Cinema falado, parte 6
Existe um novo cinema documentário brasileiro?

EV: Mas eu achava legal falar também dos documentários, já que tivemos uma safra tão grande. E eu já queria começar daí, falando do papel e da presença do documentário no cinema. Porque eu acho que há uma suposta louvação da "volta do documentário" com grandes números de produção e a reclamação de que não há espaço e que ele não dá público. Eu acho isso surreal. Porque em primeiro lugar documentário nunca deu público, em lugar nenhum do mundo, a não ser nas feiras do início do cinema, com exceções muito eventuais e jamais constantes. Podemos ter casos que foram ótimos para documentários, mas seriam medíocres para ficção.

RG: No começo da história do cinema, as "vistas" eram populares porque vendiam a imagem dos lugares, mas isso é apenas anedótico. Mas, estamos embutidos num sistema onde você precisa do aval do Ministério da Cultura para correr atrás de dinheiro para seu projeto. Aí, você tem um gerente de marketing que pouco conhece de arte. E se o cara é imbuído de um espírito investidor ou ele vai em busca de um grande projeto de ficção com a Ana Paula Arósio ou se ele busca algo "cultural", ele vai no documentário. Então, claro que vão surgir "n" projetos de "big" ficções e de documentários porque estão imbuídos daquele espírito "sério", e você vê coisas como Anésia que podia ser feito pela GNT mas que é feito para o cinema simplesmente porque as empresas aéreas descontam o imposto e reverteram para um filme sobre a primeira aviadora mulher e tal.

FV: E por isso você projetos de ficção incorporando a estética do documentário...

DC: Basicamente, em dois filmes, o Urbania e o Nelson Gonçalves.

FV: E o Brava Gente Brasileira, por que não? É um filme que nasceu de uma vontade de fazer um documentário, por descobrir uma história do país, e não pela ficção, eu acho.

DC: Não, neste caso eu acho que você falar numa ficção com interesse antropológico e tal, de mostrar os índios, mas tirar o filme do estatuto da ficção...

RG: E há uma diferença, fica meio no mesmo estatuto do Stromboli, onde ao mesmo tempo que você filma a vida de Stromboli e dos moradores da cidade, você está num ambiente de ficção, quer dizer, é a ficção se aproveitando de todo um ambiente documental.

FV: Mas eu acho que, ao contrário do Stromboli, que nasceu como opção estética de fato, no Brava Gente a ficção é um arremedo, onde o que importa é filmar os costumes, o amibiente, e a partir daí fazer uma ficção que eu acho pior que propaganda do partido russo da década de 20.

DC: Mas as nossas empresas cinematográficas tiveram que se sustentar num certo momento fazendo cinejornal, então só aí você já tem uma tradição documental e tanto. O Cinema Novo, que começou com Aruanda e Arraial do Cabo. Quer dizer, tem aí uma natureza e uma tradição de mostrar o país que é forte.

EV: Mas o que eu não completei do raciocínio é o lado econômico, que não podemos perder de vista. E o lado econômico em dois sentidos, um que é este que o Ruy falou da facilidade maior de conseguir o apoio financeiro, mas o que complementa isso para mim é o outro lado. Que é o fato de que realizar um documentário tornou-se muito mais barato com o digital. Quer dizer, ao invés de você precisar de metros e metros de película, que sempre encareceu o documentário como qualquer um pode dizer e que por exemplo foi algo que fez o documentário sumir em meios como o cinema universitário, ou migrar para a televisão. E agora você pode voltar ao cinema, que ficou muito mais barato. Mas o que eu acho o mais grave disso tudo? É que se está perdendo um significado do que seja o "cinema documentário", que para mim possui um significado que está muito acima de ser feito em película ou digital ou vídeo. Você montar e filmar ou gravar algo pensando no cinema como local específico de exibição, como espetáculo é muito diferente de você pensar um programa para a TV Globo ou o GNT. Então, o que esta safra de documentários tem de mais grave para mim é que eles estão desconsiderando completamente o que tenham de linguagem cinematográfico. Ou seja, são documentários feitos para a GNT ou para o Globo Repórter, mas que por ser muito mais fácil você conseguir financiamento e lançar no cinema você pega e lança.

DC: Mas você dizer isso é muito simples. Porém, estes filmes aqui consumiram de seus realizadores dois ou três anos, quer dizer, eles querem fazer o cinema documentário, eu não tenho a menor dúvida disso.

EV: Mas isso não tem nada a ver com linguagem. O que linguagem tem a ver com o tempo que demora para fazer um filme?

DC: O problema é mais embaixo. Todo filme brasileiro dá prejuízo. Se é para dar prejuízo ele vai lá e faz um filme que está com tesão de fazer e que é documental.

EV: Lê a lista dos documentários do ano e eu duvido que algum deles, com exceção do Coutinho, você possa dizer que foi feito com "tesão".

DC: Urbania...

EV: Discutível, porque o filme não foi criado exatamente como um documentário.

DC: Anésia - Um Vôo no Tempo...

EV: Se alguém me disser que este filme foi feito com tesão...

DC: Barra 68...

EV: Vladimir Carvalho, é verdade, um filme...

DC: 2000 Nordestes...

EV: Eu duvido que este filme seja o caso. Eles foram fazer a pesquisa para um filme de ficção, levaram a câmera de vídeo, e ao chegar de volta viram que o material dava um documentário. Esta é a história de produção do filme.

DC: Nelson Gonçalves...

EV: Este filme nem ia ser lançado no cinema, foi lançado quase contra a vontade do diretor. Foi feito pra ser lançado em DVD.

DC: Sonho de Rose...

EV: Não acho que tenha sido feito com tesão. Ela tem carinho pelo tema, mas não acho que seja o projeto de vida dela fazer o filme, estrear o filme no cinema. Se dissessem que podia passar na Rede Globo ela gostaria muito mais.

DC: Vamos analisar os filmes de ficção sob esta ótica então... Passar na Rede Globo todos querem. Olha o peso que você está colocando sobre o filme documentário.

EV: É você quem está colocando este peso, eu estou falando de linguagem. Passar no cinema, lógico que todos quiseram. Para mim o fato é que existe uma diferença entre um filme e uma reportagem. Existe a questão jornalística, tanto que existe o cinejornal, que é diferente de um longa documentário. Uma reportagem não é um filme documental.

DC: Então, deixa eu pular o Senta a Pua! e chegar no Chamado de Deus. É uma reportagem?

EV: É uma reportagem, mas principalmente não era o filme que o Joffily queria fazer. Ele não conseguiu o dinheiro para filmar o longa de ficção, e no meio tempo fez o documentário. Não era um projeto de vida fazer o filme.

DC: Eu vi ele falando do filme com muita satisfação...

EV: Ele gostou do filme, tomara que todos eles tenham gostado, porque se nem eles gostaram... Cara, você está me dizendo que eles gostaram de fazer o filme e de passar ele no cinema. Pô, eu espero que sim né, senão eles só estão movendo renda de um lado para o outro.

DC: Você está discutindo o estatuto de eles serem "filmes".

EV: Não, você é que colocou em jogo que o que importava era serem projetos aos quais se dedicaram anos. Neste ponto, caem todos.

DC: Você está desqualificando eles enquanto filmes...

EV: Não, eu não posso fazer isso pelo seguinte. Para ser filme basta ter sido exibido no cinema em película. Então, lógico que eu não vou ser burro de desqualificá-los como filmes. O que eu discuto é: isso não pode tornar-se um modelo do que seja um "cinema documental" do qual as pessoas comemorem um renascimento. Porque isso é feito toda semana, e passa no GNT e no Globo Repórter. Só porque passa no cinema vira algo de especial? O que o cinema brasileiro ou o cinema documental em geral avançou ou discutiu com estes filmes? Nada, são uma série de reportagens. Notícias de uma Guerra Particular, enquanto reportagem, é melhor do que estes todos, mas não passou no cinema, portanto não é um filme. Então se a questão é só passar do suporte de vídeo para o cinema e exibiu numa sala, que renascimento é este? O que eu estou discutindo é o seguinte: hoje é fácil você passar algo do digital para a película. Portanto, é fácil você financiar este tipo de projeto e vender isso para as empresas. Você junta estas dois fatores e cria um "renascimento do cinema documentário brasileiro". Só que isso é tudo que passava na televisão, e agora foi para o cinema. O que exatamente renasceu? O que há do cinema documental?

Então, eu estou dizendo que não existe este tal "cinema documentário brasileiro" hoje. É o mesmo que tinha na TV ano passado, mas que agora passa para a película.

DC: São 10 documentários entre os 30 filmes brasileiros, um deles do Coutinho, outro do Joffily que é um cara com uma carreira, outro da Tetê Moraes, e você me diz que não há um cinema documentário brasileiro?

RG: Prova disso é o filme do Vladimir Carvalho porque parece que ele regrediu 30 anos de carreira...

EV: Na virada dos anos 70 para os 80 havia todo um pessoal fazendo documentário no Globo Repórter. No entanto, dizia-se que o cinema documentário brasileiro estava morto, porque eles não passavam no cinema. E estes documentários que eles faziam eram muito melhores do que os que passam hoje no cinema. Qual a diferença? Você criar um cinema documentário brasileiro transformou-se em você poder transpor o que está em vídeo para película.

DC: Você fala isso três anos depois do Santo Forte...

EV: Claro que eu falo, porque se você tirar o Coutinho não há este tal cinema documentário brasileiro. Só há uma pessoa com uma proposta de cinema documental no Brasil hoje, que é o Coutinho. Você pode dizer que assim a gente pode discutir se há cinema de ficção no Brasil hoje, acho super válido. Agora, eu estou falando do cinema documentário.

DC: Esta discussão eu não entendo. Para começar, o melhor filme brasileiro do ano para mim é um média documentário. Feito na versão para TV. Bom, eles pensaram em dois públicos, uma versão de 52 minutos para passar na TV e uma de 15 para passar nos festivais de curtas. (Nota da transcrição: Onde a Coruja Dorme e Coruja de Márcia Derraik e Simplício Neto)

RG: Mas o que eles queriam fazer era o de 52 minutos...

EV: Eles não fizeram a versão de 15 minutos porque achavam legal passar em festival, e sim porque tinham uma obrigação contratual de apresentar um produto final de curta metragem em película.

DC: Eu acho o melhor filme brasileiro do ano.

EV: Qual dos dois?

DC: Ambos.

EV: O curta não é não.

DC: E qual é, então?

EV: Eu acho o curta nem o melhor curta do ano. Mas independente disso, o média da Márcia Derraik e do Simplício não pode significar que existe o tal "cinema documentário", porque ele não passa no cinema comercial, assim como o Dib.

DC: Então, se não passa no cinema não é filme, é uma obra... Mas aí você me diz que "não há cinema documentário brasileiro" três anos depois do Santo Forte, no ano do Coruja, quando foram lançados 10 filmes no circuito...

Tudo bem, não tem proposta nova nem movimento coletivo, mas daí a você vir dizer que não há documentário brasileiro...

EV: Daniel, e há 5 anos, tinha documentário brasileiro? Então, o que há de novo?

DC: E quem disse que tem algo de novo?

EV: Todos os lugares, em tudo se fala da retomada do documentário brasileiro.

DC: Moda é bom, estimula...

EV: Mas não estimula nada, é o que eu estou tentando dizer. O número de filmes produzidos é o mesmo, só que antes eles só passavam na TV Globo, depois tinha o GNT, e agora eles passam no cinema. O Globo Repórter é igual a 7 destes 10 filmes. Você não viu o Globo Repórter sobre a CBF por exemplo. É melhor que 7 destes filmes, e eu digo quais: Anésia, Senta a Pua, Barra 68, 2000 Nordestes... E, digo mais, o do João Moreira Salles é melhor do que 9 dos 10. Só não são melhores que o do Eduardo Coutinho. E não passou no cinema.

RG: É verdade. Um cara que for pegar os números brutos para fazer o próximo capítulo da História do Cinema Brasileiro, vai pegar os números a partir de 1996 e vai ver um número enorme de documentários, numa porcentagem de 30 a 40% dos lançamentos. E vai dizer: "houve um surto de produção documental". Agora, se você for pensar, na década de 80 eles foram no ABC filmar a greve, você tinha Raulino, João Batista, e por mais que aquilo representasse 5% da produção era algo muito mais forte, e acho que é isso que o Eduardo quer dizer.

EV: Claro, porque estes caras tinham um projeto de fazer documentário. E estas pessoas de hoje não têm um projeto de fazer cinema documentário, de uma carreira documental. Eles estão fazendo por quê? Porque é fácil hoje você financiar, gravar, kinescopar. Portanto você não pode dizer que haja um boom, uma Era de Ouro do documentário. A TV é melhor do que eles.

A linguagem do cinema não avança, ninguém assiste o filme, e eles não constróem uma obra dos seus realizadores. São filmes sem função para o cinema, para o público e para os realizadores. Viva o documentário brasileiro!

 

Parte 7: Copacabana, Memórias Póstumas, Domésticas, Mater Dei

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Voltar à Parte 5: Xangô e "ser cinematográfico", Caramuru, A Partilha e Globo Filmes