“Como transformar
o espaço? Como vencer o peso? Como alcançar esse estado
de equilíbrio que muda o peso em impulso e faz fluir
o movimento?” (José Gil, Movimento
Total).
A revolução cultural dos anos 60 que se estende pelos
anos 70 certamente remexeu a cultura norte-americana,
permitindo a formação de uma forte contra-cultura, que
abrange visões políticas, sociais e estéticas radicais.
Essa ebulição cultural, artística, esses rompimentos
de noções, não pararam por aí e não é verdade que os
anos 80 são um limbo cultural nem é verdade que os anos
80 e 90 são esteticamente alienados. Hoje ainda há quem
repita que o cinema morreu, que os grandes mestres estavam
na década de 50, 60 e 70. Nós sempre batemos o pé e
nos esforçamos para não só falar o contrário, mas mostrar o contrário chamando atenção para
uma vasta cinematografia atual – em todos os lugares
– que se destaca em suas propostas, conceitos, sensibilidades
e realizações.
O ano de 2007 no Rio (Festival) e em São Paulo (Mostra)
foi uma amostra especial de como se têm feito ótimos
filmes. Mas o interessante é que não são apenas filmes
que cumprem seus papéis, mas propostas criativas e realizações
geniais, muito próprias. Tivemos filmes de todo o mundo
(Floresta dos Lamentos, Síndromes
e um Século, Mulher
na Praia, Uma Moça Dividida em Dois...), mas também
muitos americanos (Paranoid
Park, Império
dos Sonhos, Planeta Terror, À Prova de Morte, Go Go Tales),
que se destacaram e mostraram em suas propostas uma
preocupação sobre a relação corpo/espaço ou corpo/ator
das formas mais diversas, seja conceitualmente, narrativamente,
ou em sua forma de filmar.
Sobre essa relação dos filmes com os corpos ou com a
idéia de corpo e suas potências naturais ou mutantes,
ou mesmo a relação da mente sobre o físico, são dois
cineastas americanos, e que sempre realizaram trabalhos
absolutamente diferentes, que se mostram importantes,
sendo sempre comentados: Cassavetes e Cronenberg. No
momento em que eles surgem (o primeiro uma década antes
do segundo), fortes transformações culturais e sociais
estão em ebulição e o corpo passa a ser observado, estudado,
sentido e registrado de formas diferentes. No cinema,
a importância do corpo é manifestada em sua relação
com a vida – brotamento de vida, fluxos de energias
e corpos (Cassavetes) –, e com a morte/transformação
– sofrimento do corpo, provações e experiências extremas
pelas quais o corpo passa ou é submetido (Cronenberg).
Coincidentemente ou não, ambos os cineastas atuaram
de forma bastante relevante durante os anos 70 e 80,
período que tantos menosprezam em termos cinematográficos
ou mesmo artísticos. (Shadows, de Cassavetes, data de 1959, mas
o retorno ao seu trabalho de experimentação se dá apenas
10 anos depois, com Faces,
prosseguindo até 1986).
Como teria essa liberação comportamental, essa revolução
na noção do corpo que existiu nos anos 60 e 70 influenciado
o cinema norte-americano? Tal influência se mostra muito
clara em relação à dança, por exemplo, que passou a
dar mostras de abstração – questionamento de noções
aristotélicas, vontades de liberdade – desde o pós-guerra;
segundo o filósofo português José Gil, em seu livro
Movimento Total, a partir do fim dos anos
40, com Merce Cunningham. A dança não passou por uma
crise do realismo no início do século XX, como passou
a pintura com a chegada da fotografia, por exemplo,
mas passou por uma grande transformação a partir de
meados do século XX, e com essa transformação as noções
de movimento e corpo na dança foram bastante questionadas
e reconfiguradas, sempre em função da busca por uma
libertação. E foi crescente a radicalização dessas noções,
principalmente a partir do surgimento da performance,
que repensou também as idéias de espaço e de tempo na
dança.
Há algum detalhe, que talvez seja mesmo a liberdade,
ou outra coisa que eu não ache a palavra, que une a
performance, a idéia do happening, do acaso, a livre associação (muito da dança e do teatro
de vanguarda norte-americanos) John Cage e o cinema
de Cassavetes. Tais associações evocam também outro
nome, desta vez nas artes plásticas: o de Nam June Paik,
a partir de sua relação tanto com a música de Cage quanto
com certa noção de “fluxo” nas imagens que trabalhava.
Há algo em todas essas estéticas que as aproxima e talvez
não seja tão absurdo relacionar o cinema de Cassavetes
à estética do fluxo que surge nos anos 90. Se hoje tal
estética vem se tornando cartilha para novos filmes
de arte, mostrando-se prejudicial para a vontade de
cinema e para a inventividade da realização cinematográfica
(como indica Luiz Carlos Jr. em um artigo
e uma conversa
nesta edição) é porque prender-se a formas fluidas deve
ser ainda mais limitador que se prender a formas rígidas.
Deveria tratar-se de transgredir certos paradigmas de
encenação, de um real simplificado e ordenado para confluir
junto aos corpos que habitam os espaços e captar seu
vigor, e não de buscar pela encenação do fluxo.
***
“A dança é de início obra de seres que andam e pesam
sobre um solo”. E há um certo cinema que também trata
disso. Uma dança de corpos que estão no mundo, em que
as movimentações e os tempos são oscilantes, que trata
de fluidos, ondas e calor. Algo como “tirar o peso do
corpo conservando ao mesmo tempo a sua ligação à terra”.
Algo que os cineastas atingem talvez trabalhando incessantemente
os corpos dos atores, suas relações com o espaço e com
a câmera. Não se trata exatamente do corpo carnal, de
“flesh”, mas talvez mais de superfície, de peles e poros
que sentem sol e brisa.
O peso
ao qual Gil se refere, do qual a dança “liberta” o corpo,
é algo que tem mais relação com o físico e as passividades
e reações involuntárias do corpo, como em Cronenberg,
em que o mundo age sobre os corpos por uma força centrípeta,
uma gravidade, em que as variações densas do mundo sob
o qual o corpo existe são cruéis, deformadoras, desafiadoras.
Grindhouse, filme lançado em 2007, no qual há um episódio de
Tarantino e outro de Robert Rodriguez, À
Prova de Morte e Planeta Terror, respectivamente, é um projeto
que se pauta pela realização de um filme exploitation
e o outro gore, encarando de frente as representações
de tais universos. Os elementos de ambos os filmes são
ícones pertencentes a imaginários, mas a aproximação
dos universos não permite o tom de referência ou apropriação.
O corpo-gore dos zumbis de Planeta
Terror em suas mortes ou corpos normais se desenvolvendo
em monstruosos, pedaços dos corpos que explodem na tela
ou mesmo a reconfiguração de um corpo amputado e complementado
com um objeto, lembram a relação que o cinema de Cronenberg
estabelece com o corpo físico. Bem como em À
Prova de Morte, em que o personagem de Kurt Russell
se aproxima em sua patologia dos personagens de Crash
do Cronenberg, claro que com outro tom e outro tipo
de representação ou mesmo noção de personagem. Não são
os registros que aproximam os cineastas, mas um pouco
da relação estética que seus filmes travam com o corpo
(pesado e que mais recebe interferências de forças e
agentes externos). No filme de Tarantino, um dos principais
temas dentro da narrativa e da diegese é o dublê e,
conceitualmente, ícones de um cinema de exploitation.
Tarantino passa uma questão de alteridade do corpo num
grau bem multiplicado e distanciado, porque o dublê
encena ser alguém que já representa outro alguém (o
ator), além de que os ícones, os clichês, sempre vão
ser modelos, referências, imaginários, nunca algo próprio,
algo que é ele mesmo em sua essência, um corpo/espírito.
***
José Gil escreve sobre como a dança modifica o corpo,
que normalmente pesa sobre a terra e recebe interferência
das forças do mundo. A dança se utiliza justamente do
peso para gerar o impulso que fará o corpo leve e fluido
mover-se num espaço onde o corpo passa a ser não mais
uma unidade, mas um elo entre os corpos, entre os espaços
e os movimentos, de modo a se criarem corpos virtuais,
extensões do corpo físico. O cinema de fluxo lida com
uma conexão com a natureza, com uma noção de fluxo e
variação de energias, de forças, de vibrações e isso
tem a ver com o modo como os corpos visíveis ou invisíveis
da natureza são estimulados, como eles sofrem interferência
do meio. No cinema de Cassavetes, como no cinema do
fluxo, o mundo age como corrente e impulso sobre o corpo
e uma harmonia entre ambos é vislumbrada mais facilmente.
A força do mundo sobre os corpos é centrífuga.
Naomi Kawase, em seu último filme, Floresta
dos Lamentos, sabe filmar com fina sensibilidade
esses corpos nesses espaços e suas trocas de energia
vital. O risco de cair na armadilha da comodidade de
proposta e da auto-ultraestetização é igual ao risco
que permite momentos tão sinceros quanto intensos, como
os corpos de ambos os personagens deste filme praticamente
despidos de roupas e abraçados perante uma fogueira,
sem conotações sexuais ou sensuais. A energia da natureza
é necessária, mas não suficiente. É preciso também receber
– trocar – a energia (calor) gerada pelos corpos humanos
para aquecer o corpo, para que se permaneça vivo.
Um tipo diferente, mas não oposto, de relação estabelecida
entre corpo (ator/personagem), espaço e câmera se dá
de forma genial no último trabalho de Hong Sang-soo,
Mulher na Praia,
no qual os planos de conjunto ou médios dão conta daqueles
acontecimentos e momentos na vida dos personagens e,
assim, vê-se a tal harmonia, facilidade, mesmo em momentos
de conflitos dos personagens. O prosaico não é banalizado
nem destacado, para estetizar acontecimentos ou ações
simples, possíveis, normais. Os personagens são dotados
de uma vida que não se esconde nem se escancara no sentido
de transbordar ou culminar em epifanias ou catarses
– como acontece por vezes em Kawase. Em Hong existe
uma simplicidade sincera em enquadrar uma situação ou
contá-la que pouco se vê ou se viu no cinema. Talvez
isto o aproxime a alguns momentos do cinema de Apichatpong
Weerasethakul, como se viu em Síndromes
e um Século, pela simplicidade ao filmar os corpos
nos espaços, uma simplicidade que está longe dum olhar
pobrezinho, covarde ou isento de ousadia e inventividade.
O cinema de ambos é leve; é também bem humorado. Apichatpong
trabalha com situações prosaicas, mas é dotado de algum
mistério no contar histórias, porque se liga aos mitos
do seu país, a um gosto pelas fábulas que se misturam
às vidas das pessoas no seu dia a dia. E os corpos/
personagens também são próximos à natureza, de forma
que ambos se fundem, como em Mal dos Trópicos, em que o personagem, além de usar roupa camuflada
na floresta, cobre seu corpo de lama e folhas, ou como
em Síndromes e um Século, em que a mulher ao observar a paisagem através
da vidraça (filmada pelo lado de fora) tem o reflexo
da paisagem no vidro sobreposto a seu rosto, quase como
uma tatuagem translúcida.
Gus Van Sant, em seus dois filmes anteriores a Paranoid Park, conseguiu criar mundos onde filmou jovens em suas relações
ou impossibilidades de interações com seus próprios
mundos e espaços, ou mesmo a impossibilidade de sustentar
sua própria existência, como em Last Days. Em Elefante, a câmera desliza junto aos corpos dos jovens, sem interferir
ou interagir escancaradamente. Em Last Days, ela registra um espaço decadente e descuidado, mas real,
enquanto um corpo que o habita(va) vai se tornando virtual,
gasoso, um fantasma. E mesmo assim não deixamos de sentir
seu peso, pois se trata da latência da desmaterialização.
Paranoid Park
complementa os outros dois filmes de forma perfeita
e soma a esse corpo jovem a consciência e a imaginação
que o atordoam. Além do personagem específico, Van Sant
trabalha com corpos que não são exatamente personagens,
são como “anjos caídos” (como Luiz Carlos Jr. aponta
em sua crítica)
que, nas imagens, não são nada além de sua relação com
um objeto e um espaço (o skate, as ruas e o local que
dá nome ao filme) – nota para as belíssimas cenas em
câmera lenta de garotos andando de skate (flutuando).
O talento de filmar corpos desta forma, em consonância
com algo que o cerca (e não se trata de comodidade ou
falta de enfrentamento perante o mundo – Varda filmava,
de certa forma, um fluxo, sem abrir mão do ser errante
e da inquietude, da inconformidade) requer frontalidade
em seu fazer, a respeito de sua matéria. Coreografar
o olho, a lente, os corpos, os objetos e os espaços
e, uma vez coreografadas e permitidas as existências,
captá-las, é reconhecer a importância de um corpo em
cena.
Luisa Marques
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