CINEMA FALADO, PARTE 4
O cinema como parque temático

RG: Mas para tentar inscrever 1,99 na história das formas do cinema, não só brasileiro, acho que tem algo que se deve muito a um perfil publicitário da imagem de hoje, que é a coisa do cinema como parque temático. 1,99 ilustra à perfeição essa idéia de você usar um supermercado, jogar o máximo de luz possível e construir um parque temático. Você não tem um filme. Nina de uma certa forma é a mesma coisa.

DC: Mas 1,99 ainda tem uma intenção de crítica social que é ridícula.

RG: Mas se aquilo tudo fosse dilacerado e transformado em filmete de um minuto ia dar o mesmo efeito.

EV: E é o que parece ser o formato, parece dentro do Festival do Minuto.

RG: Nina a mesma coisa: um parque temático de Dostoievski. Não é uma adaptação.

DC: Está mais para parque temática da juventude paulistana clubber.

RG: Até fiz a brincadeira de que é uma adaptação interativa de Crime e Castigo, onde o crime seria adaptar Dostoievski e o castigo ficaria a cargo do espectador. [risos] Mas tirando as anedotas, acho que é uma questão a ser vista: existe um lado publicitário que entra no cinema, não de um viés a que a gente estava acostumado, mas desse viés parque temático mesmo. É um pequeno aquário de estranhices e de coisas curiosas ou fofas e que se tenta trabalhar a partir disso, mas é tão aquário que, obviamente, seus limites são vistos desde o começo.

DC: Mas é bem diferente um do outro, porque o Nina você pode facilmente classificar como parque temático, porque cria personagens que são protótipos, enquanto a construção de personagens em 1,99 é altamente discutível, tem essa face pretensamente experimental.

LCOJr: O filme causou um choque em grande medida porque é um tipo de cinema aquário, como o Ruy falou, que a gente está muito acostumado a ver no curta-metragem, esses filminhos que fazem brincadeiras metalingüísticas o tempo todo e arriscam críticas bobocas, mas nunca se tinha visto isso assim tão peculiarmente num longa.

EV: A inadequação do filme ao formato longa-metragem é impressionante.

LCOJr: Se tivesse cinco minutos, você veria como mais um desses filmes-aquário que sempre rolam nos festivais.

GSJr: E seria igualmente ruim.

DC: 80 minutos menos ruim.

EV: Lembro no Festival do Rio que, quando 1,99 foi inscrito, ninguém sabia em que categoria colocar, ficção ou documentário. Se por um lado não é um documentário, por outro não urde uma ficção. É um cinema de crônica, de tese, ensaio.

DC: Pretensamente ele é experimental.

EV: Acabou entrando em ficção, porque no documentário mais claramente não cabia. Foi mais por não caber em um do que por se encaixar no outro. Mas, sobre o viés publicitário, cabe uma outra questão. O filme do Cláudio Torres, o Redentor, para mim foi bastante revelador na hora de pensar o estatuto dessa imagem publicitária.

RG: Filme que também é um parque temático...

EV: Mas o que eu quero discutir é o seguinte: as imagens de Redentor, como as imagens dos filmes da Conspiração de uma forma geral, acabam sendo carregadas por essa questão publicitária, o que na maioria das vezes acabou se tornando um clichê, eu não diria nem crítico, porque é má crítica, mas um clichê resenhístico que perdeu um pouco o sentido e que veio muito à baila esse ano quando surgiu a questão do Olga com a imagem televisiva.


EV: ...Ele inclusive tematiza isso numa cena, especificamente, em que torna a coisa metalingüística – a cena em que a Camila Pitanga vem carregando aquele balde de água no corredor, e aí incide aquela luz refletida de água, clássica de imagens esteticamente alteradas para causar um efeito, e o personagem do Pedro Cardoso chega e diz: "Não, pára aí, que agora essa imagem tá linda!". É o melhor momento da imagem... Quer dizer, ele bota na própria discussão do filme, ele deixa muito claro que o próprio tratamento fotográfico daquela imagem é assunto do próprio filme, ele não finge que está filmando, como qualquer outra pessoa está filmando e alterando a imagem o tempo inteiro, sem ter consciência disso.

DC: Mas essa é uma discussão do próprio filme?

EV: Eu acho que é.

LCOJr: Entra também na discussão do como chegar nesse lugar, nessa favela, e se produzir dali uma imagem. É um filme claramente pós toda aquela discussão sobre cosmética da fome.

EV: E o que eu acho interessante nesse tipo de approach, com relação ao Nina, é que nele você tem um escamoteamento dessa questão. Há a noção de que a imagem publicitária geralmente é tratada excessivamente para causar um efeito estético que a qualificaria. E eu acho que não, acho que a imagem publicitária realmente é tratada esteticamente para causar um determinado efeito, só que sem nenhum significado para além disso, quer dizer, tudo que ela deseja obter é aquele efeito estético, e com ele, no caso da publicidade de fato, vender uma idéia, vender alguma coisa, vender um produto. E eu acho que essa confusão ficou muito estabelecida, e a gente já teve a chance de desestruturá-la antes com o filme do Andrucha, o Eu, Tu, Eles, onde você já tinha algumas das questões colocadas, mas elas estavam fora de lugar, porque você embelezar, você ter uma preocupação estética com a sua imagem não é um tratamento publicitário. E é preciso bater muito nessa tecla, porque no Nina sim toda a preocupação com a fotografia não indica nada além de sua própria beleza de fotografia, que vem de um universo jovem, paulista etc etc. Porque ele em si não significa nada, a forma com que aquelas pessoas estão sendo filmadas não tem significado para além da superfície. E no Redentor não, ele tem esse significado. Se esse significado é bem trabalhado, ou se não é, ou o que ele quer dizer, isso é uma discussão interessante e eu acho que a gente pode levá-la adiante, mas é importante diferenciar essas duas coisas, da estética publicitária e da estética televisiva, porque são duas das coisas mais clichês e chatas que se criou e se discute, como se fosse uma coisa só, de compreensão fácil e que resolvesse todos os problemas. O menor dos problemas do Olga é ter uma estética televisiva e o não-problema do Redentor é ele ter uma estética publicitária. Ele pode ter vários outros problemas, como tem, e tem várias outras qualidades, mas você diminuir a discussão cria um clichê crítico que não faz o menor sentido.

LCOJr: E o que é a estética publicitária? Peço a uma pessoa que usa esse jargão para definir o que é. Se ela começar a falar, assim, num certo tratamento de imagem, uso excessivo de filtros etc, você pode dizer: "mas isso existe no cinema desde os anos 70, a origem está ali". Podemos perguntar também: "Por que essa é uma estética publicitária? Por que não é uma estética ‘cinema anos 80’?". Mesma coisa com a linguagem televisiva. Alguém diz: "Ah, é essa linguagem de campo-contracampo, terminando com um master shot...". Tudo bem, mas no cinema dos anos 30 você vai ver isso aos borbotões...

DC: O Júnior chegou a comentar que esse filme, Redentor, é um filme pós-cosmética da fome. Bem, certamente tudo isso aí entra no filme ao longo de sua feitura, mas o roteiro do filme foi feito há uns cinco anos, talvez um pouco mais, e ele está filmado há uns dois anos, demorou um pouco pra ficar pronto... Enfim, tudo entra, de uma certa forma, porque é parte do debate, mas isso não resolve.

RG: O filme é cheio de problemas que ele não resolve bem, a questão do tratamento de favelas etc. Muito pelo contrário, é um filme de terror, e você rivalizar uma questão de gênero com uma questão social existente, das mazelas da desigualdade social do Brasil, é muito problemático. O filme em muitos momentos parece auto-consciente dessa bizarrice.

EV: Um dos meus pontos de interesse do filme é que ele não está inconsciente dos problemas que carrega. E acho que o terror surge mais na segunda parte, pois ele trafega entre a chanchada social e o terror e assume isso dos dois lados. O que ele tenta assumir ali é que não tem outra forma de lidar com aquele material como se vê por aí, seja como realizador ou como filme, não importa. O realismo para ele simplesmente não dá mais conta dessas questões, da forma que elas em si são surreais, por assim dizer. Nessa luta de classes estilizada, o realismo não dá mais conta. E ao mesmo tempo tem uma esquizofrenia muito grande naquilo tudo.

RG: Quando ele advoga que o realismo não é a maneira de trabalhar, ele surge com o maneirismo, mas ele não sabe como fazer com que esse maneirismo volte a falar do mundo. Então cria esse tipo de esquizofrenia sem saber o que falar.

DC: E o que ele tem pra dizer do mundo é muito esquisito. Ele é cético, ele é irônico... e aí ele acaba descambando num cinismo muito estranho.

RG: É uma posição de uma 'classe superior', uma 'classe intelectual', tentando ver uma coisa que não entende.

DC: É um cinismo de elite, no pior sentido possível.

RG: Faz sentido voltar a falar da questão do cinema "parque temático", do cinema de aquário, ou de uma visão de aquário que a classe superior tem das outras classes, e que existe em diversos outros filmes da Conspiração, como nos curtas a partir de Nelson Rodrigues, em Traição, ou em O Homem do Ano. Essa visão esse ano não está no filme da Conspiração, mas está no Contra Todos, por exemplo, que é um grande "parque temático" também, só que não é de Nelson Rodrigues, é de uma outra origem.

DC: Não sei se eu classificaria como "parque temático" não...

RG: É um parque temático, porque você joga Dogma em cima e acha que filmando Festa de Família numa periferia vai conseguir outros resultados.

DC: Meu problema no Contra Todos é que o nome anuncia aquela questão em que o ser humano é mau, as pessoas são sujas.

EV: É, mas não é por acaso que ele vai buscar isso na periferia.

RG: Pois é, não é só o ser humano... Se você quer fazer isso, você vai a Nelson Rodrigues, que faz Álbum de Família e abstrai a família inclusive de qualquer espaço específico: aquela casa da peça não pertence a uma cidade, não pertence a uma classe, não pertence a nada, é um universo mítico. Como Dogville, por exemplo, é um universo mítico. Contra Todos não, é num lugar bem delineado.

DC: Sim, claro, mas fosse ele no subúrbio ou fosse uma visão negativa da elite...

EV: Não, mas ele não seria da elite, essa é a questão.

DC: Mas existem vários filmes que mostram, a partir da elite, como o ser humano é sujo. Acho que o problema passa muito por aí.

EV: Contra Todos, enquanto olha para aquele espaço, está solucionado na questão de ser filme que fascine e interesse o olhar do Fernando Meirelles. Ele está pegando um exemplo de olhar muito semelhante, no que tem de tipificante, e simplesmente o que aconteceu foi que se trocou uma estética por outra – uma que agrade mais ao grande público e ao domínio de uma certa cinematografia e um outro pelo viés contrário, mas que vai pela mesma lógica. Mas eu só queria voltar ao Redentor no sentido de que eu acho que tem uma coisa no filme que me interessa – com tudo que eu reconheço disso que vocês apontaram – que é o fato dele apresentar na sua forma uma angústia. Eu acho que o filme em nenhum momento está satisfeito em ser essa forma de dar conta do mundo. O filme, junto a estar angustiado com aquilo tudo, está angustiado com ele mesmo, está problematizando a si mesmo o tempo inteiro. Ás vezes ele pode se resolver cinematograficamente, e muitas vezes não, mas eu não vejo um filme com tranqüilidade de olhar.

RG: Não, certamente.

DC: Tanto que é um filme que depende de Deus, no fim das contas.

EV: Enquanto tem vários outros filmes que tipificam esse comportamento por um naturalismo que esconde essa problematização do olhar. Inclusive nas próprias telenovelas da Globo, em vários momentos, quando elas vão tratar das classes populares etc, você vê uma naturalização de tratamento, como se aquela naturalização fake fosse simplesmente realista e estivesse resolvida nisso. Redentor tem uma dificuldade, tem um cara colocando: "Olha, eu simplesmente não sei entrar nesse lugar e usar outro arcabouço de imagens que não seja essa completa esquizofrenia, porque como é que eu vou lidar com isso aqui?".

RG: Nesse sentido o filme mostra o esqueleto, ele não deixa de ser maneirista por causa disso, mas ele mostra o esqueleto.

LCOJr: Mas o filme não consegue descacetar. Até sugere que gostaria de conseguir, mas não acontece.

EV: Tem a culpa, tem a culpa...

DC: E é preciso que se diga o seguinte: a gente pode encontrar esse interesse no filme, mas aí estamos encontrando interesse nos problemas, nas limitações do filme. Porque naquilo que ele propõe de positivo é bastante frágil, não se sustenta.

RG: Ele não consegue propor nada, ele é balbuciante nesse sentido. Mas isso já aponta para um tipo de questionamento da imagem, de como tratar o que você está querendo fazer.

LCOJr: Até no trabalho com o cinema de gêneros. Mas o filme sempre me passa a lembrança daquela brincadeira de que alguém tinha que fazer um neo-slasher de um grupo de playboys que se perdem na Linha Amarela, entram numa favela e vão sendo mortos um por um. Redentor me parece o filme mais próximo dessa idéia, mas feito por alguém que tem uma culpa, tem no fundo uma consciência, uma má consciência, e aí o resultado não poderia ser outro, é esquizofrênico.

EV: O interessante é que, por exemplo, quando o Walter Salles dá uma entrevista na Trip onde ele assume, não só no discurso cinematográfico mas num discurso pessoal, a inevitabilidade de um cineasta – no caso dele, mas independe de ser um cineasta ou não –, de uma figura no estrato social que ele ocupa, de possuir uma profunda culpa já de saída. Ele admite isso no discurso, só que os filmes dele não admitem isso, os filmes dele incorporam isso, como ele vê as pessoas. Mas eles não estão problematizando isso o tempo inteiro, isso não é questão dos filmes do Walter Salles. É, entretanto, uma questão do filme do Cláudio Torres. Porque a relação toda entre o Falabella e o Pedro Cardoso e depois entre o Pedro Cardoso e os favelados, isso é assunto do filme, a dificuldade de colocação no mundo do autor. Então, nesse ponto me interessa mais ver nos sucessos e nos insucessos o que ele está fazendo ali.

DC: Eu queria lembrar que essa questão do Walter Salles é ainda mais problemática, confusa e complexa, porque ele sabe que não está problematizando o seu papel e faz isso porque quer. Isso a gente vê no Abril Despedaçado, em que no livro tinham duas histórias: uma é a história que o filme conta e a outra, que não interessa a ele mostrar, é a história de um intelectual que recolhe histórias do seu povo se colocando em crise diante do seu papel, "ah, eu estou criando simplificações". E essa analogia poderia ser aproveitada, mas não é o que interessa a ele, e isso eu acho que torna a coisa mais complexa: ele sabe dessa questão e simplesmente acha que ela não é importante pra ser contada.

LCOJr: E tem o detalhe, no livro, de que a saída do intelectual em direção ao povo arruína seu casamento recente, arruína a lua-de-mel e faz uma fratura irreversível na vida dele.

DC: Então, de certa maneira, problematizar o seu papel diante de tudo isso é uma coisa que não interessa dentro dessa culpa, ele tem apenas que cumprir uma função histórica.

EV: O máximo que ele vai fazer é esse retrato do Che, onde o Che se transforma numa figura que atravessa essa fronteira.

DC: Isso soa cruel porque é o mais fraco filme dele, o mais mitificante e frágil.

EV: É extremamente cruel que ele tenha feito isso nesse ano que a gente está debatendo. Então não dá para deixar de falar dele, até porque, o que é uma das questões problemáticas, o Globo de Ouro autorizou o filme como brasileiro, apareceu lá na tela, Motorcycle Diaries, Brazil.

GSJr: Estava lá no site deles também.

EV: Embora a gente saiba, por todos os motivos do mundo, que não é um filme brasileiro, então não deveria ser assunto do Cinema Falado, eu acho que não se pode ignorar o fato de que numa série de espaços, internos e fora do Brasil, é reconhecido como um filme brasileiro a partir do diretor, então é interessante ver que a trajetória do Walter Salles continua ligada ao cinema brasileiro e sempre continuará.

DC: E o ponto mais frágil do filme é justamente esse aspecto de "parque temático", de um "verdadeiro povo latino-americano" sendo descoberto por uma figura de espírito livre, que vai se transformar a partir disso.

GSJr: "Coitadinha da América Latina...".

EV: Tem duas questões complicadas no filme, a primeira é essa e a segunda é o fato de que a opção por uma certa juventude do Che é muito lógica. Tem uma série de desculpas para que ela seja válida, do tipo "estamos contando uma história, não a história completa, não se pode resumir a vida de uma pessoa num filme". Há inúmeras desculpas e todas vão funcionar, mas ainda assim a gente vai ter que parar e dizer que é muito sintomático, especialmente no ano de Olga e de Cazuza.

RG: De Glauber – O Filme...

EV: De pegar o Che Guevara e transformá-lo numa figura da compaixão, porque a forma cinematográfica com aquilo é montado é questionável também... Mas, em suma, abstraindo isso por um segundo, a conclusão final do filme, que é a da compaixão, é muito típica de uma época em que, a partir dessa constatação, abrimos uma ONG. O filme estrutura toda a lógica que justifica uma ONG, no máximo, nunca uma revolução. É a única conclusão a que se chega depois disso. Só que a questão é que o Che Guevara não abriu uma ONG depois de viver aquilo e sair do leprosário, e o filme constrói uma lógica de quem abriu uma ONG, e é filmado com os olhos de quem abriria uma ONG.

LCOJr: E agrada ao público que simpatiza com essa idéia de ONGs.

EV: O filme agrada ao público que abriria uma ONG, que no Natal Sem Fome doaria, uma vez por ano, alimentos para que alguém passe bem o natal com sua família, mas jamais dá conta do que o personagem é, de onde ele é...

DC: Não dá conta da figura do guerrilheiro.

EV: E isso não acho que seja uma questão biográfica, acho que mesmo nesse momento o seu olhar poderia ser completamente diferente sobre a figura dele e sobre o que aquele momento ali significou. Mas a opção pelo viés da compaixão é muito clara e muito radical. É muito interessante pensar na dualidade que todos esses filmes fizeram, a dualidade de tornar essas figuras mito, que elas já são, e ao mesmo tempo querer reforçar que elas são pessoas como qualquer um de nós. É um jogo duplo muito interessante, porque nas duas formas tentaram esvaziar o potencial de revolução dessas figuras. A "pessoa como uma de nós" geralmente se dá pelo viés da família, todo mundo tem família, tem pai, tem mãe, então todo mundo é compreendido e assimilável, "ah, é apenas mais um filho", e tal... E por outro lado, a pessoa se torna mito quando tem comportamentos mais desviantes, se torna mito porque aí não é uma coisa em que qualquer um de nós pode se transformar nas opções que eles fizeram, então você personaliza quando interessa e mitifica quando interessa, e dos dois lados saem umas figuras que abrem ONGs, se apaixonam, viram mães, acima de tudo, ou são ícones da luta contra a AIDS, como se a grande luta política do Cazuza fosse ter encarado a AIDS de frente. Você torna a briga apenas isso.

DC: Nisso vem o interesse do filme do Nelson, porque entre os dois filmes ele cria um hiato que é justamente o mais interessante, é onde você fica sem poder se posicionar confortavelmente. Mas o grande problema desse filme do Walter Salles, quando eu disse que acho que é o pior filme dele, é porque no fascínio que ele tinha por determinados mundos ele transmitia algo mais interessante, para mim, nos seus outros filmes. Esse fica com uma cara de National Geographic.

LCOJr: O filme se coloca como um road-movie mesmo, que teoricamente é uma especialidade do Walter Salles.

DC: O tempo todo ele soa muito óbvio, ao contrário dos outros filmes, em que essa obviedade tinha algo de magnética, de emocionante. Mesmo nos filmes em que muita gente viu problemas, eu vi nisso algo mais interessante. Eu cheguei a comentar com vocês na época: teve um trabalho no filme que eu achei interessante, o da fotografia do filme, que é impressionante, e eu me desliguei do que estava acontecendo um pouco, porque me desinteressa; a partir de alguns minutos eu ficava muito mais curioso com o fato do fotógrafo do filme tê-lo feito praticamente sem refletores, quase só com rebatedores e luz natural, em diversas latitudes e altitudes, o que transforma o filme numa experiência visual interessantíssima. Mas como narrativa ele se estrutura de uma forma óbvia e, pior do que óbvio, pouco interessante, pouco fascinada.

LCOJr: Narrativa fraca mesmo dentro da estrutura que mobiliza.

RG: E é curioso como o filme marca, mais do que Abril Despedaçado – que mal ou bem era brasileiro sob todos os aspectos, mesmo que produzido por fora –, um passo que o Walter Salles vai seguir, ao menos em alguma medida, que é o de um cineasta do terceiro mundo que faz filmes para um circuito internacional.

EV: Que detém a palavra sobre as questões do terceiro mundo...

RG: Ou seja, vai ser como o Iñarrítu no México, vai ser aquele cineasta com uma ideologia específica e que vai ser visto como exótico ou mais outro, e que se adequa na própria feitura do filme a substituir uma complexidade de certos fatores por certos índices que são "legais" de discutir, que são moda, que o olho exterior já espera ver no Outro.

EV: E nesse ponto é muito rica a comparação que o Cléber fez no texto da revista, entre o Diários de Motocicleta e O Pântano, porque foram lançados na mesma época, mas o filme do Walter Salles acabou passando no Festival de Cannes junto com o filme novo da Lucrecia Martel, La Niña Santa, e é muito interessante ver como a recepção dos filmes é diferenciada nesse ponto. La Niña Santa não tem esse tipo de recepção, mesmo que se tente eventualmente, mas ele não consegue cair no escaninho do cinema latino-americano terceiro-mundista, ele é um cinema antes de tudo humano, daquelas relações, então ele acaba se confundindo. Não por acaso boa parte dos fundos dele é europeu, e ele acaba se confundindo com uma certa produção, é um filme que acaba sendo muito menos representativo, a partir de Cannes, por exemplo, a partir de onde ele circula e repercute, por causa disso, porque ali você não consegue ver a Latino-América, a Argentina, o Brasil. Então é interessante pensar essa opção. Agora, o que me interessa muito dentro dessa questão do cinema brasileiro são os dois filmes estrangeiros, o do Walter Salles e o do Fernando Meirelles. Porque o do Fernando eu não sei muita coisa, apesar dele ter divulgado bem, eu não acompanhei aquele blog, que disseram que foi uma das coisas mais interessantes que teve esse ano: ele fez um blog diário com as filmagens e parece que foi muito interessante, em vários sentidos, mas eu não acompanhei. Mas o do Waltinho eu sei que é um filme de gênero, dentro dessa onda de releituras do cinema japonês de horror para os EUA. Então é completamente estranho porque vai na contramão do trajeto interno dele.

DC : Do que se esperaria que ele fizesse.

EV: E por outro lado, as primeiras indicações, tanto do Walter, que eu andei lendo, quanto da recepção do filme são de um filme menor, desimportante, e eu fico pensando se não se transformará em um A Grande Arte de uma carreira internacionalista, em que ele tenta exercitar certas coisas e logo se desinteressa por elas. Mas é uma coisa interessante, que vai nos interessar esse ano, acho.

Parte 1: Um ano de documentários?

Parte 2: O documento e o conceito. O documento não é o conceito.

Parte 3: Um passeio pelo mercado.

Parte 5: Garotas do ABC e os hábitos do olhar.