RG:
Mas para tentar inscrever 1,99 na história
das formas do cinema, não só brasileiro,
acho que tem algo que se deve muito a um perfil publicitário
da imagem de hoje, que é a coisa do cinema como
parque temático. 1,99 ilustra à
perfeição essa idéia de você
usar um supermercado, jogar o máximo de luz possível
e construir um parque temático. Você não
tem um filme. Nina de uma certa forma é
a mesma coisa.
DC: Mas 1,99 ainda tem uma intenção
de crítica social que é ridícula.
RG: Mas se aquilo tudo fosse dilacerado e transformado
em filmete de um minuto ia dar o mesmo efeito.
EV: E é o que parece ser o formato, parece dentro
do Festival do Minuto.
RG: Nina a mesma coisa: um parque temático
de Dostoievski. Não é uma adaptação.
DC: Está mais para parque temática da
juventude paulistana clubber.
RG: Até fiz a brincadeira de que é uma
adaptação interativa de Crime e Castigo,
onde o crime seria adaptar Dostoievski e o castigo ficaria
a cargo do espectador. [risos] Mas tirando as
anedotas, acho que é uma questão a ser
vista: existe um lado publicitário que entra
no cinema, não de um viés a que a gente
estava acostumado, mas desse viés parque temático
mesmo. É um pequeno aquário de estranhices
e de coisas curiosas ou fofas e que se tenta trabalhar
a partir disso, mas é tão aquário
que, obviamente, seus limites são vistos desde
o começo.
DC: Mas é bem diferente um do outro, porque o
Nina você pode facilmente classificar como
parque temático, porque cria personagens que
são protótipos, enquanto a construção
de personagens em 1,99 é altamente discutível,
tem essa face pretensamente experimental.
LCOJr: O filme causou um choque em grande medida porque
é um tipo de cinema aquário, como o Ruy
falou, que a gente está muito acostumado a ver
no curta-metragem, esses filminhos que fazem brincadeiras
metalingüísticas o tempo todo e arriscam
críticas bobocas, mas nunca se tinha visto isso
assim tão peculiarmente num longa.
EV: A inadequação do filme ao formato
longa-metragem é impressionante.
LCOJr: Se tivesse cinco minutos, você veria como
mais um desses filmes-aquário que sempre rolam
nos festivais.
GSJr: E seria igualmente ruim.
DC: 80 minutos menos ruim.
EV: Lembro no Festival do Rio que, quando 1,99
foi inscrito, ninguém sabia em que categoria
colocar, ficção ou documentário.
Se por um lado não é um documentário,
por outro não urde uma ficção.
É um cinema de crônica, de tese, ensaio.
DC: Pretensamente ele é experimental.
EV: Acabou entrando em ficção, porque
no documentário mais claramente não cabia.
Foi mais por não caber em um do que por se encaixar
no outro. Mas, sobre o viés publicitário,
cabe uma outra questão. O filme do Cláudio
Torres, o Redentor, para mim foi bastante revelador
na hora de pensar o estatuto dessa imagem publicitária.
RG: Filme que também é um parque temático...
EV: Mas o que eu quero discutir é o seguinte:
as imagens de Redentor, como as imagens dos filmes
da Conspiração de uma forma geral, acabam
sendo carregadas por essa questão publicitária,
o que na maioria das vezes acabou se tornando um clichê,
eu não diria nem crítico, porque é
má crítica, mas um clichê resenhístico
que perdeu um pouco o sentido e que veio muito à
baila esse ano quando surgiu a questão do Olga
com a imagem televisiva.
EV: ...Ele inclusive tematiza isso numa cena, especificamente,
em que torna a coisa metalingüística a
cena em que a Camila Pitanga vem carregando aquele balde
de água no corredor, e aí incide aquela
luz refletida de água, clássica de imagens
esteticamente alteradas para causar um efeito, e o personagem
do Pedro Cardoso chega e diz: "Não, pára
aí, que agora essa imagem tá linda!".
É o melhor momento da imagem... Quer dizer, ele
bota na própria discussão do filme, ele
deixa muito claro que o próprio tratamento fotográfico
daquela imagem é assunto do próprio filme,
ele não finge que está filmando, como
qualquer outra pessoa está filmando e alterando
a imagem o tempo inteiro, sem ter consciência
disso.
DC: Mas essa é uma discussão do próprio
filme?
EV: Eu acho que é.
LCOJr: Entra também na discussão do como
chegar nesse lugar, nessa favela, e se produzir dali
uma imagem. É um filme claramente pós
toda aquela discussão sobre cosmética
da fome.
EV: E o que eu acho interessante nesse tipo de approach,
com relação ao Nina, é que
nele você tem um escamoteamento dessa questão.
Há a noção de que a imagem publicitária
geralmente é tratada excessivamente para causar
um efeito estético que a qualificaria. E eu acho
que não, acho que a imagem publicitária
realmente é tratada esteticamente para causar
um determinado efeito, só que sem nenhum significado
para além disso, quer dizer, tudo que ela deseja
obter é aquele efeito estético, e com
ele, no caso da publicidade de fato, vender uma idéia,
vender alguma coisa, vender um produto. E eu acho que
essa confusão ficou muito estabelecida, e a gente
já teve a chance de desestruturá-la antes
com o filme do Andrucha, o Eu, Tu, Eles, onde
você já tinha algumas das questões
colocadas, mas elas estavam fora de lugar, porque você
embelezar, você ter uma preocupação
estética com a sua imagem não é
um tratamento publicitário. E é preciso
bater muito nessa tecla, porque no Nina sim toda
a preocupação com a fotografia não
indica nada além de sua própria beleza
de fotografia, que vem de um universo jovem, paulista
etc etc. Porque ele em si não significa nada,
a forma com que aquelas pessoas estão sendo filmadas
não tem significado para além da superfície.
E no Redentor não, ele tem esse significado.
Se esse significado é bem trabalhado, ou se não
é, ou o que ele quer dizer, isso é uma
discussão interessante e eu acho que a gente
pode levá-la adiante, mas é importante
diferenciar essas duas coisas, da estética publicitária
e da estética televisiva, porque são duas
das coisas mais clichês e chatas que se criou
e se discute, como se fosse uma coisa só, de
compreensão fácil e que resolvesse todos
os problemas. O menor dos problemas do Olga é
ter uma estética televisiva e o não-problema
do Redentor é ele ter uma estética
publicitária. Ele pode ter vários outros
problemas, como tem, e tem várias outras qualidades,
mas você diminuir a discussão cria um clichê
crítico que não faz o menor sentido.
LCOJr: E o que é a estética publicitária?
Peço a uma pessoa que usa esse jargão
para definir o que é. Se ela começar a
falar, assim, num certo tratamento de imagem, uso excessivo
de filtros etc, você pode dizer: "mas isso existe
no cinema desde os anos 70, a origem está ali".
Podemos perguntar também: "Por que essa é
uma estética publicitária? Por que não
é uma estética cinema anos 80?".
Mesma coisa com a linguagem televisiva. Alguém
diz: "Ah, é essa linguagem de campo-contracampo,
terminando com um master shot...". Tudo bem,
mas no cinema dos anos 30 você vai ver isso aos
borbotões...
DC: O Júnior chegou a comentar que esse filme,
Redentor, é um filme pós-cosmética
da fome. Bem, certamente tudo isso aí entra no
filme ao longo de sua feitura, mas o roteiro do filme
foi feito há uns cinco anos, talvez um pouco
mais, e ele está filmado há uns dois anos,
demorou um pouco pra ficar pronto... Enfim, tudo entra,
de uma certa forma, porque é parte do debate,
mas isso não resolve.
RG: O filme é cheio de problemas que ele não
resolve bem, a questão do tratamento de favelas
etc. Muito pelo contrário, é um filme
de terror, e você rivalizar uma questão
de gênero com uma questão social existente,
das mazelas da desigualdade social do Brasil, é
muito problemático. O filme em muitos momentos
parece auto-consciente dessa bizarrice.
EV: Um dos meus pontos de interesse do filme é
que ele não está inconsciente dos problemas
que carrega. E acho que o terror surge mais na segunda
parte, pois ele trafega entre a chanchada social e o
terror e assume isso dos dois lados. O que ele tenta
assumir ali é que não tem outra forma
de lidar com aquele material como se vê por aí,
seja como realizador ou como filme, não importa.
O realismo para ele simplesmente não dá
mais conta dessas questões, da forma que elas
em si são surreais, por assim dizer. Nessa luta
de classes estilizada, o realismo não dá
mais conta. E ao mesmo tempo tem uma esquizofrenia muito
grande naquilo tudo.
RG: Quando ele advoga que o realismo não é
a maneira de trabalhar, ele surge com o maneirismo,
mas ele não sabe como fazer com que esse maneirismo
volte a falar do mundo. Então cria esse tipo
de esquizofrenia sem saber o que falar.
DC: E o que ele tem pra dizer do mundo é muito
esquisito. Ele é cético, ele é
irônico... e aí ele acaba descambando num
cinismo muito estranho.
RG: É uma posição de uma 'classe
superior', uma 'classe intelectual', tentando ver uma
coisa que não entende.
DC: É um cinismo de elite, no pior sentido possível.
RG: Faz sentido voltar a falar da questão do
cinema "parque temático", do cinema de aquário,
ou de uma visão de aquário que a classe
superior tem das outras classes, e que existe em diversos
outros filmes da Conspiração, como nos
curtas a partir de Nelson Rodrigues, em Traição,
ou em O Homem do Ano. Essa visão esse
ano não está no filme da Conspiração,
mas está no Contra Todos, por exemplo,
que é um grande "parque temático" também,
só que não é de Nelson Rodrigues,
é de uma outra origem.
DC: Não sei se eu classificaria como "parque
temático" não...
RG: É um parque temático, porque você
joga Dogma em cima e acha que filmando Festa de Família
numa periferia vai conseguir outros resultados.
DC: Meu problema no Contra Todos é que
o nome anuncia aquela questão em que o ser humano
é mau, as pessoas são sujas.
EV: É, mas não é por acaso que
ele vai buscar isso na periferia.
RG: Pois é, não é só o ser
humano... Se você quer fazer isso, você
vai a Nelson Rodrigues, que faz Álbum de Família
e abstrai a família inclusive de qualquer espaço
específico: aquela casa da peça não
pertence a uma cidade, não pertence a uma classe,
não pertence a nada, é um universo mítico.
Como Dogville, por exemplo, é um universo
mítico. Contra Todos não, é
num lugar bem delineado.
DC: Sim, claro, mas fosse ele no subúrbio ou
fosse uma visão negativa da elite...
EV: Não, mas ele não seria da elite, essa
é a questão.
DC: Mas existem vários filmes que mostram, a
partir da elite, como o ser humano é sujo. Acho
que o problema passa muito por aí.
EV: Contra Todos, enquanto olha para aquele espaço,
está solucionado na questão de ser filme
que fascine e interesse o olhar do Fernando Meirelles.
Ele está pegando um exemplo de olhar muito semelhante,
no que tem de tipificante, e simplesmente o que aconteceu
foi que se trocou uma estética por outra uma
que agrade mais ao grande público e ao domínio
de uma certa cinematografia e um outro pelo viés
contrário, mas que vai pela mesma lógica.
Mas eu só queria voltar ao Redentor no
sentido de que eu acho que tem uma coisa no filme que
me interessa com tudo que eu reconheço disso
que vocês apontaram que é o fato dele
apresentar na sua forma uma angústia. Eu acho
que o filme em nenhum momento está satisfeito
em ser essa forma de dar conta do mundo. O filme, junto
a estar angustiado com aquilo tudo, está angustiado
com ele mesmo, está problematizando a si mesmo
o tempo inteiro. Ás vezes ele pode se resolver
cinematograficamente, e muitas vezes não, mas
eu não vejo um filme com tranqüilidade de
olhar.
RG: Não, certamente.
DC: Tanto que é um filme que depende de Deus,
no fim das contas.
EV: Enquanto tem vários outros filmes que tipificam
esse comportamento por um naturalismo que esconde essa
problematização do olhar. Inclusive nas
próprias telenovelas da Globo, em vários
momentos, quando elas vão tratar das classes
populares etc, você vê uma naturalização
de tratamento, como se aquela naturalização
fake fosse simplesmente realista e estivesse
resolvida nisso. Redentor tem uma dificuldade,
tem um cara colocando: "Olha, eu simplesmente não
sei entrar nesse lugar e usar outro arcabouço
de imagens que não seja essa completa esquizofrenia,
porque como é que eu vou lidar com isso aqui?".
RG: Nesse sentido o filme mostra o esqueleto, ele não
deixa de ser maneirista por causa disso, mas ele mostra
o esqueleto.
LCOJr: Mas o filme não consegue descacetar. Até
sugere que gostaria de conseguir, mas não acontece.
EV: Tem a culpa, tem a culpa...
DC: E é preciso que se diga o seguinte: a gente
pode encontrar esse interesse no filme, mas aí
estamos encontrando interesse nos problemas, nas limitações
do filme. Porque naquilo que ele propõe de positivo
é bastante frágil, não se sustenta.
RG: Ele não consegue propor nada, ele é
balbuciante nesse sentido. Mas isso já aponta
para um tipo de questionamento da imagem, de como tratar
o que você está querendo fazer.
LCOJr: Até no trabalho com o cinema de gêneros.
Mas o filme sempre me passa a lembrança daquela
brincadeira de que alguém tinha que fazer um
neo-slasher de um grupo de playboys que se perdem
na Linha Amarela, entram numa favela e vão sendo
mortos um por um. Redentor me parece o filme
mais próximo dessa idéia, mas feito por
alguém que tem uma culpa, tem no fundo uma consciência,
uma má consciência, e aí o resultado
não poderia ser outro, é esquizofrênico.
EV: O interessante é que, por exemplo, quando
o Walter Salles dá uma entrevista na Trip onde
ele assume, não só no discurso cinematográfico
mas num discurso pessoal, a inevitabilidade de um cineasta
no caso dele, mas independe de ser um cineasta ou
não , de uma figura no estrato social que ele
ocupa, de possuir uma profunda culpa já de saída.
Ele admite isso no discurso, só que os filmes
dele não admitem isso, os filmes dele incorporam
isso, como ele vê as pessoas. Mas eles não
estão problematizando isso o tempo inteiro, isso
não é questão dos filmes do Walter
Salles. É, entretanto, uma questão do
filme do Cláudio Torres. Porque a relação
toda entre o Falabella e o Pedro Cardoso e depois entre
o Pedro Cardoso e os favelados, isso é assunto
do filme, a dificuldade de colocação no
mundo do autor. Então, nesse ponto me interessa
mais ver nos sucessos e nos insucessos o que ele está
fazendo ali.
DC: Eu queria lembrar que essa questão do Walter
Salles é ainda mais problemática, confusa
e complexa, porque ele sabe que não está
problematizando o seu papel e faz isso porque quer.
Isso a gente vê no Abril Despedaçado,
em que no livro tinham duas histórias: uma é
a história que o filme conta e a outra, que não
interessa a ele mostrar, é a história
de um intelectual que recolhe histórias do seu
povo se colocando em crise diante do seu papel, "ah,
eu estou criando simplificações". E essa
analogia poderia ser aproveitada, mas não é
o que interessa a ele, e isso eu acho que torna a coisa
mais complexa: ele sabe dessa questão e simplesmente
acha que ela não é importante pra ser
contada.
LCOJr: E tem o detalhe, no livro, de que a saída
do intelectual em direção ao povo arruína
seu casamento recente, arruína a lua-de-mel e
faz uma fratura irreversível na vida dele.
DC: Então, de certa maneira, problematizar o
seu papel diante de tudo isso é uma coisa que
não interessa dentro dessa culpa, ele tem apenas
que cumprir uma função histórica.
EV: O máximo que ele vai fazer é esse
retrato do Che, onde o Che se transforma numa figura
que atravessa essa fronteira.
DC: Isso soa cruel porque é o mais fraco filme
dele, o mais mitificante e frágil.
EV: É extremamente cruel que ele tenha feito
isso nesse ano que a gente está debatendo. Então
não dá para deixar de falar dele, até
porque, o que é uma das questões problemáticas,
o Globo de Ouro autorizou o filme como brasileiro, apareceu
lá na tela, Motorcycle Diaries, Brazil.
GSJr: Estava lá no site deles também.
EV: Embora a gente saiba, por todos os motivos do mundo,
que não é um filme brasileiro, então
não deveria ser assunto do Cinema Falado, eu
acho que não se pode ignorar o fato de que numa
série de espaços, internos e fora do Brasil,
é reconhecido como um filme brasileiro a partir
do diretor, então é interessante ver que
a trajetória do Walter Salles continua ligada
ao cinema brasileiro e sempre continuará.
DC: E o ponto mais frágil do filme é justamente
esse aspecto de "parque temático", de um "verdadeiro
povo latino-americano" sendo descoberto por uma figura
de espírito livre, que vai se transformar a partir
disso.
GSJr: "Coitadinha da América Latina...".
EV: Tem duas questões complicadas no filme, a
primeira é essa e a segunda é o fato de
que a opção por uma certa juventude do
Che é muito lógica. Tem uma série
de desculpas para que ela seja válida, do tipo
"estamos contando uma história, não a
história completa, não se pode resumir
a vida de uma pessoa num filme". Há inúmeras
desculpas e todas vão funcionar, mas ainda assim
a gente vai ter que parar e dizer que é muito
sintomático, especialmente no ano de Olga
e de Cazuza.
RG: De Glauber O Filme...
EV: De pegar o Che Guevara e transformá-lo numa
figura da compaixão, porque a forma cinematográfica
com aquilo é montado é questionável
também... Mas, em suma, abstraindo isso por um
segundo, a conclusão final do filme, que é
a da compaixão, é muito típica
de uma época em que, a partir dessa constatação,
abrimos uma ONG. O filme estrutura toda a lógica
que justifica uma ONG, no máximo, nunca uma revolução.
É a única conclusão a que se chega
depois disso. Só que a questão é
que o Che Guevara não abriu uma ONG depois de
viver aquilo e sair do leprosário, e o filme
constrói uma lógica de quem abriu uma
ONG, e é filmado com os olhos de quem abriria
uma ONG.
LCOJr: E agrada ao público que simpatiza com
essa idéia de ONGs.
EV: O filme agrada ao público que abriria uma
ONG, que no Natal Sem Fome doaria, uma vez por ano,
alimentos para que alguém passe bem o natal com
sua família, mas jamais dá conta do que
o personagem é, de onde ele é...
DC: Não dá conta da figura do guerrilheiro.
EV: E isso não acho que seja uma questão
biográfica, acho que mesmo nesse momento o seu
olhar poderia ser completamente diferente sobre a figura
dele e sobre o que aquele momento ali significou. Mas
a opção pelo viés da compaixão
é muito clara e muito radical. É muito
interessante pensar na dualidade que todos esses filmes
fizeram, a dualidade de tornar essas figuras mito, que
elas já são, e ao mesmo tempo querer reforçar
que elas são pessoas como qualquer um de nós.
É um jogo duplo muito interessante, porque nas
duas formas tentaram esvaziar o potencial de revolução
dessas figuras. A "pessoa como uma de nós"
geralmente se dá pelo viés da família,
todo mundo tem família, tem pai, tem mãe,
então todo mundo é compreendido e assimilável,
"ah, é apenas mais um filho", e tal... E por
outro lado, a pessoa se torna mito quando tem comportamentos
mais desviantes, se torna mito porque aí não
é uma coisa em que qualquer um de nós
pode se transformar nas opções que eles
fizeram, então você personaliza quando
interessa e mitifica quando interessa, e dos dois lados
saem umas figuras que abrem ONGs, se apaixonam, viram
mães, acima de tudo, ou são ícones
da luta contra a AIDS, como se a grande luta política
do Cazuza fosse ter encarado a AIDS de frente. Você
torna a briga apenas isso.
DC: Nisso vem o interesse do filme do Nelson, porque
entre os dois filmes ele cria um hiato que é
justamente o mais interessante, é onde você
fica sem poder se posicionar confortavelmente. Mas o
grande problema desse filme do Walter Salles, quando
eu disse que acho que é o pior filme dele, é
porque no fascínio que ele tinha por determinados
mundos ele transmitia algo mais interessante, para mim,
nos seus outros filmes. Esse fica com uma cara de National
Geographic.
LCOJr: O filme se coloca como um road-movie mesmo,
que teoricamente é uma especialidade do Walter
Salles.
DC: O tempo todo ele soa muito óbvio, ao contrário
dos outros filmes, em que essa obviedade tinha algo
de magnética, de emocionante. Mesmo nos filmes
em que muita gente viu problemas, eu vi nisso algo mais
interessante. Eu cheguei a comentar com vocês
na época: teve um trabalho no filme que eu achei
interessante, o da fotografia do filme, que é
impressionante, e eu me desliguei do que estava acontecendo
um pouco, porque me desinteressa; a partir de alguns
minutos eu ficava muito mais curioso com o fato do fotógrafo
do filme tê-lo feito praticamente sem refletores,
quase só com rebatedores e luz natural, em diversas
latitudes e altitudes, o que transforma o filme numa
experiência visual interessantíssima. Mas
como narrativa ele se estrutura de uma forma óbvia
e, pior do que óbvio, pouco interessante, pouco
fascinada.
LCOJr: Narrativa fraca mesmo dentro da estrutura que
mobiliza.
RG: E é curioso como o filme marca, mais do que
Abril Despedaçado que mal ou bem era
brasileiro sob todos os aspectos, mesmo que produzido
por fora , um passo que o Walter Salles vai seguir,
ao menos em alguma medida, que é o de um cineasta
do terceiro mundo que faz filmes para um circuito internacional.
EV: Que detém a palavra sobre as questões
do terceiro mundo...
RG: Ou seja, vai ser como o Iñarrítu no
México, vai ser aquele cineasta com uma ideologia
específica e que vai ser visto como exótico
ou mais outro, e que se adequa na própria feitura
do filme a substituir uma complexidade de certos fatores
por certos índices que são "legais"
de discutir, que são moda, que o olho exterior
já espera ver no Outro.
EV: E nesse ponto é muito rica a comparação
que o Cléber fez no texto da revista, entre o
Diários de Motocicleta e O Pântano,
porque foram lançados na mesma época,
mas o filme do Walter Salles acabou passando no Festival
de Cannes junto com o filme novo da Lucrecia Martel,
La Niña Santa, e é muito interessante
ver como a recepção dos filmes é
diferenciada nesse ponto. La Niña Santa
não tem esse tipo de recepção,
mesmo que se tente eventualmente, mas ele não
consegue cair no escaninho do cinema latino-americano
terceiro-mundista, ele é um cinema antes de tudo
humano, daquelas relações, então
ele acaba se confundindo. Não por acaso boa parte
dos fundos dele é europeu, e ele acaba se confundindo
com uma certa produção, é um filme
que acaba sendo muito menos representativo, a partir
de Cannes, por exemplo, a partir de onde ele circula
e repercute, por causa disso, porque ali você
não consegue ver a Latino-América, a Argentina,
o Brasil. Então é interessante pensar
essa opção. Agora, o que me interessa
muito dentro dessa questão do cinema brasileiro
são os dois filmes estrangeiros, o do Walter
Salles e o do Fernando Meirelles. Porque o do Fernando
eu não sei muita coisa, apesar dele ter divulgado
bem, eu não acompanhei aquele blog, que disseram
que foi uma das coisas mais interessantes que teve esse
ano: ele fez um blog diário com as filmagens
e parece que foi muito interessante, em vários
sentidos, mas eu não acompanhei. Mas o do Waltinho
eu sei que é um filme de gênero, dentro
dessa onda de releituras do cinema japonês de
horror para os EUA. Então é completamente
estranho porque vai na contramão do trajeto interno
dele.
DC : Do que se esperaria que ele fizesse.
EV: E por outro lado, as primeiras indicações,
tanto do Walter, que eu andei lendo, quanto da recepção
do filme são de um filme menor, desimportante,
e eu fico pensando se não se transformará
em um A Grande Arte de uma carreira internacionalista,
em que ele tenta exercitar certas coisas e logo se desinteressa
por elas. Mas é uma coisa interessante, que vai
nos interessar esse ano, acho.
Parte 1: Um
ano de documentários?
Parte 2: O documento
e o conceito. O documento não é o conceito.
Parte 3: Um passeio
pelo mercado.
Parte 5: Garotas do
ABC e os hábitos do olhar.
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