Diamante
de Sangue é um filme de ação com pano de fundo político.
O romance inconcluso entre o mercenário (DiCaprio) e
a jornalista engajada (Jennifer Connelly) é só para
o filme não passar sem esse ingrediente. Ação e política:
façamos de conta que o filme se dedica somente a isso.
É preciso dizer então, de início, que nem uma nem outra
coisa se desenvolve bem, ou seja, nem a ação nem a política
aparecem no filme com alguma força. O impacto buscado
na parcela aventuresca do filme é tão risível quanto
as mensagens humanistas (aquelas mesmas de sempre, sem
tirar nem pôr). Mas sejamos insistentes, falemos de
Diamante de Sangue, pois há basicamente duas
coisas a destacar:
1) As cenas de ação se inscrevem naquele novo código
de realismo – da câmera tremida, da montagem estilhaçada,
do grão fotográfico, do uso histérico do dolby – que
busca a intensidade da cena em efeitos de desorientação,
e que deve atingir um público que já não se deixa levar
pela imagem bem composta, pela cena que consegue se
organizar plástica e dramaticamente mesmo que em meio
a uma guerra. O público precisa fingir que está assistindo
à reportagem daquele evento, portanto sem muita escolha
de ângulos, sem pensamento por trás da imagem, apenas
um registro emergencial, feito do jeito que deu. Para
trabalhar nesse nível de instabilidade, é preciso, ao
contrário do que se pensa, ser um grande artista da
montagem (logo, do plano). Zwick, no caso, filma um
ou outro plano com ambições até maneiristas (a explosão
ao fundo, por exemplo, após um rodopio de câmera que
reenquadra Di Caprio e Djimon Hounsou no final de um
plano-seqüência), mas freqüentemente entrega as cenas
de ação como se elas fossem as sobras do material filmado,
os “takes ruins”. A montagem passa a funcionar como
uma peneira ao avesso: os diamantes se vão, ficam as
impurezas. Vemos correria, faíscas, riscos, vultos.
Não vemos nada. Apenas planos nos quais tudo que a câmera
conseguiu captar foi uma nuvem de poeira, ou um pedaço
disforme do mundo, ou uma ínfima fração do movimento
desesperado de um corpo. Se isso provoca maior imersão?
Repito minha resposta dos últimos cinco anos: definitivamente
não. Nenhuma explosão da duração, nenhum desarranjo
vertoviano vem socorrer esses planos de Zwick. Talvez
ele ache que sua técnica permite imersão porque o olhar
se torna mais subjetivo (seria o suposto desnorteamento
de quem está na ação), mais acelerado e mais
inflamado. Para alguns diretores – inadequados, indispostos
ou incompetentes que são para filmar cenas de aventura
–, isso representa o atalho, a tangente fácil. São diretores
que perceberam que ninguém precisa mais de imagem:
basta ferver uma história através de estímulos audiovisuais.
Do outro lado, o que isso representa é apenas uma reformulação
do código do gênero (volta e meia ocorre uma), que agora
pede mais sujeira e mais exorbitância na violência e
nos seus rituais e gestuais. Afinal, o que resta ao
cinema de ação, no que diz respeito à violência, depois
dos vídeos de tortura, dos soldados posando junto aos
corpos de iraquianos, das cabeças de oficiais americanos
sendo cortadas por terroristas, de todas essas imagens
que chegam facilmente até nós e que dispensam filtros
(morais, estéticos ou quaisquer que sejam)? Houve um
tempo em que a violência precisava ser encenada: fosse
ela sublinhada ou mascarada na decupagem, o que estava
em jogo era uma forma de representá-la. Hoje
as imagens podem chegar “sem decupagem”, imagens precárias,
oscilantes. O mundo já autorizou uma forma de mostrar
a violência que prescinde de pensamento. É assim que
a agressividade irracional dos guerrilheiros da frente
revolucionária ecoa na mise en scène de Zwick.
Não importa se Diamante de Sangue é uma superprodução
e se suas intenções se vendem como boas: Zwick, como
outros hoje em dia, herda a estética do choque e da
ignomínia dos vídeos de tortura que os telejornais ou
a internet exibem editados ou na íntegra.
2) Pois bem, política. Em alguns filmes brasileiros
que se passam na favela ou na periferia, existe aquela
tendência, cada vez mais desprezível, à estética ONG.
Entre o voyeurismo macabro e o compromisso social, o
espectador de classe média – culpado por natureza –
sai do cinema com a sensação de que tomou consciência
da sociedade em que vive, pois conheceu melhor uma parte
excluída-porém-estruturante (mesmo que esse espectador,
no fundo, só admita sua participação no todo social
de forma muita rasa e relativa). Em Diamante de Sangue
a sigla muda em uma letra, e já estamos no terreno da
estética ONU. A dramaturgia mobiliza todo tipo de arquétipo,
e o flagelo africano é emprestado à construção de um
grande parque temático sobre a violência no terceiro
mundo – aquela culpa da classe média não afeta tanto
o cinema hollywoodiano. Para reconquistar esse espaço
de ficções antigas, como a busca de um tesouro escondido
em terras exóticas, Zwick precisa negociar com novos
conteúdos. Diamante de Sangue acomoda esse conhecido
espetáculo de caça ao tesouro nas novas implicações
político-corporativas que o acompanham e na embalagem
humanista mais cafona possível, com direito a didatismo,
denúncia, sacrifico do herói pelo bem alheio (o mercenário
prova que tem alma). Uma matéria ficcional reciclada,
portanto, que procede menos da criatividade e do talento
de um realizador do que do inconsciente coletivo de
Hollywood, desposa uma narrativa com ambições políticas
e humanistas.
O filme tenta dar a volta por cima da exploitation
simplesmente ao tematizá-la, ou seja, ao demonstrar
sua atitude consciente, o que não passa de uma artimanha
retórica (embutir o comentário auto-crítico). O povo
africano, para esse cinema de tão boas intenções, é
nada mais que aquela fila de gente implorando abrigo
às nações unidas. Ou aqueles guerrilheiros de cicatriz
no rosto que ouvem hip-hop – logo o hip-hop, cujos cantores
adoram ostentar adornos de ouro e de... diamantes. Os
africanos são também os bons selvagens que posam para
foto ao lado de Jennifer Connelly. São os vultos que
atravessam na frente da câmera, nas ruelas de Serra
Leoa, em meio ao fogo cruzado, aqueles vultos que correm,
morrem e escorrem para fora do filme. A estratégia aqui
se inverte: o que a peneira retém não são mais os extras,
as “sobras”, mas os diamantes do star system.
O resto serve de informação, serve para complementar
uma rede de signos.
A África dos anos 80, da década do “we are the world”
e do Rambo (que é citado no início de Diamante de
Sangue, apesar de nunca ter pisado solos africanos
– mas no cinema americano o outro deve ser apenas o
outro, não faz tanta diferença), é trocada pela África
do “T.I.A”., do “this is Africa”, bordão do filme de
Zwick. Os princípios humanitaristas são os mesmos, mas
a mudança de lema é significativa. Se a África é sempre
a África, e se isso – ao que o filme “delicadamente”
insinua – é anterior a qualquer interferência branca
no continente, por que lutar por ela? Por que impedir
que ela seja carcomida por fome, doença, exploração
pós-colonialista, ou que se autofagocite em guerras
civis? Desde quando se tenta salvar a vida de quem já
é cadáver? “This is Africa” significa “esqueçam a África”.
As crianças africanas não são mais o mundo. O filme
começa e, por mais que engendre um discurso engana-trouxa,
termina ainda na descrença de que haja vida no
continente da aids, da guerra civil e da fome – como
Kiarostami, em ABC África, nos mostrou que há.
Em Diamante de Sangue há apenas o vestígio de
uma civilização fazendo pano de fundo a um gênero de
cinema que, ironicamente, também luta por sua permanência
no mundo. E nem adianta aquele final com o pescador
reencontrando sua família e depois sendo aplaudido no
tribunal. É ridículo demais dizer que um povo está irreversivelmente
perdido e depois lhe conceder 15 segundos de fama...
Quanto ao papel reservado ao herói sacrificado (DiCaprio),
o da lenda, é claro, impressa em preto e branco na página
de uma revista.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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