CONVERSA COM SERGE BOZON

Um dos pontos altos de Rotterdam foi uma conversa/entrevista com Serge Bozon, um breve encontro que, sozinho, já teria validado minha passagem pelo festival. Conversamos sobre A França (que ele tinha acabado de debater após uma sessão no Pathé, um dos principais cinemas que abrigam o festival), sobre os rumos do cinema, sobre o fora-de-campo, sobre Rivette... Vou tentar relatar aqui o principal da conversa (falha minha: não tinha gravador, foi tudo na base do caderninho).

Walsh, sobriedade, cenas noturnas

Começo falando que seu último filme, A França, me faz lembrar muito mais de clássicos de guerra como Objective, Burma! (Raoul Walsh), A Walk in the Sun (Lewis Milestone) e Fixed Bayonetes (Samuel Fuller) do que de qualquer coisa feita hoje, e, no entanto não é um filme vintage. É um filme que tem uma relação dinâmica com a história e a memória do cinema, mas que, para muitos, deve parecer “fora de moda”. Serge Bozon explica que Walsh é um ponto de partida (A França tem muitas noites, pessoas “neutras”, atores que não fazem a ação acontecer senão discretamente), mas ao longo do filme vai ficando muito longe como ponto de chegada.

Ao evocar esse cinema dos anos 40, 50, desde Walsh até filmes russos de guerra de diretores como Boris Barnet e Yuli Raizman, Bozon traz uma referência que não só está distante (quiçá ausente) da bagagem cinéfila da maioria dos espectadores, como ainda não faz parte da economia oficial do cinema de arte. Isso pode explicar parcialmente alguns equívocos de apreciação. Muitas pessoas tomam, erroneamente, a dramaturgia de Mods e A França por bressoniana. É aquela história: ninguém pode ver uma fisionomia neutra que já fala de Bresson (este sim um autor preservado pela memória estandardizada do cinema de arte). Não é de hoje que as pessoas desavisadas confundem sobriedade com Bresson. “Mas em Walsh há rostos sóbrios também”, Bozon nos lembra.

Para as cenas noturnas, que abundam em A França, mais um anacronismo: ele optou por um filme da Kodak que hoje praticamente só se usa para fazer transfer. A opção se deve ao fato de que ele queria mostrar as coisas, permitir que o olhar alcance todo o campo (aquele magnífico dégradé noturno que vemos no filme). A iluminação noturna que está em voga, contrariamente, costuma esconder mais do que mostrar.       

O gosto pelo romanesco

Uma recorrência na fala de Serge é a influência um tanto paralisante exercida por Antonioni e pelo cinema asiático numa grande parcela do cinema contemporâneo: filmes sem humor, sem vitalidade, sexualidade um pouco desertificada, olhar pretensamente distanciado, uniformização da narrativa. Essa crítica dele rima com minha suspeita de que podemos observar hoje, sobretudo nos festivais, um cinema de jovens diretores em que a admiração por grandes nomes do cinema contemporâneo torna o minimalismo uma regra, acompanhada de uma constante fuga da dramaturgia e da significação.

“Muitos diretores tentam desprezar a ficção”. Ele não: o retorno do marido em A França é um tour de force, reiterado pela mitologia do nunca chegar, uma tensão clássica. “Antonioni foi um grande cineasta, Two-Lane Blacktop foi um grande filme, mas ambos deixaram um péssimo legado. Tenho a impressão de que o cinema moderno fez tabula rasa. Parece que há pouca margem para variação. O cinema clássico tem mais margem, é mais liberador, porque não é subtracionista”, diz Serge. Em A França, da mesma forma que a fotografia segue um recorte de luz que foge das facilidades modernas, Serge afirma ter dado vazão a um gosto pelo romanesco, pela confrontação dramática, pela intencionalidade das ações, pela tragédia assumida, pelo encontro amoroso que só acontece no final.

O fora-de-campo é um campo de batalha

Em A França, há uma história de amor e uma história de guerra, e o filme promove o cruzamento das duas. A guerra se dá no horizonte, mas a tensão vai se montando e subitamente a guerra e a violência surgem e é como o encontro de dois campos.

Serge Bozon faz duas confissões interessantes: 1) se arrepende de algumas elipses de A França; 2) se tivesse mais dinheiro, teria rodado mais cenas de ação. Mas afirmo para ele que a batalha estar no fora-de-campo é crucial para o filme. Primeiro porque tudo começa no ponto de vista de Camille, cujo marido está no front. A guerra para ela, a princípio, é forçosamente o campo cego, o que acontece alhures (mas a afeta diretamente). Segundo porque, após decidir ir atrás do marido, Camille se junta a um grupo de desertores, ou seja, pessoas que querem se ausentar da guerra. Faz todo sentido, portanto, que a guerra aconteça no fora-de-campo. E o encontro de dois campos, como Serge confirma, é o mote todo do filme. “A guerra se intrometeu entre nós”, diz Camille num determinado momento.

Um dos traços distintivos de Bozon está justamente nesse elemento, o fora-de-campo, que durante muito tempo foi campo de batalha teórico e estético (ver O Campo Cego, coletânea de artigos de Pascal Bonitzer). Peguemos como parâmetro de comparação o oposto extremo: em cineastas como Hou Hsiao-hsien e Claire Denis, o fora-de-campo é uma reserva virtual do campo, uma energia potencial que a câmera pode ou não ativar no intuito de trazer mais vida e movimento ao filme. São cineastas da matéria, ou seja, eles mantêm uma relação provisória com o enquadramento, este sendo menos um recorte preciso do que uma sensação momentânea do espaço. Bozon, diferentemente, é um cineasta do quadro, ou seja, da enunciação de um conteúdo já latente nos atores e nos cenários, mas que só se completa com a decisão sobre o plano, sobre o foco, sobre o que mostrar e o que preservar no fora-de-campo. Em A França, o fora-de-campo é uma reserva de significado, de drama, de alteridade. Num dos momentos mais impressionantes do filme, a morte sai da elipse e do fora-de-campo e emerge aos olhares de todos: os soldados abandonam o quadro, mas o plano vazio persiste; no rio, ao fundo, o corpo de um soldado morto aparece boiando.   

Rivette, potência cênica, confronto

“Qual cinema mais recente você admira?”, pergunto. “No cinema francês, Vecchiali, Biette, Arrieta”. E Rivette? “Já gostei mais, quando tinha uns dezoito anos. Mas continuo admirando a aceleração da montagem e a potência cênica em Rivette e também em Preminger.”

Não Toque no Machado tem lá suas vias de comparação com A França. Mas Bozon faz ressalvas ao filme de Rivette, preferindo o romance que lhe deu origem: “No romance de Balzac, a burguesa e o marechal não se ligam, é um furor carnal que interiormente dita decisões impossíveis. Rivette tem uma falsa idéia modernista, ele olha todas as outras coisas que envolvem o social, mas os personagens são pessoas doentes, românticas. Jeanne Balibar está muito metamórfica, flutuante. Guillaume Depardieu está muito marmóreo. Em A França ele está mais novo, mais jovem. E como na guerra há o confronto, prefiro pessoas que vão atrás do que desejam”.

Milagre

O encontro de Camille com o marido François (Guillaume Depardieu) no final de A França é quase como um milagre. Mas não é um happy end. “Ele está perdido, destruído. Mesmo quando faz amor, parece doente. Algo se passa de Camille a François, algo da tropa; não são somente os dois fazendo amor, há o horizonte de desaparição da tropa. Quando Camille deserta os homens e volta para casa com seu marido, eles ficam mais perdidos que nunca.” A cartela final, que informa que eles nunca chegaram à Holanda, não estava programada. Mas quando Bozon viu aquele plano deles indo embora, cabisbaixos, após Camille encontrar François, decidiu pôr a frase que reforça o destino deles. Peso do destino, peso da ficção.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
(A entrevista aconteceu em 28/1/2008)


 






Objective, Burma!, de Raoul Walsh


A França, de Serge Bozon


Não Toque no Machado, de Jacques Rivette