VÔO UNITED 93
Paul Greengrass, United 93, EUA/Reino Unido, 2006

Há algo de contraditório na maneira como Paul Greengrass filma. O efeito é claramente acentuar uma espécie de novo código de realismo, dando ao registro uma forma híbrida de reportagem sensacionalista e thriller de ação. Para ele não bastou, em Vôo United 93, evitar os estúdios, utilizar muitos atores não-profissionais – alguns interpretando eles mesmos, como o gerenciador do tráfego aéreo americano, tido como uma das poucas pessoas a agir de forma sensata no episódio – e concentrar a estética na crueza das situações: o diretor precisou também compor os planos com uma câmera exclamativamente na mão, tremendo e fazendo chicotes que, somados à montagem em planos curtos, impõem uma sensação de instabilidade. A fórmula é mais ou menos a mesma de Domingo Sangrento. E o tiro sai pela culatra novamente: tudo soa como o mais indiscreto artificialismo, mero atalho para uma suposta urgência do registro. Na parte final, quando o filme se concentra de vez no avião que lhe dá título, a mise en scène passa a fazer mais sentido, pela exigüidade do espaço e pela confusão inerente ao evento. O modo atravessado de mostrar as coisas ali produz algum efeito. No resto do filme, contudo, é realmente uma tentativa de criar tensão por meios apelativos.

Uma cena, curiosamente a única que não era “novidade”, possui verdadeiro impacto: a imagem do segundo avião se chocando contra o WTC, imagem banalizada não apenas por sua repetição exaustiva, mas principalmente porque ela havia sido transmitida ao vivo na televisão. Como especular a dramaturgia de um evento originalmente transmitido em “tempo real”? Greengrass consegue atualizar a imagem, restituir seu impacto tão-somente pelo contexto dramático. Os personagens do filme estão assistindo àquilo pela primeira vez, e suas reações são captadas. Temos uma ressignificação daquela imagem pela articulação dela com outras. Na TV, ainda mais ao vivo, a imagem ficava solta, não havia outra imagem para se articular com ela, era algo vindo do nada; era acordar, ligar a TV e se deparar com aquilo. Ficava só a perplexidade. Vôo United 93, por mais levianas que suas associações possam ser, põe essa imagem em diálogo com outras imagens – desde os seqüestradores rezando no início até os funcionários da torre do aeroporto incrédulos com o que estão vendo – e o resultado é a possibilidade de sair do estado petrificado, da paralisação provocada pelo choque, e entrar no drama do episódio, na sua representação em função de um tempo/espaço, de uma ação e de um ponto de vista.

A princípio uma narrativa em painel, buscando mostrar várias das esferas em ação naquela data fatídica, o filme subitamente se concentra no avião que cairia nos arredores da Pensilvânia e ignora o resto, como já foi dito. A mescla de reconstituição (das situações que algumas pessoas viveram e puderam contar como foi) com especulação (do vôo que não deixou sobreviventes) se troca então por uma imersão total nos minutos finais da vida dos passageiros do avião. A iniciativa dos passageiros homens de confrontar os terroristas, no puro desespero, leva o filme ao clímax e cria uma atmosfera de apocalipse. Diferentemente dos terroristas, aos quais o filme atribui a reza como uma espécie de combustível das ações, aos passageiros que percebem o beco sem saída onde se encontram só resta rezar. Na cena de abertura, vemos os seqüestradores compenetrados em suas orações. Logo depois, no trajeto para o aeroporto, a câmera encontra na rua um muro em que se lê a frase mais repetida por Bush durante suas declarações de guerra: “God bless America”. O espelhamento será retomado no final, com a reza que embala a guinada kamikaze do terrorista que pilota o boeing se alternando com a reza dos passageiros que já perderam qualquer esperança de sobreviver.

A opção de fazer o filme cair junto com o avião tem até sentido: naquele momento, ele já estava abandonado à própria sorte. Mas o sumiço dos outros pontos da narrativa provoca algumas suspeitas. É estranho, por exemplo, que o filme embarque no blackout total da imagem do Pentágono atingido, a imagem nunca vista, negada à documentação do episódio porque sua parcela simbólica, ao contrário dos muitos usos estratégicos que as imagens das torres gêmeas permitiram, seria apenas derrotante. Diante desse “esquecimento”, a própria imagem do WTC mostrada pela enésima vez, embora sua recontextualização seja interessante, passa a estar ali para reiterar a função já anteriormente constituída no imaginário do 11 de setembro. De uma hora para outra, não se fala mais no Pentágono – só num telefonema de um personagem do avião a um parente, no qual a mensagem parece atravessada, imprecisa, conflitante com a história que outros tinham recebido sobre o WTC. Essa fragilidade de ponto de vista apenas se acentua com as cartelas que o filme termina exibindo, nas quais se insinua que certos setores estratégicos do governo e das forças aéreas norte-americanas demoraram a agir, ou agiram mal diante da situação. Ora, muito se pode dizer sobre os motivos que levaram ao 11 de setembro, mas, francamente, cobrar eficiência ou sugerir atestados de incompetência – seja lá de quem ou a quem for – em relação aos eventos que ocorreram naquelas horas é um pouco demais. Se o restante do filme dava uma idéia de que ninguém, nem a mais poderosa nação do mundo, podia estar preparado para aquilo, por que essa guinada singelamente acusatória no final? Ou o significado político do filme passaria justamente por isso, a queda do império do pragmatismo teria seu motor no absurdo, e sugerir culpados seria apenas uma parcela de ironia? De uma forma ou de outra, Vôo United 93 está muito longe de ter uma perspectiva realmente corajosa ou importante sobre o cataclismo inaugural do século XXI.


Luiz Carlos Oliveira Jr.