HERÓIS QUE NÃO MORREM DE OVERDOSE

Nos últimos anos, o cinema de ação norte-americano vem passando por uma renovação estética que tem a ver com os comportamentos das imagens e com os formatos narrativos dos filmes, mas que demonstra também uma mudança de espaço, de duração, uma reforma das leis de movimento justo lá no cinema que dele mais depende. Os temas permanecem os mesmos, nada de muito novo se acrescentou em relação ao que Hollywood filmava há duas, talvez três décadas, desde a busca do tesouro escondido até o combate ao inimigo estrangeiro tudo se mantém mais ou menos na mesma. É a velha constatação: um imaginário não se alimenta de assuntos, mas de maneiras, de modos de narrar. Uma criança é capaz de ouvir a mesma estória todos os dias, o que importa para ela é a experiência de ouvir aquela estória, os pequenos detalhes que se acrescentam ou se subtraem cada vez que os adultos a recontam. A manutenção de um imaginário coletivo é de certa forma o avatar de infantilidade do público.

Entre os anos 80 e os 2000, podemos notar uma passagem de paradigma no cinema de ação. De lá para cá, houve uma penca de mudanças no universo audiovisual, que incluem a revolução digital, o fetiche do tempo morto desencadeado pelos reality shows televisivos, a ligação do cinema industrial a pesquisas de resposta de público ancoradas na semiologia e na sociologia de massa (a ponto de fazer com que o discurso e a publicidade em torno de um filme sejam, em diversos casos, maiores e mais determinantes que o filme em si). No plano estético e narrativo, a década de 90 testemunhou uma segunda crise da imagem-ação, uma nova pane dos sistemas sensório-motores que haviam dado o tônus do cinema clássico-narrativo. Enquanto na década anterior Hollywood tinha se especializado em elegias de gêneros envelhecidos, os filmes de neo-gênero dos anos 90 ora se empenharam como puderam para vivificar esquemas desgastados, ora conduziram verdadeiras cerimônias de adeus ao gênero (O Último Grande Herói de John McTiernan, True Lies de James Cameron, A Hora do Pesadelo 7 de Wes Craven). Tim Burton, que nos dois primeiros Batman optou por uma estratégia de saturação em que cada plano fervilhava em signos, sentidos, referências, oferece o que talvez seja o exemplo extremo: ambientado num cenário gangrenado, cheio de corpos do antigo cinema em decomposição, Batman Returns (1992) apresenta cenas de ação propositalmente preguiçosas, disfuncionais.

Se na década de 90 há crise na narrativa e nos códigos de ação, é porque o roteiro à moda antiga não mais funciona, mas ao mesmo tempo ainda não há um substituto à altura. Antes de seus gêneros mais “puros” reencontrarem um nicho na série televisiva, e antes de um novo modelo narrativo se delinear em paralelo às transformações do público e dos espaços de fruição dos filmes, o cinema de ação vive um período de indecisão latente (o próprio Indiana Jones e a Última Cruzada, de 1989, parecia marcar o fim de uma época, aquela dominada pelos wonder-boys do cinema fantástico americano pós-Guerra nas Estrelas, sobretudo a dupla Spielberg-Lucas). Ocorrem então filmes de transição, sob formas variadas: pioneiros da narrativa em montanha-russa como Velocidade Máxima e Duro de Matar 3; reflexão sobre os mecanismos de fascinação do universo ficcional (O Último Grande Herói) ou sobre o crepúsculo dos diretores-artesãos (Thomas Crown, também de McTiernan); maneirismo insosso nos blockbusters capitaneados por Jerry Bruckheimer e cia (A Rocha e Bad Boys são exemplos típicos, ambos dirigidos por Michael Bay); e efeitos especiais sofisticados e custosos, claro. Enquanto o roteiro e a imagem se tornavam instrumentos de combate para ganhar o espectador, o horizonte indicava um caminho de extremos e de reviravoltas para a mise en scène e a narrativa de ação, contrariando as noções de equilíbrio, de unidade e de síntese do cinema clássico – que ainda haviam pautado o triunfo de filmes como Caçadores da Arca Perdida, Blade Runner (dois ícones do formalismo nostálgico da década de 80), Duro de Matar, Exterminador do Futuro, Rambo.

Quanto ao papel que o 11 de setembro de 2001 posteriormente desempenharia no universo do cinema de ação (onde muitos achavam na época que haveria revolução ou decadência, já que não seria mais possível se impressionar com imagens de explosão e de violência em larga escala – como estavam enganadas essas previsões...), este ainda permanece obscuro. O que sabemos é que a data fatídica repercutiu na ficção menos através de temas – até porque o terrorismo internacional era um velho conhecido do cinema americano, e houve mesmo quem apontasse certos filmes que prenunciavam o ataque ao WTC – ou de formas de encenação do que através de um discurso fácil sobre a diluição e a invisibilidade do mal, e de um uso mais e mais sistemático da narrativa em tempo real, sob uma espécie de jornalismo mórbido apto a captar a grande tragédia e difundi-la ao vivo para o mundo todo. Quando assimilado à diegese, o catastrófico ponta-pé inicial do século XXI pode agora ser encarado frontalmente, recorrendo aos velhos truques de drama e heroísmo (As Torres Gêmeas, de Oliver Stone), mesmo em suas versões com mais anfetamina e tiques de “direto” (Vôo United 93, de Paul Greengrass), ou ser visto de soslaio, pegando desvios metafóricos e simbólicos (Batman Begins, Guerra dos Mundos). Nada demais, nenhum grande problema para a terra das ficções.

Personagens em queda, imagens em aceleração

Uma ótima maneira de observar as transformações da indústria cinematográfica é acompanhar a saga de heróis que, vindos do quadrinho, da TV ou nascidos no próprio cinema, retornam anos depois, às vezes décadas depois de um primeiro filme sobre eles ter sido feito. Superman – O Retorno, Batman Begins, Hulk, 007 – Cassino Royale e Miami Vice são alguns dos numerosos exemplos de como uma matéria ficcional retrabalhada ao longo do tempo pode ilustrar a mudança de paradigmas estéticos no cinema de ação de grande orçamento. É também o caso de Missão: Impossível 3, filme-sintoma que vai na contramão dos filmes anteriores da série dirigidos por Brian De Palma e John Woo, pois J. J. Abrams (um dos criadores de Lost) tenta se aproximar da dinâmica narrativa de algumas séries televisivas de sucesso (notadamente Alias e 24 Horas) acrescentando um mergulho no vácuo que pulveriza os movimentos e faz a narrativa de ação passar da topografia à telegrafia: o espaço é uma ambiência virtual, à semelhança dos cenários de jogos eletrônicos, ou mesmo um pano de fundo para a inscrição de uma “idéia”, à semelhança das vinhetas publicitárias; a duração é uma questão de plot (correr contra o tempo, no mais das vezes) mas não de experiência ou de estética.

Há uma palavra de ordem para Batman, Superman, 007, Homem-Aranha: retornar. Eles retornam de férias, de lua-de-mel, de descanso... Mas também do mundo dos mortos, porque, mais do que um retorno, muitas vezes se trata de uma verdadeira ressurreição. 007 – Cassino Royale: após envenenamento, o coração de James Bond pára e ele precisa ser desfibrilado (o herói renasce, a série também). Missão: Impossível 3: uma micro-bomba é introduzida no cérebro de Ethan Hunt (Tom Cruise), e a única forma de desativá-la é provocando nele um choque elétrico fatal, para depois sua esposa o reanimar com massagem cardíaca e respiração boca-a-boca. (Fora do cinema, na televisão, Jack Bauer ressuscita metaforicamente a cada temporada de 24 Horas.) Esses personagens estavam mortos junto com o tipo de cinema a que pertencem, que nos anos 90, como dito acima, conheceu uma zona de sombra, de limbo, uma perda de poderes ficcionais. O engraçado desse tipo de retorno post morten, dessa teimosia em permanecer vivo, é que antigamente isso era característica de serial killer de terror adolescente – Freddy Krueger, Jason, Michael Myers. Agora são os mocinhos que ressurgem do lodo infernal.

Na sua primeira hora, Missão: Impossível 3 se dedica a um enredo banal, de progressão dramática bastante comum, salvo uma ou outra afetação. Da metade em diante, contudo, uma bomba de efeito adrenérgico cai sobre o filme e nenhum minuto de pausa será mais permitido. Quando dois personagens pensam que podem se interiorizar, que podem tomar o tempo da construção psicológica, algo acontece e os chama de volta à ação, à vertigem: na cena em que o agente Declan pede a Zhen, no carro, que ela lhe ensine a oração que fazia na infância toda vez que seu gato sumia, o telefone soa desesperadamente e Ethan berra algumas palavras antes de mergulhar de pára-quedas do alto de um prédio. Falar da infância, contar algo sobre o passado, vasculhar a mente do outro, isso era antes. Agora é só correr, correr mais, pular de alturas inimagináveis, viver o presente imediato. É o tempo da reação, e não do pensamento. O filme de Abrams muda de disfarce na metade do caminho, troca de estratégia visual e narrativa assim como seus personagens trocam de rosto.

O universo ultra-tecnológico de Missão: Impossível, assim como suas tramas cerebrais, complexas, acaba fadado à abstração, ao quase apagamento dos conteúdos. No filme de Brian De Palma, de 1996, já havia uma visão achatada dos personagens, sem profundidade ou espessura, apenas linhas de iconografia, contornos de figuras ocas. Os espaços por sua vez pareciam cemitérios de formas e tramas antigas – a guerra-fria acabou e o embate ideológico deixou uma lacuna preenchida apenas por jogos de simulacros, implantes, fantasmas se movendo num mundo entregue às superfícies e à virtualidade, o mesmo mundo de Identidade Bourne (Doug Liman, 2002). Em Missão: Impossível 3, Tom Cruise vai até a janela e desenha no vidro um esboço dos arranha-céus de Xangai, que ele vê à sua frente. Essa cena enuncia o regime estético do filme, que sai da relação de distância e reduz o espaço a uma superfície lisa e transparente, onde uma imagem pode deslizar sobre a outra e conter apenas o rascunho de um mundo que está ali para ser desafiado, transgredido. Tudo é ao mesmo tempo hiper-real e falso: o mundo paranóico de Missão: Impossível, embalado por drogas, venenos, entorpecimento, está em alguma brecha entre a realidade e seu pesadelo. Neste terceiro filme da série, o fetichismo autoral caro a De Palma já inexiste. Para J. J. Abrams (e para vários outros realizadores surgidos da década de 80 para cá), não existem mais “autores”, mestres do passado aos quais fazer referência ou reconhecer inspiração, mas somente imagens das quais todos podem se servir. Uma cultura esquizóide das imagens, um calabouço de signos, fetiches, elementos plásticos, objetos icônicos. Essa cultura estremece o que ainda restou do legado de Bazin sobre um cinema fundado na interrogação moral, no coeficiente de realidade do registro, na ontologia da imagem fotográfica, na profundidade de campo, no fora-de-quadro.

Ainda no início de Missão: Impossível 3, Ethan crava uma seringa contendo adrenalina no peito de uma colega, que havia sofrido torturas e estava meio desacordada. Ele avisa assim aos espectadores que o filme vai se alimentar exatamente disso, de uma injeção cavalar de adrenalina. É a confirmação de que de uns tempos para cá, o ambiente de cultivo da imagem-ação está cada vez mais aparentado à fabricação de drogas estimulantes. O sensorial preexiste ao sentido (de uma maneira diferente dos ópios narrativos que experimentamos em Hou Hsiao-hsien, David Lynch ou Claire Denis). Como Thierry Jousse disse certa vez (“Le tueurs de l’image”, em Cahiers du Cinéma nº 484, outubro de 1994), a partir da busca de efeitos de narcose por parte de alguns filmes de ação, o meio é a mensagem e também a “massagem”. Não é exagero dizer que o espaço do filme (ou seja, a experiência do cinema com o espaço, todo o espaço) é muitas vezes substituído pelo espaço das salas: o cinema de grandes estúdios é volta e meia pensando em termos das tecnologias (som dolby cada vez mais estridente, telas cada vez mais gigantes) disponíveis nas salas modernizadas.

A transformação do filme em “laboratório de sensações físicas”, entretanto, não necessariamente faz dele o mediador de um efeito especial: há muitos bons filmes para provar o contrário, para mostrar que o efeito especial e o filme podem agir em sinergismo, sem que este último seja o mero veículo de uma técnica e de uma exorbitância estética qualquer. Invertendo o jogo, enxergamos também que os efeitos de narcose não se reduzem a filmes que fazem uso pronunciado das novas tecnologias de imagem e som. Mesmo em Tarantino há uma estética da droga na atenção a detalhes irrelevantes, na dilatação de diálogos extirpados de assunto, que se proliferam no vazio; o espectador fica lá chapado, rindo sem motivo, siderado pelo absurdo das conversas e partilhando das teorias estapafúrdias dos personagens. Potência ou futilidade da palavra?

A crise do roteiro “textual” e a primazia de efeitos visuais-cinéticos como base do cinema de ação contemporâneo corresponde a um momento (previsível, lógico) em que o ponto zero de sua construção narrativa já não é a literatura, o romance de aventura (ou qualquer fonte escrita), e sim a história em quadrinhos (texto + imagem), o videogame, a série televisiva, os parques temáticos da Disney e seus similares, o RPG e suas versões mais modernas – narrativas visuais e experiências de imersão que tomaram de vez o lugar da literatura e do próprio cinema de outrora na formação estética do público que mais consome o cinema de ação (jovens e adolescentes). Isso leva o cinema de volta a uma de suas vocações primordiais: a feira de novidades, o cinema de atrações. O espetáculo não consiste num filminho ligeiro atrás do outro, mas o modo de funcionamento é parecido: tensão e distensão de seqüências autônomas, pequenas atrações que, mero detalhe, estão unidas em torno de um mesmo “tema”. Uma forma de se conectar aos novos modos de atenção do público, hoje mais acostumado a se focar e se dispersar ciclicamente do que a acompanhar um fio narrativo contínuo. Piratas do Caribe, King Kong, Panteras Detonando, Miami Vice: cada um a seu modo, esses filmes empilham seqüências individuadas, recompõem em patchwork ou em fluxo (de acordo com as preferências dos realizadores) o que o Black Maria de Edison já continha em embrião.

A adesão ao filme já não se encontra tão apegada aos antigos esquemas psicológicos e identitários do cinema de gênero: o espectador consegue se colar ao filme como quem simplesmente se instala em um certo lugar durante um certo tempo – uma adesão ao dispositivo, às sensações que ele provoca e que parecem se propagar em zonas de imantação e confusão, verdadeiras câmaras de simulação que pouco a pouco ocupam o lugar da dramaturgia e da representação especular. A catarse, portanto, não tem mais o mesmo estatuto de antes. Thierry Jousse novamente: é a proliferação e a velocidade das imagens, mais que seu conteúdo, o que cumpre o papel de liberação; a purgação de nossas “paixões obscuras” se dá de forma menos afeita à tragédia grega do que a uma cerimônia mágica de exorcismo “trabalhando diretamente sobre nossa energia vital”.

A mise en scène se troca por uma manipulação das energias e das potências da imagem. As cenas não prezam mais pela coerência e unidade narrativa, porém integram ciclos nos quais a sensação física e a percepção estética do movimento devem coincidir. São narrativas de flutuação em que a imagem e o enredo perdem o peso do real e se mostram emaranhados de símbolos desconectados de significações, parques de diversão que abrigam personagens excêntricos e seus movimentos deslumbrantes. Menos cognição e mais sensação, ok, mas isso não serve de indicador de um empobrecimento intelectual da platéia jovem. Pelo contrário: é por ela ter se tornado ciente demais da separação vida/ficção, por ter se tornado bem informada demais sobre o mundo da técnica, da representação, da encenação, que o cinema precisou buscar novos atrativos.

É normal, até compreensível, que surja a nostalgia de um cinema situado além do visual, um cinema de gênero que convoca a imaginação e o fora-de-campo. De fato, se um filme se instala no terreno do visual pleno, da imagem-modulação, da construção em esquetes, pouco resta das elipses, das relações entre campos, da ativação de espaços em off, invisíveis provisória ou permanentemente. O que é o espaço-fora-da-tela para um cinema inspirado nos jogos eletrônicos, nos quais sair do campo visual, abandonar o monitor significa perder uma vida? Não há existência possível para os personagens senão dentro da imagem. Em Homem-Aranha temos o exemplo mais impressionante: a imagem se modula como se fosse o estojo maleável que acomoda o super-herói e, por que não dizer, protege-o do mundo. O próprio contorcionismo das imagens oferece ao super-herói a solução-tampão que impede seus movimentos de transbordarem a tela de cinema. Outra brilhante síntese visual está em Piratas do Caribe 2: uma cena de duelo passada dentro de uma enorme roda em desabalada carreira, como a prescrever uma narrativa em looping, alimentada por um moto-perpétuo de ação e reviravolta. Uma parte do novo cinema de ação prescinde assim cada vez mais de conteúdos lógicos, de linearidade narrativa, para se tornar um redemoinho de ações libertas de sistemas causais ou de amarras de roteiro (ainda que outras amarras técnicas-estéticas se imponham), eventos que transitam pelo circuito neural estabelecido entre a platéia e o filme. O drama, a ação, o enredo passa a obedecer menos às sinopses dos filmes do que às leis da física (a força da gravidade, a conservação de energia). A imagem vai sendo lavada de todo peso, de toda matéria rígida, ganhando mais aceleração. Não estaria a imagem-ação cada vez mais perto de seu destino natural?

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 








Missão: Impossível 3, de J. J. Abrams