A trilogia Bourne
segue aquele modelo de ficção paranóica onde os vilões
pertencem ao establishment, eles são o sistema, eles exercem o controle
de forma onipresente e, supostamente, invisível.
Ao mocinho, antiga ferramenta de luxo do sistema, mas
que se rebelou, resta fugir. É o que faz Jason
Bourne (Matt
Damon) desde o primeiro filme
da série iniciada em 2002. O
Ultimato Bourne agora
fecha um percurso clássico: o filho desgarrado do sistema
deve reencontrar o pai. Enquanto Rambo – também um elétron solto retornando à raiz, também
um filho abandonado pelo pai – perpetrava uma revolta
ludista (lembrar a cena dele
destruindo os computadores em Rambo II, assim como seu retorno à guerra rústica, de emboscada), Bourne é um produto da era tecnológica e faz uso de todo tipo
de dispositivo moderno para transitar de um país a outro
e despistar seus inimigos.
Em O Ultimato
Bourne, a divisão anti-terrorismo
da CIA tem uma imagem antipática, assustadoramente operacional,
desumana, a antítese de uma grande mãe (a personagem
de Joan Allen é sempre frustrada em sua tentativa de
proteger os agentes que serão mortos por queima de arquivo).
A CIA programa seus funcionários – desde meros operadores
de rede a máquinas de guerra supertreinadas – para servir ao sistema sem contestá-lo; usa
seus jovens agentes e os destrói logo em seguida. Velha
máxima: toda subjetividade deve ser anulada em prol
da manutenção da estrutura. E a saga de Matt Damon não é outra senão lutar
contra essa máxima: ele precisa recuperar sua identidade,
reganhar um lugar de sujeito. O paradoxo é simples,
e reside na sua necessidade de se apagar para o mundo,
sumir, esquivar-se à vigilância, ao cadastro. Para ter
a antiga identidade de volta, é preciso se livrar da
atual. O enredo do filme corresponde ao suicídio simbólico
de Jason Bourne, e ao seu renascimento – a cena final ilustra uma espécie
de retorno ao útero para voltar à luz: um contra-plongé
feito de dentro d’água, com Damon
boiando e em seguida nadando, abstraído do resto do
mundo, com uma luz quase divina sobre ele.
Paul Greengrass, cuja estratégia
de instabilidade, fragmentação e clausura do plano já
comentei na ocasião de Vôo United
93, agora alcança um ponto de equilíbrio pouco
esperado e, verdade seja dita, louvável – embora Identidade Bourne
continue sendo o melhor da série, talvez pelo simples
fato de que Doug Liman
é melhor diretor e ponto final. O mérito de Greengrass foi pegar aquele aspecto já estandardizado no cinema
de ação que David Bordwell
aponta como estilo run-and-gun (abordagem
pseudo-documental, montagem acelerada, enquadramentos
precários, variações bruscas de ângulos, desorientação
espacial) e construir uma forma mais pensada, mais elaborada
nos jogos de perseguição e de vigilância. Uma mestria
se somou ao que, na maioria dos casos, vinha sendo apenas
uma muleta estética. Não repetirei meus argumentos sobre
os efeitos de narcose e sobre os novos códigos de realismo
do cinema de ação, já comentados aqui
e ali, respectivamente.
Mas é sobre esses efeitos de excitação visual e fermentação
da sensação de real que Greengrass opera (desde Domingo
Sangrento), com o detalhe de que agora realmente
vemos um trabalho que surpreende, primeiramente, pela
integração orgânica desse repertório às potências do
imaginário da ficção de espionagem (um vasto imaginário,
diga-se) e, melhor ainda, pela capacidade de nos fazer
partilhar o impacto físico e o suspense claustrofóbico
da ação. O artifício vendido como real finalmente atinge
sua meta.
A dinâmica de estilhaçamento
das imagens e das seqüências tem uma justificativa mais
interessante na experiência espectatorial buscada pelo filme do que na trama. Se associada
ao estado insone, amnésico, hipersensível, paranóico
de Jason Bourne, as rotas de colisão
da decupagem não são mais
interessantes do que uma dezena de outros filmes cuja
estética foi extraída da mesma premissa. Mas no fundo
essa estratégia de Greengrass
nas cenas mais agitadas visa à simulação do impacto
de uma batida de automóvel em alta velocidade: imagens
amassadas, pressionadas, capotadas. Boa parte do filme
é realizada com lentes teleobjetivas, criando um duplo
aspecto de aproximação e aumento de tamanho, mas também
de distorção volumétrica, de quebra dos relevos. O resultado
é uma telescopagem estética
de todo coerente com a configuração dos territórios
globalizados que constituem as locações do filme – lugares
de trânsito, de trocas, de tráficos de corpos e de matérias.
A experiência se torna mais forte numa cena em particular,
a segunda melhor do filme (o supra-sumo é a perseguição
em Tanger), quando Jason é
perseguido pelas ruas de Nova York dirigindo um carro
da polícia. No espaço extra-lei que ele ocupa, limbo da política internacional, Jason calha de fugir na viatura de uma autoridade, a polícia,
que traz todo o peso simbólico da sociedade em que ele
está impossibilitado de transitar como um cidadão qualquer.
Temos aqui a real dimensão do enredo: toda sociedade
se constitui ao estabelecer leis, regras, um imaginário,
um pertencimento – uma identidade
que faz com que ninguém escape à culpa. “Eu lembro do
rosto de cada pessoa que matei”, diz Jason
Bourne. Tal o fardo que carrega.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD: Universal)
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