O ULTIMATO BOURNE
Paul Greengrass, The Bourne Ultimatum, EUA, 2007

A trilogia Bourne segue aquele modelo de ficção paranóica onde os vilões pertencem ao establishment, eles são o sistema, eles exercem o controle de forma onipresente e, supostamente, invisível. Ao mocinho, antiga ferramenta de luxo do sistema, mas que se rebelou, resta fugir. É o que faz Jason Bourne (Matt Damon) desde o primeiro filme da série iniciada em 2002. O Ultimato Bourne agora fecha um percurso clássico: o filho desgarrado do sistema deve reencontrar o pai. Enquanto Rambo – também um elétron solto retornando à raiz, também um filho abandonado pelo pai – perpetrava uma revolta ludista (lembrar a cena dele destruindo os computadores em Rambo II, assim como seu retorno à guerra rústica, de emboscada), Bourne é um produto da era tecnológica e faz uso de todo tipo de dispositivo moderno para transitar de um país a outro e despistar seus inimigos.

Em O Ultimato Bourne, a divisão anti-terrorismo da CIA tem uma imagem antipática, assustadoramente operacional, desumana, a antítese de uma grande mãe (a personagem de Joan Allen é sempre frustrada em sua tentativa de proteger os agentes que serão mortos por queima de arquivo). A CIA programa seus funcionários – desde meros operadores de rede a máquinas de guerra supertreinadas – para servir ao sistema sem contestá-lo; usa seus jovens agentes e os destrói logo em seguida. Velha máxima: toda subjetividade deve ser anulada em prol da manutenção da estrutura. E a saga de Matt Damon não é outra senão lutar contra essa máxima: ele precisa recuperar sua identidade, reganhar um lugar de sujeito. O paradoxo é simples, e reside na sua necessidade de se apagar para o mundo, sumir, esquivar-se à vigilância, ao cadastro. Para ter a antiga identidade de volta, é preciso se livrar da atual. O enredo do filme corresponde ao suicídio simbólico de Jason Bourne, e ao seu renascimento – a cena final ilustra uma espécie de retorno ao útero para voltar à luz: um contra-plongé feito de dentro d’água, com Damon boiando e em seguida nadando, abstraído do resto do mundo, com uma luz quase divina sobre ele.

Paul Greengrass, cuja estratégia de instabilidade, fragmentação e clausura do plano já comentei na ocasião de Vôo United 93, agora alcança um ponto de equilíbrio pouco esperado e, verdade seja dita, louvável – embora Identidade Bourne continue sendo o melhor da série, talvez pelo simples fato de que Doug Liman é melhor diretor e ponto final. O mérito de Greengrass foi pegar aquele aspecto já estandardizado no cinema de ação que David Bordwell aponta como estilo run-and-gun (abordagem pseudo-documental, montagem acelerada, enquadramentos precários, variações bruscas de ângulos, desorientação espacial) e construir uma forma mais pensada, mais elaborada nos jogos de perseguição e de vigilância. Uma mestria se somou ao que, na maioria dos casos, vinha sendo apenas uma muleta estética. Não repetirei meus argumentos sobre os efeitos de narcose e sobre os novos códigos de realismo do cinema de ação, já comentados aqui e ali, respectivamente. Mas é sobre esses efeitos de excitação visual e fermentação da sensação de real que Greengrass opera (desde Domingo Sangrento), com o detalhe de que agora realmente vemos um trabalho que surpreende, primeiramente, pela integração orgânica desse repertório às potências do imaginário da ficção de espionagem (um vasto imaginário, diga-se) e, melhor ainda, pela capacidade de nos fazer partilhar o impacto físico e o suspense claustrofóbico da ação. O artifício vendido como real finalmente atinge sua meta.

A dinâmica de estilhaçamento das imagens e das seqüências tem uma justificativa mais interessante na experiência espectatorial buscada pelo filme do que na trama. Se associada ao estado insone, amnésico, hipersensível, paranóico de Jason Bourne, as rotas de colisão da decupagem não são mais interessantes do que uma dezena de outros filmes cuja estética foi extraída da mesma premissa. Mas no fundo essa estratégia de Greengrass nas cenas mais agitadas visa à simulação do impacto de uma batida de automóvel em alta velocidade: imagens amassadas, pressionadas, capotadas. Boa parte do filme é realizada com lentes teleobjetivas, criando um duplo aspecto de aproximação e aumento de tamanho, mas também de distorção volumétrica, de quebra dos relevos. O resultado é uma telescopagem estética de todo coerente com a configuração dos territórios globalizados que constituem as locações do filme – lugares de trânsito, de trocas, de tráficos de corpos e de matérias.

A experiência se torna mais forte numa cena em particular, a segunda melhor do filme (o supra-sumo é a perseguição em Tanger), quando Jason é perseguido pelas ruas de Nova York dirigindo um carro da polícia. No espaço extra-lei que ele ocupa, limbo da política internacional, Jason calha de fugir na viatura de uma autoridade, a polícia, que traz todo o peso simbólico da sociedade em que ele está impossibilitado de transitar como um cidadão qualquer. Temos aqui a real dimensão do enredo: toda sociedade se constitui ao estabelecer leis, regras, um imaginário, um pertencimento – uma identidade que faz com que ninguém escape à culpa. “Eu lembro do rosto de cada pessoa que matei”, diz Jason Bourne. Tal o fardo que carrega.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD: Universal)

 

 







Um breve plano de intimidade em meio ao frenesi:
arte dos intervalos inusitada em se tratando de Paul Greengrass


A câmera acompanhando o salto de Bourne, e o vidro se
estilhaçando em sua direção: equilíbrio entre excitação visual
e construção minuciosa


A agente Nicky tinge o cabelo de preto, corta as pontas
e fica parecida com Marie (Franka Potente), namorada de Jason que foi morta no segundo filme, e que aparece aqui em um flashback extraído de Identidade Bourne, reforçando um curto-circuito de identidades e aparências


O impacto da colisão como premissa estética