu levando de lugar em lugar.

EV: Sim, mas em 1994 esse circuito de arte não estava estruturado da forma como está hoje. Ela tinha espaço para fazer isso. Hoje você não consegue ver como. Tanto que ela fez uma distribuidora, baseada na idéia de que isso era um modelo e que podia ser repetido, e a verdade é que a distribuidora não teve ainda um sucesso depois do primeiro filme. Ela lançou o Belline e a Esfinge, que foi um fracasso porque o filme esperava fazer mais de 100 mil, 200 mil, até 500 mil, e fez em torno de 60, 70 mil. E tem o Janela da Alma que foi um sucesso nesse circuitinho, onde o documentário ainda consegue alguma coisa. Mas ela ainda não conseguiu reproduzir o sucesso de 1 milhão de espectadores como ela fez sozinha com o primeiro filme.

DC: Tinha um charme quixotesco naquilo.

EV: Aquilo não pode ser desejado como método de trabalho, mas o que me interessava era o mercado ter abertura, dentro de suas várias estruturas industriais, para receber uma que comportasse esse tipo de pensamento também. Isso não é só aqui: está em questão nos Estados Unidos, com realizadores americanos de filmes menores, está em questão na França, em qualquer lugar. A loucura da roda viva do mercado atual em que os filmes não têm capacidade de respirar. A Globo Filmes tem seus anúncios na tv, mas isso não vai salvar todos os filmes. Acima de tudo, os filmes precisam de comunicabilidade extrema, de preferência no significado mais rasteiro possível da palavra, e figura de reconhecimento instantâneo.

DC: Comunicabilidade extrema dentro de diversos parâmetros. Porque comunicabilidade o Carlão buscou no Garotas do ABC e não encontrou por uma série de razões.

EV: Comunicabilidade não é a sensibilidade ao público, é na esfera mesmo da comunicação de massa. Aquela coisa que passa de voz em voz e as pessoas se convencem que têm de ver na primeira semana porque é importante. Talvez o único realizador hoje que está trafegando nessa região, e de que a gente vai ver agora o resultado, seja o Jorge Furtado, cujo O Homem que Copiava fez em torno de 700 mil, e Meu Tio Matou um Cara está balançando na mesma esfera. Não vai estourar muito mais do que isso, porque já estamos entrando na fase de lançamento de Oscar, lançamento de tudo, o que vai tomando o circuito dele. Mas vai se manter, já melhorou, porque a semana de lançamento foi péssima pro cinema como um todo, que foi a semana do reveillon, nenhum resultado. Pode chegar a um milhão, mas essa faixa que ele ocupa ninguém mais consegue ocupar.

LCOJr: Um milhão pode até ser uma grande bilheteria no Brasil, mas os filmes do Jorge Furtado podem ser vistos como o protótipo do filme médio.

DC: Um milhão é a bilheteria do filme que se pagou bem, fez jus aos gastos. Sob o aspecto capitalista, pode-se criar um mercado com excepcionais blockbusters, que podem estourar a faixa de 2, 3 milhões, mas com 1 milhão, 700 mil, 800 mil o filme se garante, há mercado. Se o cara quiser filmar constantemente ele não precisa de financiamento a fundo perdido. Ele pode se garantir como filme, em tese, sob o aspecto econômico.

EV: Um filme como o do Bertolucci está na área dos 100 mil, 200 mil. Você pode ter um sucesso de filme de arte, mas nessa base. Se você chutar o seu filme para esse circuito, beleza: ele fica ali e consegue esse êxito. Mas tem esse preconceito no circuito de arte com algumas coisas: o Carlão hoje puxa uma comunicação popular, é lançado no circuito de arte e sofre preconceito dos dois lados. No circuito popular ele não tem a menor possibilidade de se segurar, porque não há relação de comunicação de massa com esse filme, e no circuito de arte ele é tratado como filme, como a gente viu várias vezes até na lista de cinema brasileiro lá do orkut, mal feito, de péssimas atuações, que reflete uma relação com um certo "padrão de qualidade" que não está nas preocupações do Carlão, e a meu ver não precisa estar mesmo. Mas uma coisa interessante é ver que o Carlão não só fez o filme que queria fazer como não esmoreceu e vai fazer a segunda parte.

RG: Jorge Furtado ser o único que transita nessa área de filmes médios, sem grande orçamento, tentando trabalhar nessa faixa de público, se deve ao fato de que ele tem uma certa noção de produto do seu filme que os outros cineastas que querem entrar nessa faixa não têm. Agora, é injusto culpar alguns diretores que têm uma visão de cinema por não terem visão de produto. Mas uma série de filmes que não se sustentam nesse modelo de cineasta claramente gostariam de ter uma concepção de produto que só o Jorge Furtado tem hoje.

DC: E tem Onde Anda Você, do Sergio Rezende, que se pretende ao mesmo tempo comercial e de autor. Você pode dizer que ele não é bem sucedido sob qualquer aspecto, mas que tem pretensão tem.

RG: O Rezende teve seu sucesso com os filmes históricos porque a figuras vendiam o filme, não por qualquer outra coisa. São espetáculos, e ele não tem nenhum cacife extra. Esse último filme foi vendido como Fellini mas é uma bobagem, não tem nada de Fellini.

EV: Eu fiquei surpreso com o público de 50 mil positivamente, não achava que o filme tinha chegado a isso não.

GSJr: O filme tem umas tentativas de comunicação com o público, até em termos de uso de bordão, mas que se faz da forma mais incompetente possível.

DC: Em termos de construção de personagem é muito ruim.

EV: "Fala, palhaço!" [risos]

GSJr: "Fala palhaço" é rico perto de "Porra, Socorrinho, porra!". Aquilo ali é realmente insuportável. O clímax do filme, quando ele encontra o referido palhaço que estaria procurando, é absolutamente idiota, não há clímax possível naquela cena, seja dramático, seja humorístico. Acaba sendo uma mostra de virtuosismo do Aramis Trindade que não se sustenta dramaticamente.

DC: Mas pode-se dizer que o personagem é bem sucedido em termos humorísticos. Boca de Sapo, não é esse o nome?

EV: Esqueci, por incrível que pareça, passou... E tem os filmes que ninguém entendeu, como 1,99.


Parte 1: Um ano de documentários?

Parte 2: O documento e o conceito. O documento não é o conceito.

Parte 4: O cinema como parque temático.

Parte 5: Garotas do ABC e os hábitos do olhar.