Cinema falado, parte 1
Condições de produção, sucessos, fracassos, Lavoura Arcaica


RG: Acho que antes de falar exatamente dos filmes lançados, antes de falar sobre como funcionou o ano cinematográfico, acho que primeiro a gente devia ressaltar a mudança, que 2002 aponta para um novo órgão que ainda não tem as bases todas montadas, ainda não preparou um texto, uma proposta, mas já tem coisas bem delineadas. Alguém tem alguma coisa a falar especificamente sobre isso? Daniel?

DC: Com relação à Ancine, é o seguinte. Nada está estruturado ainda na Ancine. Mas o que a gente está vendo acontecer, principalmente desses filmes que estão sendo finalizados agora, e onde tem cada vez menos coisa, menos projetos, em grandes partes é por causa ainda do que aconteceu entre 1997-1998. Caiu muito o investimento.

RG: Você está falando da diminuição do teto de investimento ou da diminuição dos próprios investimentos?

DC: Não, o teto de investimentos continua o mesmo, mas cada vez botam menos dinheiro nos filmes.

RG: O teto diminuiu.

DC: Exatamente. Eles liberam um dinheiro que pode ser descontado, mas mesmo podendo descontar o dinheiro muito pouca gente desconta. Mas como eu apontei no artigo, em 1997 o investimento em cinema foi de R$117 milhões. Em 1999 foi de cerca de 35 milhões. Em 2000 foi de R$17. Quer dizer, caiu vertiginosamente. 1/8, algo em torno do que se investia. E concentrou isso principalmente em alguns nomes de alguns filmes muito caros. E isso aí é um pouco do que a gente está percebendo, que na verdade estão chegando ainda alguns blockbusters que se estruturaram, e a gente de vez em quando tem acesso a alguns filmes feitos muito lentamente, alguns até de forma aventureira, outros por entrega do realizador, e que demoram bastante tempo para sair. Esse atraso do cinema brasileiro acaba trazendo até uma certa imagem benéfica, porque mesmo quando ele entra em crise, até a gente perceber a crise na tela, demora dois, três anos.

EV: É o que eu ia falar. Foi o ano que teve o maior número de filmes lançados no circuito carioca desde o final da década de 80, e foi o ano que teve o maior número de filmes exibidos pela primeira vez no país, por muito, desde a mesma época. Então foi assim: o ano que teve o maior número de filmes. Só que se você for reparar o processo de produção, a maioria desses filmes foi começada a 3,4 anos.

RG: Ou seja, é um número viciado, porque apesar do otimismo que esses números mostram, a prática não justifica porque tem cada vez menos filmes sendo produzidos de fato. O insumo não aumentou, mesmo que o número aumente.

DC: Está se filmando cada vez menos.

EV: De um ano pra cá se filmou um pouco mais porque se adequou os orçamentos à desvalorização do real e com a subida do dólar porque no ano passado se estava parado geral. Agora se está até filmando um pouco mais. Porque os projetos como eram antigos estavam completamente inadequados em matéria de preços quando começaram a ser feitos. Agora os orçamentos já estão mais adequados e então se está filmando um pouco mais. E aqueles primeiros prêmios do governo estão começando a dar os frutos, o BO (Baixo Orçamento), os outros prêmios do BNDES de botar uma grana firme em cima dos filmes porque na verdade, embora não esteja clara, supostamente essa era a função que ia continuar com a Secretaria do Audiovisual mesmo com a Ancine, que é financiar ou ajudar a produção independente.

DC: Ao que parece, na verdade a função do Ministério da Cultura vai ser financiar filmes culturais. Então não vai ser nem sequer estréias, as estréias a Ancine vai ter que cuidar, o BNDES vai ter que investir, mas isso é tudo ainda projeto. O problema é que a gente teve um governo que durante seis anos empurrou um pouco até chegar o momento em que não tem mais jeito. Então agora com esse trabalho a gente fica meio na dúvida. Vai ter eleição, o que vai acontecer depois, Gustavo Dahl tem mandato, então ele pode fazer alguma coisa mas ainda não tem projeto definido. A gente não sabe ainda o que o Ministério da Cultura, que foi sempre quem cuidou dos filmes, vai fazer. Se o Ministério for cuidar dos estreantes a coisa vai ficar muito complicada, porque na verdade o pasta da Cultura não tem a menor condição de estruturar de fato o concurso. O Ministério da Cultura faz o seguinte: manda pra Brasília, eles lêem lá e não tem muito como estruturar um modelo de produção. Aqui no Rio a gente ainda tem a sorte de ter o CTAv, que empresta equipamentos e não sei o quê, que é um troço que barateia absurdamente os custos de uma produção.

EV: Embora também absolutamente dilapidado e..

DC: Mas mesmo assim, mesmo sendo um grande problema você ainda vê as pessoas do lado de fora que precisam da câmera.

EV: Precisam, sem dúvida.

DC: Mas o Ministério da Cultura não tem estrutura de fato, como já mostrou sempre, pra fazer uma coisa contínua de abrir espaço para novos projetos, pra coisa ir acontecendo o tempo todo. O que me parece é que o Ministério vai cuidar muito mais de curtas-metragens, documentários possivelmente e filmes de iniciativa cultural que são casos sempre excepcionais.

EV: Mas o que eu achei mais interessante nesse ano inteiro foi o seguinte. É que na verdade, nas tentativas de cinema comercial exibido, você teve – eu só não diria 100% por causa talvez de dois casos –, mas você teve praticamente 100% de filmes que deram muito menos público do que seus realizadores esperavam. Os comerciais, eu digo. Falo de Amores Possíveis, falo de Copacabana, falo de Nélson Gonçalves, falo de Memórias Póstumas, Bufo & Spallanzani, Xangô, todos...

RG: A reapresentação de Dona Flor é o caso extremo.

EV: É fantástico, porque na verdade teve aquela subida, né? Subiu o público médio do cinema brasileiro esse ano. Mas tudo ficou na mão de dois filmes, como em todos os anos. E é interessante: cada vez mais o filme da Xuxa na Zona Sul, ele some em duas semanas. Ele fica dando público, meses em cartaz na Zona Norte e Zona Oeste. Na Zona Sul ele sumiu em duas semanas.

GS: Mas parece que isso aconteceu mesmo com os outros filmes.

EV: Aconteceu, só que dessa vez foi mais radical ainda. É interessante. E todas as tentativas de um chamado cinema comercial... Em última instância, o que eu estou querendo dizer é o seguinte, é que o cinema comercial, enquanto instituição, continua sendo uma falácia, porque todas as tentativas comerciais não existiram. Com exceção, claro, de A Partilha, que é um caso à parte, que a gente tem que falar, que é a questão da Globofilmes. Agora, mesmo da Globofilmes, o Caramuru fez muito menos do que eles esperavam a partir do Auto da Compadecida. O Amores Possíveis deu menos do que eles esperavam. O Tainá, ele manteve, agora não fez mais do que as pessoas esperavam não. Fez o que devia fazer. Os dois filmes que deram surpresa de público foi Bicho de Sete Cabeças, que foi um filme que as pessoas esperavam que fizesse sucesso mas não foi produzido com essa intenção. O fato do filme ter sido comprado pela Columbia foi de certa forma uma surpresa para a própria produção do filme. Era um filmes pensado e estruturado com a Riofilme, para um filme pequeno, de arte, etc. , então ele adquiriu um outro caráter e nesse sentido foi bem. E O Grilo Feliz, que é completamente bizarro, que é um filme que está chegando aos 400.000 espectadores tendo sido lançado caseiramente.

RG: E a primeira semana em dois cinemas.

EV: É, caseiramente, e está em cartaz há seis meses. Continua em cartaz no Rio, lançado nas férias de julho. Ele foi o único que se manteve em cartaz das férias de julho. Porque os filmes infantis têm uma vida útil muito mais longa do que os outros filmes, né?, já que eles ficam na sessão de matinês.

GS: E o público vai ver 2, 3 vezes

EV: Agora, todos os outros já saíram, Shrek, todos... Das férias de julho, O Grilo Feliz é o único que ainda está em cartaz, o que é bastante considerável.

GS: Mas parece que O Grilo Feliz e o Tainá se deram bem pelo seguinte fator: lança depois que a criança já viu Shrek, o lançamento oficial americano, vai procurar o que ver, acaba caindo neles

DC: O filme brasileiro infantil tem vantagem na legenda.

EV: O filme brasileiro tem duas vantagens: primeiro, a legenda. Segundo, é que criança ainda não tem uma tal idéia de que cinema brasileiro é uma merda, então ela está pouco se lixando se O Grilo Feliz é americano ou brasileiro... Pra ela é a mesma coisa Monstros S.A. e O Grilo Feliz, tem um desenhozinho que fala português, porque o Monstros S.A. passa dublado também. É claro que ela vê muito mais comercial na televisão do Monstros S.A., viu muito mais brinquedinhos à venda na loja do Monstros S.A. Então ela quer ver mais o Monstros S.A.

DC: A Xuxa não.

EV: É verdade. Agora, eu posso até estar enganado, mas eu sempre achei que esse formato da Xuxa, ele não tinha como durar, entendeu, isso aí não vai durar dez anos as pessoas indo ao cinema ver um filme que é um programa de televisão. Tanto que esse filme já tem algumas diferenças em relação aos dois outros, eles tentam apostar um pouco menos naquela história de formato quase televisivo de programa, tem uma coisa mais de tentar uma história, um negócio diferente. Não dá pra você ver o mesmo filmes 500 vezes. A Disney não faz o mesmo filme 500 vezes, nenhum deles faz o mesmo filme 500 vezes. Pelo menos disfarça. A Xuxa estava fazendo basicamente o mesmo filme várias vezes, então acho que isso aí já está falido. Agora, eu acho que o fenômeno verdadeiro, assim, não é nem um fenômeno. Aquilo que vai celebrar principalmente o ano no futuro, o que vai ficar desses todos inevitavelmente é o Lavoura Arcaica. Tanto em termos de recepção de público quanto de crítica. No ano, nas nossas opiniões pessoais, certamente tem filmes melhores.

DC: O Bicho de Sete Cabeças também vai.

EV: O Bicho é localizado, cara.

DC: É localizado mas ele é localizado justamente com o público que está vendo Lavoura Arcaica. O Bicho é um sucesso de público cult boca-a-boca, que é tudo que Lavoura Arcaica queria ser.

EV: Lavoura Arcaica é.

GS: Mas o Lavoura Arcaica foi por um impulso maior da crítica

DC: O Bicho de Sete Cabeças conseguiu extrapolar o que se esperava dele.

RG: Uma reação comum no Lavoura Arcaica eram pessoas constrangidas no fim da sessão, não sabendo se deviam gostar do filme ou não, justamente porque tinha esse constrangimento todo feito pela – não só pela crítica, né, mas por todo senso comum cinematográfico que saiu no jornal...

DC: Também tem a coisa da tv, de ter atores de tv, estréia da menina...

RG: ...e acontece essa coisa esquisita, que as pessoas ficam meio obrigadas de gostar do Lavoura Arcaica porque é um filme de arte, então você... É como se fosse um atestado de inteligência você dizer que gostou do filme.

EV: O ponto principal, pra mim, é que se eu fosse as grandes majors eu contratava o Luiz Fernando Carvalho para fazer a minha estratégia de lançamento, porque foi o único cara que pegou o produto que tinha em mãos e fez o lançamento perfeito para direcionar o público que sentia a necessidade de ver o filme dele. E isso é perfeito, isso é o que todo filme tem que fazer. Todo filme que quer se lançar comercialmente tem que fazer o público sentir que ele não pode continuar sem ver aquele filme porque ele não está fazendo parte do momento ali que ele está vivendo. Então é disso que o cinema americano vive. Você não pode não ter visto, sei lá, qualquer que for o filme, e continuar saindo com os amigos para bater papo que você vai estar fora da conversa. O Luiz Fernando Carvalho conseguiu fazer isso. A grande questão é justamente essa, que Bufo & Spallanzani, Amores Possíveis, etc. etc., os caras páram num patamar pelo seguinte: o filme brasileiro, o lançamento dos principais filmes brasileiros, o lançamento deles se equivale ao pior lançamento comercial americano. Só que eles ficam periféricos no circuito, escondidos nos cantos, e as pessoas vão ver quando lotam as sessões dos outros filmes. Ninguém sente a obrigação, "ah! eu tenho que ver Bufo & Spallanzani para conversar com as pessoas, eu tenho que ter visto Amores Possíveis". Eu torço que agora, em termos comerciais, tomara mesmo que Avassaladoras destitua tudo e Surf Adventures muito mais ainda. Eu vi o trêiler outro dia e é um ótimo trêiler. Tomara que o pessoal se empolgue e vá ver. É isso, você tem que fazer o público, você tem que ser realista. Se você quer lançar o filme comercialmente, se você quer que as pessoas vejam, você tem que falar com o seu público. O Luiz Fernando Carvalho foi genial falando com o público dele, ele conseguiu fazer as pessoas necessitarem ver o filme dele.

JMC: Mas qual foi a estratégia dele? Eu não sei. Eu não vi anúnucio, não vi nada.

RG: Eu não sei, eu acho que transcende muito isso, a própria "aura" Lavoura Arcaica já diz muito mais: a) é um livro do Raduan Nassar; b) é o filme com mais metragem rodada na história do cinema brasileiro, rodado com mais do dobro da metragem de um filme americano comum; c) o filme já tem bochicho há três anos na imprensa; d) antes de ser visto pela própria imprensa já era vendido como obra-prima. Então tudo isso acrescenta, é um caso de exceção.

EV: Eu duvido que desses argumentos iniciais, se você perguntar pra alguém no cinema, eu acho que de 10, 8 não saberiam. Agora, o argumento principal é: a imprensa comprou o filme. A imprensa comprou o filme porque o Luiz Fernando Carvalho vendeu ele pra imprensa, ele sabia o que ele estava fazendo desde o início. Ele tornou o filme imprescindível. E ele sabia que para o público dele, isso era feito com os críticos e com os jornalistas. Eram eles que iam vender o filme pra ele. O problema é que não são os críticos e jornalistas que vendem Bufo & Spallanzani e Amores Possíveis, tem que ser dinheiro, mídia, a presença em todos os lugares para as pessoas se convencerem a entrar e assistir ao filme, porque eles lidam com um público diferente. Ele foi ao lugar certo. Isso aí qualquer pessoa do Grupo Estação pode dizer. Se você abre o jornal na sexta-feira e o filme sai unicamente no circuito Estação e o bonequinho está dormindo, é tanque. Não vai dar dinheiro. Nesse circuito, é o que acontece. Se você abre, o bonequinho está aplaudindo de pé e a estrelinha no JB dá quatro, você sabe que você já começou ali uma chance de sucesso quase garantido. E é isso, tem que direcionar. Já pro Amores Possíveis, o que importa não é se o cara deu uma ou quatro estrelas. O que importa é: as pessoas sabem que o filme existe? Naquela semana é o programa principal a ser feito? É ver Amores Possíveis? Tem que ser, senão. E Amores Possíveis nem é um fracasso, deu 400.000. mas o Murilo Benício dava entrevista na semana anterior achando que o filme daria 2 milhões, que ia retomar o veio popular do cinema brasileiro, dialogar com todo mundo, que era filme pra 2 milhões de espectadores. Eu não acho que o filme é um fracasso, acho que as pessoas que lançam é que imaginam que estão em outro mundo.

Parte 2: Bufo e Spallanzani, cinema comercial/cinema de autor

Parte 3: Distribuição, TV, público

Parte 4: O fenômeno do ano: Lavoura Arcaica, mais Bicho de Sete Cabeças e Brava Gente Brasileira

Parte 5: Xangô e "ser cinematográfico", Caramuru, A Partilha e Globo Filmes

Parte 6: Existe um novo cinema documentário brasileiro?

Parte 7: Copacabana, Memórias Póstumas, Domésticas, Mater Dei