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Cinema
falado, parte 7 RG: Vamos fazer então a volta para a ficção, mencionando um filme que poderia ter acréscimos de documento e não tem que é o Copacabana da Carla Camurati. Eu acho que tem coisas interessantes, e talvez o mais bonito seja a metáfora do amor do Marco Nanini por uma mulher que é Copacabana, e que era uma deusa que acaba como uma mendiga meio louca. Mas nisso o filme se exclui de filmar aquilo que existe na cidade. Tenta dar conta de sei lá quantos anos de Copacabana, mas na hora de lidar com o hoje usa uma metáfora bonita, de decadência, mas isso não devia excluir filmar as ruas, o que tornaria o filme muito mais pungente. EV: O Copacabana pra mim tem alguns problemas, mas uma qualidade acima de todas. Que é a Carla Camurati continuar sendo a única pessoa que pega um filme fora da Globo Filmes e consegue lançá-lo. Busca o espaço dela, especialmente no Rio ela fez um trabalho dos mais inteligentes e deu um público bom. Não excepcional, mas seria impossível com 4 ou 5 cópias, mas pelo menos ela fez o filme ter relevância, existir para o público. As pessoas discutem, e ainda bem que ela vai lançar o Bellini e vão começar a aproveitá-la não só para o filme dela. Mas, os problemas do filme em si, para mim, são graves. Primeiro o excesso de desejos do que fazer, dos quais ele não consegue dar conta nem numa ilha de edição descartá-los. Largar um viés para acreditar mais num outro. Ela tenta por exemplo criar uma historiografia de Copacabana que não funciona, especialmente a parte da Bolívia que fica cifrada e interrompe o filme. Era o tipo de coisa onde eles foram até a Bolívia, era um material interessante, daria um assunto bom, mas na ilha de edição ninguém teve o distanciamento de ver que no filme não funcionava. Isso para mim é grave porque é sintomático do cinema brasileiro onde o autor fica tão próximo de todas as fases da realização que ele não consegue se desvencilhar de algo que não esteja funcionando no filme dele porque aquilo é muito caro. RG: E também tem o fato de que ele sabe que passou 3 anos fazendo aquele filme, e não sabe quando fará outro... EV: Outro problema é que ele é muito a priori. Quando o filme começa, nos créditos, pela rua em Copacabana, eu confesso que fiquei bem empolgado, pensando que ela ia pegar a história daquele velho e inserir em Coapacabana de hoje e tudo. Só que a Copa de hoje acaba ali. Ela está como idéia, mas não lá. Coisas que eu achava perigosas como o Nanini maquiado de 90 anos, funciona perfeitamente. Mas a narrativa engasga constantemente. RG: Bom, falemos então do Memórias Póstumas de Klotzel. Devo dizer que no começo eu não estava gostando nada, era mais um filme a pegar tema nobre para fazer filme "sério". Os primeiros vinte minutos me incomodaram na submissão e tentativa de ilustração do Machado só que aos poucos eu fui tendo mais claro o projeto, que é interessante. De fato o Klotzel não coloca em crise o livro, que é o que o Bressane faz. O filme de fato é "Por que o Memórias Póstumas é um livro maravilhoso". E eu acho que o filme apresenta esta devoção pelo Machado, em alguns episódios bem, em outros não tanto. A cena do hipopótamo é bem melhor no filme do Cony (Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Cony Campos), que é muito mais metafórico, mas o momento é outro, lá o livro é apenas um pretexto dentre vários. Mas me parece que o Klotzel volta depois do fracasso estético do Capitalismo Selvagem. Ele se mostra em forma como bom realizador, mas ele precisa de um melhor ambiente porque eu acho este um exercício bem realizado, mas a liberdade do primeiro filme dele passa longe. EV: Passando pela lista dos lançamentos do ano, eu acho que só faltou o Domésticas do qual eu nem queria falar muito por ter escrito uma crítica longa. Mas o que eu acho pensando o cinema brasileiro como um todo é que o filme indica uma compreensão boa de que quem vai assistir o filme é a classe média alta. Portanto, se achamos as empregadas domésticas figuras pitorescas e interessantes e somos de classe média alta, o público vai assistir. E o filme é um sucesso no circuito pequeno em que foi lançado. RG: A notar-se o aval do porta-voz da classe alta Zona Sul, que é o Artur Xexeo que alçou o filme ao grau de genialidade. E não dá para deixar de comentar este olhar "patronizing" né, ou seja, que acha pitoresco aquele universo, e vai buscar na trilha sonora uma música brega dos anos 70 e não de hoje, e a vida estetizada e asséptica do quartinho de empregada... EV: Ele precisa buscar a dos anos 70 porque a música que as empregadas ouvem hoje é de "mau gosto", não é? Como a dos anos 70 hoje já é cult, pode tocar. Para mim, a definição direta do filme é: um National Geographic sobre as empregadas domésticas, realizado por publicitário. Ou seja, não é nem feito pelos cineastas antropológicos de um National Geographic de fato. É um publicitário tentando vê-las. Enquanto não se entregar uma câmera digital às domésticas para elas realizarem o filme Patroas, isso é o que dá. RG: Na crônica do Festival do Recife eu dizia que o filme não devia se chamar Domésticas e sim Patrões - a Visão Deles. EV: E quem diz muito mais é o diretor, que disse a frase mais genial do ano 2001 do cinema brasileiro, que falou: "A gente ia fazer um filme, e aí descobrimos as domésticas, estas figuras pitorescas que tínhamos em casa e nunca ninguém percebe, e quisemos trazê-las à luz". E eu imaginava ele num jantar em casa, e alguém dizia "Tem alguém na cozinha", e ele "Não, é impossível". "Ih, é, tem alguém sim, que interessante, precisamos fazer um filme sobre isso..." DC: É uma versão de Os Outros... EV: Exato. Domésticas é Os Outros feito por um publicitário brasileiro que descobre que "há vida após a cozinha". Quando eles descobrirem que os carros não andam sozinhos, eles farão Motoristas - o Filme. DC: Contínuos - o Filme... RG: Mas acho importante citar no filme esta chegada da O2, que é o lado paulista da Conspiração. DC: Isso é simplismo... RG: Não é não, porque existe uma questão brutal que está no Domésticas que é a assepsia, transformar a vida das pessoas num estúdio de publicidade, e se isso está esboçado no filme, aparece de forma brutal no Palace II. Pouco importa que tenha a Kátia Lund, porque a estética é toda da O2. Você tira completamente toda referência de ambientação e transforma a vida de dois moleques de favela, deturpa o ritmo de vida, coloca efeitos de direção, treme a câmera, coloca filtros, luzes... EV: ... embebeda os moleques no óleo... RG: ... entope as peles de óleo e constrói uma negritude linda, erotizada. Típico de quem viveu só de um lado da cidade partida e tem o mito de erotizar o outro lado, criando este aborto da cinematografia que é o Palace II. EV: Mas o que eu acho que tem que ser contextualizado na comparação com a Conspiração é o seguinte: inegavelmente a Conspira foi formada pelos sócios principais que dirigem os filmes tendo em vista viabilizar o cinema. Ou seja, há uma pulsão inicial relacionada com o cinema, feita por gente vinda do cinema como o Andrucha Waddington, o Arthur Fontes, etc. Que encontraram na publicidade, nos clipes, etc, formas de sobreviver antes do cinema. Prova disso é o Eu, Tu, Eles de que todos gostamos, o trecho do Fontes do Traição que eu gosto, embora ache o resto muito ruim... Eu gosto do que seja a proposta do Surf adventures como cinema popular jovem. A O2 não, eles são publicitários de formação numa aventura nova. E isso faz muita diferença para mim, entre você sempre ter buscado o cinema, ou acabar nele. Os vícios de linguagem que eu vejo nos filmes da Conspiração com coisas de fotografia e arte vindos claramente da publicidade, eu vejo como vícios adquiridos. Não são vícios que vêm do berço dos cineastas. Na O2 não, eu vejo isso vindo antes de tudo, primeiro a questão estética, e depois a questão de se vai durar segundos, minutos ou horas. RG: Concordo. Mas uma outra coisa a dizer do filme é que ele ter achado seu exato irmão no público, eu acho natural dada a frequência e a questão do circuito de arte transformado em cinema-bistrô. Agora, me espantou a reação da crítica. Tudo bem, Lavoura Arcaica que era algo em termos de linguagem que vinha se buscando, agora Domésticas... EV: Cara, a crítica, com as nobres exceções de sempre, ela esvaziou qualquer discussão que lide com conteúdo do filme. Conteúdo entendido com tudo que o filme possui que não seja a historinha dele. Para falarmos de coisas práticas, falemos do filme do Carpenter, recém-estreado. A crítica hoje quer entender de cinema, mas não do que aconteça fora da tela. Não entende relação do filme com o espectador seja como formação de ser humano, ou formação de olhar, ou fenômeno social. Não discute isso, política, ideologia. Ela é enciclopédica. "Já vimos muitos filmes, sabemos reconhecer boas fotografias, belas trilhas sonoras, citar exemplos e referências". Sem nenhum estofo. Boa fotografia é foto bonita, não que se adeque ao filme. Este é o critério de julgamento. RG: Se você for pegar os de jornais, eles não são especialistas em cinema. São jornalistas que estagiam em cinema. Viram alguns filmes, sabem o que é Ladrões de bicicleta, Nosferatu, vai ao cinema, sabem o que é Woody Allen, o que eles consideram cinema bem feito. EV: A questão da crítica hoje é que o crítico é um membro do público que viu mais filmes que a média e ganha um salário. RG: Existe a definição da Barbara Heliodora de que "o crítico é um espectador bem informado". Acho que é isso, agora esta definição precisa dialogar com uma história da crítica e dar o passo final que é se formatar como orientação de público. E trabalhar com a idéia complicada de que o público não é igual. O primeiro passo só um cara no Rio conseguiu fazer que é o Jaime Biaggio. Os textos dele são absolutamente confessionais, ele cria um diálogo com o leitor, mas ele acha que o público é um só. Mas ele trabalha com uma idéia da maioria do público, e assim você vai ser só um porta-voz do senso comum. EV: E o grave para mim é que escapa-se à noção de que o filme é maior do que o que está na tela do cinema, naquela ordem. Então, torna-se um índice de genialidade, por exemplo, tirar da ordem. Tudo gira em torno disso, e não do filme e o mundo. DC: Nos nossos jornais nós só temos resenhistas para indicar filmes ao público. Mas acho que isso tradicionalmente não existia no Rio de Janeiro. Um cara que vai ler a parte de cinema quer saber qual dos filmes vai perder o tempo vendo. O cara que quer discutir idéias está em outra parte do jornal. A parte de Livros ou de Opinião. A Folha tem o caderno de ensaios... E no Rio não há este espaço. O público só quer saber o filme para ver hoje. EV: Não discutamos a crítica longamente, pois fizemos aquela pauta já. O principal para mim é que não é surpresa esta crítica ter abraçado o filme. O filme é belo, tem bonita fotografia, tem boas piadas, as músicas são pitorescas. Pensar o filme fora disso, não existe. Ideologia, política. RG: E Casamento de Louise foi mediocrizado pela crítica por ter tudo que em algum momento foi considerado ridículo, piadas bobas, inserções musicais. O repertório de Domésticas é para classe média alta, e o do Louise não. Tem jogador de futebol com cabelo pintado de loiro, gringo ridicularizado ao contrário de nossa elite... Mas, falemos de um filme que é quase uma unanimidade, digo quase unanimidade porque a Ana Maria Bahiana adorou, que é o Mater Dei... EV: Eu quando vi a lista dos filmes, deixei este para o final porque eu digo o seguinte: este é um filme que não vale nem polemizar contra. Me interessa polemizar contra o Domésticas, mas o Mater Dei não existe. Porque nem nas coisas que eu sou contra ele existe. Ele é só ruim. O Domésticas eu consigo entender como alguém ache bom. O Mater Dei é só ruim. Ele só funciona dentro de uma idéia: se ele foi feito pelos irmãos Mainardi dentro da idéia de que todos que fossem vê-lo saíssem do cinema odiando um pouco mais o cinema brasileiro. Se for por isso, ele funciona. O público sai dizendo: "nunca mais verei um filme brasileiro". Ele não é perigoso, não é nada... DC: Não é perigoso? O Diogo Mainardi só escreve para um milhão de pessoas na Veja... EV: Vamos dialogar com os artigos dele, então. Porque o filme não existe. Ele não foi visto por ninguém, não tem nenhum efeito social, não existe. RG: O que o Eduardo quis dizer eu presenciei: vi 5 pessoas dizendo que havia um boom do cinema brasileiro, que ele estava passando no UCI, e umas 4 senhoras na saída disseram "Nunca mais vejo um filme brasileiro". Estas 4, eles conseguiram. Se o Diogo Mainardi possui algum talento colocando palavras atrás da outras, ele certamente inexiste no Vinícius. Isso já estava no primeiro filme, mas a fotografia supostamente expressionista dos interiores enganou uns poucos. A sequência de externa mostrava que o filme não tinha contraste nenhum, era um lixo, mas enganou quem tinha que enganar. Mas o Diogo Mainardi escreveu uma coisa fenomenal: "Faço a mesma coisa que o Tom Wolfe e o Philip Roth fazem nos EUA e são adorados. Por que no Brasil eu não ganho o mesmo reconhecimento?" Com Mater Dei dá para entender por quê. EV: Cara, Domésticas ressoa com um público, nos jornais e para várias pessoas no cinema brasileiro, então me interessa discutir com este filme. O filme dos Mainardi não existe. Ou ele existe para espantar o público, e aí ele pode cumprir função com os 120 que o viram, ou a partir do momento em que pessoas do meio cinematográfico se insurjam contra ele e comecem a gritar contra ele, que é a esperança dos Mainardi. A grande revolta do Diogo que está expressa na crônica que saiu na Veja na semana seguinte do lançamento é que ninguém se levantou contra o filme. Isso os pegou despreparado, porque eles achavam que o filme ia ganhar com um espinaframento que não houve. E esta me parece a linha mais adequada. O filme foi lançado com esta frase: "O filme mais polêmico do ano", e até onde eu entendo um filme só pode ser polêmico após ser lançado e discutido, e nunca a priori. O filme ser polêmico não pode ser propaganda por definição. E pronto. E só sinto mais pena de mais gente não ter visto Tainá pra discutir o filme em detalhes. RG: O que eu sinto mais pena é do Tom Zé no final de Mater Dei... EV: E estou ansioso para discutirmos 2002 que já tem vários filmes em linha que eu quero discutir. Se alguém me perguntasse "O que você de positivo em 2001?", eu diria que virão vários filmes em 2002 e será legal. Voltar à Parte 1: Condições de produção, sucessos, fracassos, Lavoura Arcaica Voltar à Parte 2: Bufo e Spallanzani, cinema comercial/cinema de autor Voltar à Parte 3: Distribuição, TV, público Voltar à Parte 4: O fenômeno do ano: Lavoura Arcaica, mais Bicho de Sete Cabeças e Brava Gente Brasileira Voltar à Parte 5: Xangô e "ser cinematográfico", Caramuru, A Partilha e Globo Filmes Voltar à Parte 6: Existe um novo cinema documentário brasileiro?
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