Há
algo de contraditório na maneira como Paul Greengrass
filma. O efeito é claramente acentuar uma espécie de
novo código de realismo, dando ao registro uma forma
híbrida de reportagem sensacionalista e thriller de
ação. Para ele não bastou, em Vôo United 93,
evitar os estúdios, utilizar muitos atores não-profissionais
– alguns interpretando eles mesmos, como o gerenciador
do tráfego aéreo americano, tido como uma das poucas
pessoas a agir de forma sensata no episódio – e concentrar
a estética na crueza das situações: o diretor precisou
também compor os planos com uma câmera exclamativamente
na mão, tremendo e fazendo chicotes que, somados à montagem
em planos curtos, impõem uma sensação de instabilidade.
A fórmula é mais ou menos a mesma de Domingo Sangrento.
E o tiro sai pela culatra novamente: tudo soa como o
mais indiscreto artificialismo, mero atalho para uma
suposta urgência do registro. Na parte final, quando
o filme se concentra de vez no avião que lhe dá título,
a mise en scène passa a fazer mais sentido, pela
exigüidade do espaço e pela confusão inerente ao evento.
O modo atravessado de mostrar as coisas ali produz algum
efeito. No resto do filme, contudo, é realmente uma
tentativa de criar tensão por meios apelativos.
Uma cena, curiosamente a única que não era “novidade”,
possui verdadeiro impacto: a imagem do segundo avião
se chocando contra o WTC, imagem banalizada não apenas
por sua repetição exaustiva, mas principalmente porque
ela havia sido transmitida ao vivo na televisão. Como
especular a dramaturgia de um evento originalmente transmitido
em “tempo real”? Greengrass consegue atualizar a imagem,
restituir seu impacto tão-somente pelo contexto dramático.
Os personagens do filme estão assistindo àquilo pela
primeira vez, e suas reações são captadas. Temos uma
ressignificação daquela imagem pela articulação dela
com outras. Na TV, ainda mais ao vivo, a imagem ficava
solta, não havia outra imagem para se articular com
ela, era algo vindo do nada; era acordar, ligar a TV
e se deparar com aquilo. Ficava só a perplexidade. Vôo
United 93, por mais levianas que suas associações
possam ser, põe essa imagem em diálogo com outras imagens
– desde os seqüestradores rezando no início até os funcionários
da torre do aeroporto incrédulos com o que estão vendo
– e o resultado é a possibilidade de sair do estado
petrificado, da paralisação provocada pelo choque, e
entrar no drama do episódio, na sua representação
em função de um tempo/espaço, de uma ação e de um ponto
de vista.
A princípio uma narrativa em painel, buscando mostrar
várias das esferas em ação naquela data fatídica, o
filme subitamente se concentra no avião que cairia nos
arredores da Pensilvânia e ignora o resto, como já foi
dito. A mescla de reconstituição (das situações que
algumas pessoas viveram e puderam contar como foi) com
especulação (do vôo que não deixou sobreviventes) se
troca então por uma imersão total nos minutos finais
da vida dos passageiros do avião. A iniciativa dos passageiros
homens de confrontar os terroristas, no puro desespero,
leva o filme ao clímax e cria uma atmosfera de apocalipse.
Diferentemente dos terroristas, aos quais o filme atribui
a reza como uma espécie de combustível das ações, aos
passageiros que percebem o beco sem saída onde se encontram
só resta rezar. Na cena de abertura, vemos os
seqüestradores compenetrados em suas orações. Logo depois,
no trajeto para o aeroporto, a câmera encontra na rua
um muro em que se lê a frase mais repetida por Bush
durante suas declarações de guerra: “God bless America”.
O espelhamento será retomado no final, com a reza que
embala a guinada kamikaze do terrorista que pilota o
boeing se alternando com a reza dos passageiros que
já perderam qualquer esperança de sobreviver.
A opção de fazer o filme cair junto com o avião tem
até sentido: naquele momento, ele já estava abandonado
à própria sorte. Mas o sumiço dos outros pontos da narrativa
provoca algumas suspeitas. É estranho, por exemplo,
que o filme embarque no blackout total da imagem
do Pentágono atingido, a imagem nunca vista, negada
à documentação do episódio porque sua parcela simbólica,
ao contrário dos muitos usos estratégicos que as imagens
das torres gêmeas permitiram, seria apenas derrotante.
Diante desse “esquecimento”, a própria imagem do WTC
mostrada pela enésima vez, embora sua recontextualização
seja interessante, passa a estar ali para reiterar a
função já anteriormente constituída no imaginário do
11 de setembro. De uma hora para outra, não se fala
mais no Pentágono – só num telefonema de um personagem
do avião a um parente, no qual a mensagem parece atravessada,
imprecisa, conflitante com a história que outros tinham
recebido sobre o WTC. Essa fragilidade de ponto de vista
apenas se acentua com as cartelas que o filme termina
exibindo, nas quais se insinua que certos setores estratégicos
do governo e das forças aéreas norte-americanas demoraram
a agir, ou agiram mal diante da situação. Ora, muito
se pode dizer sobre os motivos que levaram ao 11 de
setembro, mas, francamente, cobrar eficiência ou sugerir
atestados de incompetência – seja lá de quem ou a quem
for – em relação aos eventos que ocorreram naquelas
horas é um pouco demais. Se o restante do filme dava
uma idéia de que ninguém, nem a mais poderosa nação
do mundo, podia estar preparado para aquilo, por que
essa guinada singelamente acusatória no final? Ou o
significado político do filme passaria justamente por
isso, a queda do império do pragmatismo teria seu motor
no absurdo, e sugerir culpados seria apenas uma parcela
de ironia? De uma forma ou de outra, Vôo United 93
está muito longe de ter uma perspectiva realmente
corajosa ou importante sobre o cataclismo inaugural
do século XXI.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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