Cinema falado, parte 2
Bufo e Spallanzani, cinema comercial/cinema de autor


GS: Agora, Bufo & Spallanzani foi um fracasso, haja vista a publicidade que o filme fez porque eles ficaram martelando.

EV: Agora, esse filme na verdade remete à Vera Cruz. É o típico caso de filme brasileiro à americana. Torço pra que Bellini e a Esfinge seja um sucesso porque eu acho que o filme meio que prova esse tom. Bellini e a Esfinge tem muito de brasileiro. É um filme feito no estilo à americana por um cara que estudou cinema nos Estados Unidos e que tem a gramática dominada, porque isso o público vai exigir desse tipo de filme, não tem jeito. Mas fora isso tudo ele tem um diferencial. O policial anda de Uno, mas é um Uno meio bizarro, e aí aparece a Malu Mader peladona. O Bufo não tinha isso. A peladona é a Isabel Guerón, e ela é musa no máximo no Baixo Gávea, né? Se você botar ela pelada não resolve muito as coisas. E você botar os caras com aquela fotografia belíssima, aquele tom. Eu achei o filme mais equivocado do ano em termos de relação com o público.

GS: Mas um outro problema do Bufo & Spallanzani foi que ele quis ser fiel à trama policial do livro. O legal de você ler o Bufo & Spallanzani são todas as reflexões que ele faz, sobre literatura, sobre criação. A trama policial, per se, é idiota, e o filme quis transpor essa trama policial.

EV: O Rubem Fonseca, eu falei isso na crítica da revista, mas ele é uma farsa para os adaptadores, para quem filma, porque todo mundo que leu acha que dá um filme

RG: Acha totalmente cinematográfico.

EV: Não dá um filme, aquilo é puramente literário. A força do Rubem Fonseca está no jeito que ele escreve, gostem ou não gostem, mas está no jeito que ele escreve. Entendeu? Aí você passa aquilo para a tela em terceira pessoa, né, objetividade com a câmera lá, são histórias absolutamente bobas. A história do filme é muito ruim. Assim, a trama policial não evolui de nada a lugar nenhum, não tem nenhuma intriga que mantenha o público interessado.

RG: Em relação ao livro o filme unifica dois personagens "do mal", os maus do filme são unificados num personagem, o que piora substancialmente.

EV: Não era um filme que conseguisse prender a atenção do público, eu juro que tentei, eu fiquei duas horas tentando, eu não sabia mais sobre o que era o filme, com quarenta minutos eu me perguntava "o que que eu estou tentando descobrir mesmo?", "Quem é que é o quê?" Porque está tudo nas palavras do Rubem Fonseca

GS: E comercialmente ainda é pior, porque acaba que realmente o assassino é o herói, e aquilo para o público é...

RG: E é desnecessário, porque você no fim do filme não está esperando a resolução da trama, você está querendo saber outras coisas a respeito do personagem, menos quem matou a socialite Delamare.

EV: Alguém me falou uma vez, eu acho que ainda está batendo a descrição perfeita: a grande sacada dos americanos foi que eles aprenderam a vender os filmes. E aí dentro de um formato que eles já dominaram e já está dentro da veia deles, que é como vender um filme, eles conseguem colocar uns caras lá que fazem filmes interessantes enquanto vendem os filmes. O brasileiro é assim: mesmo quando eles querem vender os filmes, eles querem fazer filmes autorais. Mesmo quando o discurso é fazer cinema comercial, são todos filmes autorais. Fala sério, Bufo & Spallanzani, se ele entendesse o público de fato, e fizesse um filme de fato comercial, ele faria como o Coppola que chega lá e diz: "Ah, não essa seqüência não rola". O Coppola não reclamou nada na época, é a maior mentira essa lenda que ele quer criar agora, todo mundo sabe disso. Histórias e mais histórias que ele sabia que tinha que tirar aquela seqüência da plantation. Cineasta brasileiro não, ele senta lá e quer fazer o quê? Ele faz o filme comercial, que ele jura que vai fazer um filme comercial. Condenado à Liberdade é outro, aí você vai ver. Mas tem um monte de joguinhos de linguagem, de coisinhas para pessoas inteligentes ficarem fazendo metáforas, umas besteiras que é o cara querendo dar um verniz que ele não pode fazer um filme que é puramente comercial. Tem que ter ali uma mão por trás daquilo. Isso é a maior besteira, faz o filme que você quer fazer logo. Você continua tendo um ranço. Porque esse meiozinho muito fechado, todo mundo se encontra em todos os coquetéis e ninguém quer ficar sendo dito pros outros que faz cinema comercial, todo mundo quer fazer filme que a classe goste.

RG: Sim, e até num outro gênero que me interessa mais, como o da comédia romântica...

DC: Esse autoral é um autoral muito mais na questão de não saber imitar

RG: Não, não, não é nada disso, não é a história do Paulo Emílio.

GS: São pretensamente autorais.

DC: Esse autoral é um autoral de "ah, o meu tema", mas o cara não quer fazer um filme de autor, um filme de arte

RG: Você pega por exemplo os filmes da Sandra Werneck

DC: A Sandra Werneck não quer fazer autor.

RG: Ela quer sim, ela quer ter um roteiro "minimamente trabalhado", ela não quer fazer um filme linear, nenhum dos filmes dela é linear.

EV: Eles todos querem fazer o filme para o público.

RG: Sim, sim, só que eles caem no ranço.

EV: Eles não sabem, eles não querem... Ou eles não vêem os filmes que vão para o público e não entendem o que é um filme para o público, ou eles não sabem quem é o público.

DC: Cinema americano que geralmente quer saber quem é o público geralmente dá com os burros n’água. Tanto que a única maneira do cinema americano de garantir quem é o público é fazendo continuação. Que é uma coisa que deu certo, então continua.

EV: Todos os filmes do cinema americano sabem quem é o público. Alguns fazem R$400 milhões e dão super certo e os outros que são uma merda fazem US$80 milhões.

DC: Porque eles distribuem. O Pearl Harbor se não tivesse uma puta distribuição ia ser um fracasso.

EV: Mas é claro.

DC: É um fracasso por quê? Se pagou mas não deu dinheiro.

EV: Não é um fracasso.

DC: Exatamente, porque foi bem distribuído. Por quê? Porque eles achavam que sabiam quem era o público. Fizeram um filme igual o Titanic. O Titanic era pra dar prejuízo, todo mundo achou que ia dar prejuízo. E foi um puta sucesso. Qual é a melhor maneira de fazer um outro Titanic? Faz um Titanic 2. Um Titanic 2 ia dar muito mais dinheiro que Pearl Harbor.

RG: Como é que ia fazer Titanic 2, o navio ia afundar de novo?

DC: Exatamente, então faz o quê? Rocky 2, Rocky 3, faz continuação. Ninguém sabe o que é o público. Quer dizer, todo mundo quer fazer filme comercial, viram e falam mal da classe, que todo mundo quer fazer filme de autor e não sei o quê, e quer dialogar com o público, e você vê isso em uma porrada de filmes por aqui. O Tainá é assim, o Amores Possíveis é assim, Condenado à Liberdade é assim. O Minha Vida em Suas Mãos, a mulher acha que é um filme para dialogar com o público, ela acha que é um filme de 1 milhão. Eles sempre acham que estão fazendo.

EV: Eles não fazem idéia do que é o público.

DC: É, mas também não é isso de que eles são autores. É autor muito mais nessa questão do Paulo Emílio de não saber imitar. Aí quer fazer um troço sofisticado, e sai aquela coisa que na verdade não funciona muito bem. Mas é um sofisticado pro público, o que é mais bizarro.

EV: Mas você tem um ranço de cinema autoral, de que todos querem ser autores e têm vergonha de fazer um público que seja... por exemplo, qual foi o filme mais detonado desse ano no Brasil? Um que inclusive tá aí, tá na crítica, eles têm essa relaçãozinha. O meio é muito pequenininho. Qual o filme mais detonado desse ano? Talvez não o mais detonado, mas certamente um dos mais detonados pela crítica? O Casamento de Louise. Por quê? Porque desses daí todos, é o único que vai lá e assume uma postura que é absolutamente comercial. O filme é completamente equivocado em muitos momentos, foi lançado pela Riofilme, o que significa que nunca dá mais do que 5.000, 10.000. mas eu tenho certeza que esse era o único filme que se fosse lançado e distribuído decentemente, ele tinha contato com o público, porque é um filme que abre mão de tudo e fala "ah, eu quero trazer o público mesmo". Aí o que acontece? É detonado pela crítica, é lançado no circuito dos filmes de arte, então quando ele é detonado pela crítica o filme já some. E fora isso todo mundo recusa: "Não, esse aí não, o filme não tem qualidade"

DC: Isso é muito um problema dessa crise desse ano. Você vê que os projetos mais elaborados, os projetos realmente elaborados por muito tempo... O Xangô esse ano foi um projeto problemático. É a versão boa do Chatô. Deu o mesmo problema, faltou dinheiro. Os outros projetos são majoritariamente projetos periféricos, filmes lançados pela Riofilme, filmes que demoraram muito tempo para ficarem prontos, os que tiveram essa grana do Xangô, eles estrearam ano passado, como Estorvo ou Amélia. Demorou muito tempo esse filme. Esse ano a gente tem o Lavoura Arcaica e o Xangô. O resto é na verdade na maior parte estreantes, quantos estreantes tem aí? (aponta para uma lista dos filmes lançados no ano). Ou então não são aquelas pessoas que estão trabalhando o tempo todo. Daí eu não acho que você pode chegar e dizer que tem essa ambição de ser autoral e ser comercial ao mesmo tempo. Eu acho que não existe isso.

EV: Eu não acho que o cara faz isso conscientemente, eu acho que está introjetado no processo da realização do filme. Ele não consegue se livrar totalmente, ele não consegue pensar fora disso, então ele quer utilizar recursos de linguagem que não têm nada a ver com o filme que ele está fazendo. Por exemplo, A Hora Marcada. A Hora Marcada é um filme insano.

DC: É por não saberem fazer, não é porque querem ser autorais. Não é que eles queiram ser considerados pela classe. Não tem a tarimba, a malandragem. Eu acho que o tempo todo é comercial, o problema é que não tem tarimba de comercial. É que nem jogador de futebol, o cara tem que ser malandro. Comercial não é qualquer um que chega lá. O cara só pega debaixo do braço se é o Affonso Brazza, que faz as coisas de uma forma detonada e vende de uma forma detonada como algo pitoresco. E o A Hora Marcada não se vende como algo pitoresco. Sabem fazer comercial? Não é bem assim. A Globo que vive fazendo comercial vive tomando paulada nesse negócio, sempre que se volta para o cinema a Globo fica meio, "Não, temos que ver"

EV: Mas o que eu queria entender de fato é o seguinte, alguém ainda vai me explicar: adianta lançar esses filmes do jeito que eles são lançados? Eu não consigo entender isso. Não é mais fácil você admitir? Ou você tem circuito ou você não tem circuito. Se você lançar o filme em dez salas, sendo que o filme é o refugo do lançamento americano da semana, ele nunca vai fazer sucesso. Pra brincar de cachorro grande, hoje em dia você precisa de dinheiro e de espaço na mídia, ou então você é cachorro pequeno. Então por que não ser um bom cachorro pequeno, porque um bom cachorro pequeno dá dinheiro.

DC: Mas então esse é o problema, vamos desistir da opção industrial. Na opção industrial o Tainá e o Xangô se seguraram. E tem uns aventureiros, que são na verdade verdadeiros heróis, que vêem, "olha, eles tão conseguindo, vamos cair dentro".

EV: O Tainá tem a ver com aquele fenômeno do cinema infantil que a gente falou que é absolutamente diferente de todos os outros no cinema brasileiro.

DC: Mas essa do cinema infantil é porque tem um malandro lá, um cara inteligente pra cacete que entende muito de mercado que é o Rovai, que dá a cara a tapa e toma porrada há 30 anos. Daqui há 30 anos esse aventureiro que a gente falou vai estar aí no lugar do Rovai.

EV: Mas o problema é pensar para quem você está falando. Se você está falando para a classe média de 15 a 40 anos, essa galera não vai ver esses filmes. Não lançados do jeito que eles são.

GS: E com relação a esse negócio de achar público, se você for procurar historicamente o público do cinema nacional, é o público de subúrbio, que hoje não existe mais o cinema de subúrbio, que era o público que teria feito O Casamento de Louise.

EV: Exatamente, mas foi isso que a gente falou quando viu o filme no Festival de Recife. Esse filme nos anos 70 não dava menos do que 2 milhões de espectadores. Esse era um filme para passar no circuito geral, passar na Zona Norte, Zona Oeste, ficar um ano em cartaz e dar 2 milhões. Aí esse filme vai ser pego, vai ser lançado no circuito do Espaço Unibanco como foi, em apenas uma sala no Rio, uma sala em São Paulo, e fez 5.000. A crítica disse obviamente "o filme é popularesco, o filme é bobo".

RG: Agora, a gente fala, porque tem critérios que não são os nossos, mas são os instituídos segundo os quais um bom roteiro, segundo a boa lógica pós-Pulp Fiction, um grande roteiro é aquele que deve ter várias mudanças de linearidade, várias mudanças no tempo cinematográfico, e você cria coisas bizarras, como um roteiro pseudo-sofisticado, como os dos filmes da Sandra Werneck, onde você tem três possibilidades para um futuro, uma coisa que só é feita pelo Alain Resnais e tal, mas que no fundo é um roteiro muito fraco, você tem uma fotografia e uma direção de arte feitas para ser "artísticas". E ao contrário, na verdade você só tem ratificação, você só tem recognição, você não tem nenhum elemento novo surgindo. Ou seja, você só tem as coisas que estão previamente classificadas como artísticas naquele filme, e essas coisas artísticas não se relacionam bem com o público ao qual são destinadas. E por mais que se possa falar que O Casamento de Louise é um filme que fracassa em várias coisas, o roteiro de fato é inteligente e é uma opção. O filme retoma uma tradição sacana e malandra do cinema brasileiro e é feito com muita inteligência pelo Roberto Torero. Eu acho que reside nisso aí, a grande confusão que se estava falando entre comercial e autoral, porque o Torero está pouco se lixando para como é um roteiro inteligente. Ao contrário do filme da Sandra Werneck, que está sempre querendo saber o que é um filme inteligente, uma fotografia de arte, um roteiro de arte para seguir. Não quer ser de arte porque é artístico, ou porque existe uma arte na feitura. O produto "artístico" é comercial, mas comercial para petit-comitée.

DC: Uma falha que me parece que existe no cinema comercial é acreditar plenamente ainda nesse esquema de cinema de gênero quando você expandindo pode levar um público absolutamente maior. Quer dizer, O Senhor dos Anéis não é apenas um filme infantil. O Bufo é apenas um filme policial, o Amores Possíveis é apenas um filme romântico, eu acho que limita muito esse troço de ser um segmento. Mal ou bem, todos esses filmes que chegam em locadoras, são filmes que saem relativamente bem, os de filme segmentado, é um filme policial, é uma comédia romântica. No cinema, a coisa é um pouco diferente, as pessoas precisam de um algo mais, e na verdade quando o cara vai fazer um filme que é considerado plenamente comercial, aí justamente ele se adequa a uma série de propostas, quando na verdade o cinema comercial não tem nenhuma proposta, a única proposta do cinema comercial é de fazer dinheiro. Não tem essa de um filme correto policial tem que ser assim. De repente um filme não ganha, o filme pode ser um filme policial mas não ter um elemento brasileiro, e se parece com o filme americano o cara vai ver o americano. É engraçado, é uma coisa que se discutia na época da Vera Cruz.

RG: O Tambellini é um herdeiro disso, pelo pai dele.

DC: Mas até o [Ugo] Giorgetti falou isso aí numa entrevista há três dias. O cinema paulista ainda é um filhote da Vera Cruz, ainda tem essa preocupação com técnica, com determinados modelos. E isso é um olhar dele para o cinema que ele faz. (trecho parcialmente inaudível.

(Daniel Caetano continua falando, fala sobre o ano e a relação com os anos anteriores, que tinham filmes de gente mais tarimbada, como Estorvo [Ruy Guerra] e Dois Córregos [Carlos Reichenbach]). A Laís, eu gosto do Bicho, não acho nenhuma maravilha, mas acho que é um bom filme. Mas o que vai acontecer depois? A gente está começando, mal ou bem, a ver... Porque com esse negócio de quebrar com os orçamentos, o que a Marisa Leão quis captar com o Estorvo e não conseguiu, que o Barreto deu uma congelada nos projetos e está voltando só agora, o negócio de filmar nos Estados Unidos, o Xangô deu esse xabu porque caiu o orçamento. O resultado é o seguinte: a gente tem muito filme ainda pra estrear. Mas a coisa ia ficar muito mais sinistra, porque pra ter noção, esse ano o Barreto só vai lançar um filme do Emiliano Ribeiro. Quer dizer, os filmes dos caras estarem rareando é um pouco por causa disso, é porque a Riofilme está com aqueles monte de filmes que está lá há um bom tempo. Ela vai lançando mas também não está pintando aquela coisa do filme que tem que passar a frente de todo mundo, só o da Sandra Werneck.

Parte 3: Distribuição, TV, público

Parte 4: O fenômeno do ano: Lavoura Arcaica, mais Bicho de Sete Cabeças e Brava Gente Brasileira

Parte 5: Xangô e "ser cinematográfico", Caramuru, A Partilha e Globo Filmes

Parte 6: Existe um novo cinema documentário brasileiro?

Parte 7: Copacabana, Memórias Póstumas, Domésticas, Mater Dei

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