O International Film Festival
Rotterdam possui uma mega-programação.
Filmes obscuros, filmes de medalhões, vídeo-instalações
(Tsai Ming-liang, Wang Bing, um coletivo coordenado
por Apichatpong), retrospectivas muito bem sacadas (Robert
Breer, por exemplo), ciclos de conferências sobre
mercado e produção, tudo acontecendo ao
mesmo tempo. Mas a maior reputação do
festival diz respeito ao foco especial concedido a novos
diretores e novas tendências. A seleção
da competitiva de Rotterdam tem uma premissa que a distingue
dos outros grandes festivais: os filmes que competem
são de diretores que estão no máximo
em seu segundo longa-metragem. Isso permite um grau
de prospecção de talentos e de rumos diferente
de Cannes, Berlim ou Veneza (cujas competitivas, salvo
surpresas, já caíram no esquema grandes
autores).
No conjunto de filmes que competiam este ano em Rotterdam,
uma tendência me chamou a atenção
acima das outras: em maior ou menor grau, ficou a suspeita
de que há uma geração de jovens
cineastas, na Ásia, na Europa, na América
do Sul ou alhures, que segue uma nova cartilha. No nosso
último Cinema Falado, e também no texto
que escrevi para o Daily Tiger (o jornal oficial do
festival de Rotterdam, que é publicado diariamente
e circula por todos os lugares onde o festival acontece),
eu já falava algo diretamente relacionado à
questão, ao apontar um novo gênero do cinema
brasileiro: filmes que, seguindo os passos de O Céu
de Suely, Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade
Baixa, parecem ter encontrado uma fórmula
de sutileza que agrada as platéias dos festivais
internacionais (Mutum e Casa de Alice
foram os melhores exemplos em 2007). Essa fórmula
não está muito distante dos filmes que
compõem a nova onda do cinema malásio,
dois deles vencedores das últimas edições
do festival de Rotterdam, Love Conquers All (Tan
Chui Mui), que ganhou em 2007, e Flower in the Pocket
(Liew Seng Tat), um dos três vencedores este ano.
O filme de Liew Seng Tat é simpático,
nada mais. Por um lado, o espírito de faça-você-mesmo
(baixíssimo orçamento, câmera digital,
desenho de produção muito bem pensado
para os meios disponíveis) afasta Flower in
the Pocket do cinema brasileiro (aqui, baixo orçamento
é um milhão e meio). Por outro, a estética
do filme em muitos quesitos o aproxima desse cinema
brasileiro pré-formatado para o olhar sensível
dos programadores de grandes festivais. Na Malásia
ou no Brasil, os cineastas aprendem a linguagem do “world
cinema”.
Para os jovens diretores que se deslumbram com os novos
rumos do cinema, o risco de um neo-academicismo é
tão maior quanto menos ele se apresenta como
tal, já que a coisa é mais fluida, mais
leve do que um esquema normativo. Acontece que os cineastas
que seriam os mestres desse cinema (Antonioni lá
atrás, Hou Hsiao-hsien, Claire Denis, Apichatpong
Weerasethakul, Naomi Kawase, Tsai Ming-liang, Jia Zhang-ke
e alguns outros aqui na frente) simplesmente não
são mestres, nada têm a ensinar. São
cineastas de estilo inimitável, pois não
lançam mão de uma gramática ou
de um sistema formal, e sim constroem suas próprias
formas, no entrecruzamento dos projetos (mentais) de
cada um e da sensibilidade particular ao presente, intensificada
no ato do registro.
Tratado hoje como pop star nos grandes festivais europeus,
Hou Hsiao-hsien é o que mais se aproxima de uma
figura de "mestre" (até pela espessura
de sua obra, de quase trinta anos). Mas quando sua fluida
movimentação de câmera e sua complexa
relação com o espaço cênico
se tornam passíveis de um "aprendizado",
é no mínimo de se estranhar. Ou de se
achar natural que isso aconteça: as nouvelles
vagues asiáticas dos anos 80/90 agora finalmente
fazem escola, tendo Hou como representante mor, o modelo
para um cinema do futuro (não foi assim que Juliette
Binoche o definiu?).
Peguemos o exemplo mais sintomático na competitiva
de Rotterdam: Shanghai Trance, de David Verbeek,
uma espécie de filme-karaokê onde o jovem
diretor holandês está colocando sua voz
sobre o fundo musical de Hou Hsiao-hsien. Às
vezes parece que o filme está sendo feito usando
Millenium Mambo e a terceira parte de Three
Times como back-projection. Verbeek mostra
um mosaico de relações humanas se degradando
na Xangai de hoje, com seus prédios high-tech,
seus centros empresariais e, é claro, suas boates
multicoloridas, estroboscópicas. Sob esse céu
quase artificial, os personagens se tornam mais e mais
fracassados nas relações pessoais. Embora
o trabalho de composição das imagens e
das ambiências esteja tentando alcançar
Millenium Mambo, o filme todo é alimentado
por uma cadeia moral que o mantém a milhas de
distância do olhar confuciano (observar e não
julgar, ver e não intervir) de Hou Hsiao-hsien.
Verbeek bizarramente consegue misturar a atmosfera de
Hou ao moralismo decadentista e à lógica
de destino coletivo de Babel e 21 Gramas.
Apesar da estrutura em filme-painel, Shanghai Trance
tenta se filiar a um modelo de narrativa minimalista
com diálogos esparsos. Quando um diálogo
acontece, entretanto, percebemos que no fundo o diretor
gostaria de contar uma história bem clichê
e convencional. Mas optou pelo plano-seqüência
que aguarda pacientemente, sem se antecipar aos acontecimentos,
supostamente respeitando a ambigüidade do real,
à espera do êxtase que vem da falsa sensação
de que nada acontece (quase uma contradição
de princípios, essa idéia de um êxtase
destinado a reencontrar a banalidade do cotidiano).
Outro filme sintomático no VPRO Tiger Awards
Competition, e não por acaso um dos três
premiados (os outros dois foram o já citado Flower
in the Pocket e o inexplicável Go With
Peace, Jamil, filme sobre redenção
na chave mais simplista, com tiques de gangsta movie
extremamente mal resolvidos), foi Wonderful Town,
do tailandês Aditya Assarat. Na sessão
em que vi o filme, Gertjan Zuilhof, um dos programadores
do festival, foi quem conduziu o debate com o diretor.
Esse, aliás, é mais um dos aspectos bacanas
de Rotterdam: se o diretor está no festival,
seu filme é debatido após a sessão.
Gertjan comentou, muito apropriadamente, a estrutura
de western que perpassa Wonderful Town:
um filme de paisagens magnificentes, ambientado num
horizonte histórico-geográfico, com um
forasteiro sendo perseguido pelos locais. Mas em vez
de um território pré-civilização,
Aditya Assarat mostra um universo pós-cataclismo,
na cidade tailandesa que mais foi arrasada pelo Tsunami.
Pelo cenário apocalíptico dividido entre
faroeste, cinema-catástrofe e road movie,
e pela cena central em que o carro do protagonista é
perseguido por motoqueiros, o filme também me
lembrou Mad Max. Na maior parte do tempo, contudo,
as cenas são apenas blocos de sensações,
sem investimento maior no drama ou no flerte com gêneros,
que permanecem no subsolo.
O que capturou meu interesse no começo de Wonderful
Town foi o modo como o vento – personagem
de destaque – era tão doce, sereno, calmo,
agradável, logo naquele lugar assombrado pelas
reminiscências da destruição provocada
pelo Tsunami. Mas o middle point do filme é
bem nítido: um longo plano de ondas violentas
– seriam elas de fato violentas? ou é o
afloramento do drama de fundo, alimentado pelos interstícios
da narrativa, o que desperta esse sentimento? –
inicia o processo de queda. O trauma vem a primeiro
plano. O forasteiro é morto pelos locais. Como
se para curar um passado de destruição,
uma nova violência precisasse acontecer. Os habitantes
da cidade matam o forasteiro (ação esta
relegada a uma elipse) talvez porque precisem de alguém
para culpar, um bode expiatório (Aditya chegou
a sugeri-lo no debate), ou talvez por conta de seu passado
ambíguo – se o filme é realmente
um western, o personagem com o maior passado,
o mais denso, é quem termina por levar a culpa.
Após a cena da morte, ocorrem três ou quatro
planos à la Apichatpong (lentos travellings
apaziguadores, com drone music na trilha sonora,
absurdamente parecidos com alguns momentos de Síndromes
e um Século). O filme então se acalma,
e os habitantes locais podem finalmente voltar à
sua rotina (à paz?). O final é bastante
problemático: imagens tranqüilas, com uma
música delicada e otimista, um clima de volta
à vida propiciado pela morte do estrangeiro.
A crítica, a força política do
enredo pode até estar implícita nesse
intervalo, porém se perde na montagem, na passagem
da morte à vida, na dissolução
do peso, na recusa a tratar o conflito como verdadeiro
embate de alteridades (tudo se ingurgita no Mesmo).
Algo similar já ocorria em Help Me Eros,
do Lee Kang-sheng, conforme comentei no diário
da última Mostra de São Paulo: “Incomoda-me
em particular a cena em que Lee teria um encontro com
a mulher com quem conversa no MSN, mas esse encontro,
como era de se prever, não ocorre, se frustra.
É exatamente o beco sem saída desse cinema
sem confronto, sem campo-contracampo”.
Minha principal crítica a Wonderful Town
é justamente por ele casar de maneira muito fácil
a imanência do cotidiano à transformação
radical. Se a paisagem esconde o drama, basta um plano,
um travelling na direção do rosto
do protagonista enquanto ele fala ao telefone para que
todo o peso aflore: violência, morte, traição.
A passagem de um estado a outro é demasiado brusca
(ou demasiado fluida, não sei). Não há
progressão dramática, essa idéia
parece excluída ou jamais cogitada. A elipse
e a ambigüidade soam como regras, ao invés
de opções estéticas elaboradas.
A questão não parece ser negar o drama,
mas eclipsá-lo por, no fim das contas, não
ter nada a dizer. A elipse aparece como uma alternativa
“mais fácil”.
Checando nas matrizes, contudo, tal facilidade não
se confirma. Comecemos por Apichatpong Weerasethakul:
o que ele busca, por meio de uma fenomenologia sensualista,
é a linguagem nativa do tempo-espaço,
ou seja, aquilo que o mundo fala antes de nossa consciência
e nossa cultura tentarem decifrá-lo. Essa linguagem
nativa do mundo se forma pela depuração
de ontologemas: pedaços de vida transferidos
do tempo social a um outro tempo (mais livre, por assim
dizer). Apichatpong submete o cinema à matéria
rarefeita de uma "sensorialidade primeira".
Nos seus filmes, os planos se devem a uma operação
conceitual da qual são simultaneamente via de
acesso e resultado.
Nessa fusão de selvageria empírica e de
dispositivo com propriedades artísticas particulares,
restitui-se um paraíso perdido do visível.
Talvez esteja aí a resolução das
possíveis hesitações ontológicas:
da garantia de realidade mínima dos registros,
outrora fonte de encantamento estético e romântico
com a imagem cinematográfica, passamos à
múltipla intensificação das zonas
de opacidade do real. O grande vínculo da imagem
com o mundo não é mais o traço,
a pregnância na placa sensível. É
antes essa grandeza impalpável: a intensidade.
Anterior às noções de cena, de
dramaturgia ou de linguagem, a intensidade (elemento
não mensurável senão enigmaticamente,
ao mesmo tempo o primeiro e o último elo possível
entre a imagem e o que ela representa) é o ainda-não-instituído,
a imagem sem código aparente de imagem. O filme
desaparece por trás do presente eterno que ele
mesmo produziu. Após uma era de suspeita generalizada
com o real (colocado entre aspas durante as décadas
de 80 e 90), chega-se a um novo paradigma, no qual aceitar
– e mesmo explorar – a assignificância
do mundo equivale a respeitar a realidade primeira das
coisas. O verdadeiro plano-conceito é este: um
campo aberto onde o filme pode refletir sobre seu processo
e aguardar que seu rumo seja decidido – pelo cineasta
ou pelo ator, mas também pela chuva ou pelo vento.
À mise en scène se substitui a
constituição de um espaço-tempo
primordial. Trabalho menos de dramaturgia que de cosmologia
(Kawase faz um cinema do confronto e da catarse, mas
transfere o drama a um contato místico com a
natureza e o cosmo; Apichatpong faz de um campo-contracampo
um encontro, e às vezes uma comunhão,
de diferentes formas de vida).
Já em Hou Hsiao-hsien, a coisa é um pouco
diferente, a mise en scène combina a experiência
bruta da duração, da matéria-luz
e do movimento a um conteúdo dramático
bem marcado: em Le Voyage du Ballon Rouge,
ele integra o fluxo contínuo e inextricável
do cotidiano a uma composição cênica
condensada nos detalhes (cf. as cenas no apartamento
de Binoche).
Divagações minhas à parte, vendo
Shanghai Trance e Wonderful Town fico
com a impressão de que falta aos seus diretores
uma maior compreensão "filosófica"
dos cineastas que lhes servem de referência. O
que sobra da estética deles, quando pensada e
praticada em campo seguro, frio (e como são frios
esses filmes de Verbeek e Aditya), é uma linguagem
domesticada, inofensiva, acadêmica.
No universo da crítica (Contracampo inclusa,
claro), um perigo análogo reside na institucionalização
de um certo olhar voltado ao cinema contemporâneo.
Isso rende não apenas a falsa impressão
de que há um conjunto de cineastas com afinidades
estéticas que devem ser defendidos em detrimento
de outros, mas também a tendência a generalizar,
a colocar como farinha do mesmo saco uma série
de obras que, a rigor, revelam diferentes procedimentos.
Negligenciam-se as particularidades de cineastas e filmes
– o mesmo repertório crítico sendo
aplicado a um largo espectro de filmes = limitação
conceitual. É o mal de todo sistema de pensamento,
ele tende a capturar na mesma teia todo objeto que esteja
voando em trajetória indefinida. Nosso fascínio,
nosso afã, que até aqui motivou tantos
pensamentos importantes sobre o estado das coisas no
cinema atual, pode nos levar a incluir determinadas
obras em universos a que estilística e ontologicamente
não pertencem (não seria já o caso
de checarmos os lugares onde isso pode ter acontecido?).
No limite, esse aprisionamento conceitual criaria um
gênero chamado cinema contemporâneo (mas
como pode o contemporâneo virar gênero?
– também me pergunto).
Dos anos 90 para cá, o cinema tem vivido um período
de extraordinária reinvenção, unindo
a capacidade de escutar e observar o presente a atitudes
artísticas que variam desde uma simples (ainda
que original) sensibilidade plástica à
imagem e sua matéria (Hou, Denis, Ferrara, Tsai)
até estruturas rebuscadas (Kiarostami, Van Sant,
Jia Zhang-ke, Todd Haynes). O quadro que se segue, então,
não se distingue em muito daquele que veio na
esteira do cinema moderno: do lado da realização
de filmes, surgem os diretores que, tendo aprendido
mal a lição, tentam absorver as inovações
sob a forma de linguagem (a um passo da convenção);
do lado da crítica, surgem os legitimadores,
que às vezes abusam do instrumental teórico
formulado para esse novo cinema e o aplicam a obras
díspares.
Estamos, assim, diante da possibilidade tanto de uma
imprecisão crítica (pela tentativa de
dar nome a um conjunto de filmes por demais polimorfo)
quanto de um novo academicismo, anti-psicológico
e minimalista, que já foi “denunciado”
aqui e ali, mas de maneira tímida, pois o sucesso
da fórmula ainda é muito recente para
permitir que vozes discordantes encontrem eco. Ou talvez
seja pesado falar em neo-academicismo, talvez seja mais
um modismo do que um modelo estético que deixará
legado. Mas se é verdade que toda época
tem seu academicismo, o de hoje seria este que recusa
as técnicas clássicas de dramaturgia e
encenação (não raro tidas como
caricatas e anacrônicas pela platéia típica
dos festivais) e segue narrativas elípticas/flutuantes,
dramas mudos do cotidiano, relação afetiva
entre câmera e atores, não-julgamento das
situações e dos personagens, mais atenção
ao corpo do que à psicologia. Um cinema dos significantes
(mas num sentido diferente daquele dado por Barthes
ao cinema moderno nos anos 60). Um cinema com responsabilidade
figurativa, um cinema que respeita um certo pacto de
delicadeza entre a imagem e o mundo que ela representa.
Medo de dramaturgia ou euforia da ambigüidade?
Uma reclamação comum entre meus colegas
de faculdade de cinema: é difícil decupar
uma cena; é difícil organizar dramaticamente
o espaço, temos uma tendência natural a
deixá-lo à mercê das sensações.
No lugar da dramaturgia, da cenicidade – digamos
logo: no lugar da mise en scène –,
enxertamos blocos de afetos, carnes soltas do real,
fragmentos de vida sem significados fechados. Para jovens
curta-metragistas, a falta de dramaturgia seria paralisante
caso não houvesse algo para substituí-la.
Mas há. No nível conceitual ou na prática,
criamos nomes para o substituto: fluxo, sideração,
suspensão, flutuação. Na França,
sobretudo nos Cahiers du Cinéma, um cinema sutil,
um cinema en apesanteur, um formalismo tranqüilo,
do “plano-conceito sentimental”, é
defendido e santificado. Arcabouço teórico
é o que não falta. No fundo, ao pensar
que tipo de cinema estamos dispostos a fazer, regozijamo-nos
por não aderir ao drama, mantê-lo à
distância, dissolvê-lo na paisagem, no tempo,
na sensibilidade (em muitos casos, bastante acurada)
que desenvolvemos em relação aos lugares
e aos corpos. É o culto do arejamento estético,
do insólito, da ausência de peso, antítese
radical do classicismo, já que no cinema clássico,
ou derivado do clássico, o cineasta trabalha
sob o (ou através do) olhar de algo maior que
o homem: a Lei, o Tempo, a Arte, o Destino, Deus (o
que faz de Eastwood um “clássico”,
nesse sentido, é muito menos a decupagem do que
a existência de forças que pesam
sobre os personagens). O drama foi afastado, ao menos
o drama no sentido forte, ou seja, da confrontação
dramática, do heroísmo, da tragédia,
da violência glorificada, da construção
de um mundo sustentado por alguma gravidade, alguma
ênfase. Sem traumas: nossa lógica das sensações,
nossa primazia do sensorial, do flutuante e do corpóreo,
vale por mil dramaturgias.
A potência analógica da imagem cinematográfica
sempre teve seu binômio fascínio/atração
contrabalançado pelo reverso moralizante, que
em última análise gera a noção
do infilmável, ou seja, de que certas coisas
não se podem filmar, ao menos não de uma
determinada maneira (vide o difamado travelling
de Kapò, alvo de uma ojeriza dogmatizada).
O cinema dos significantes, contudo, abole esse conflito
na sua raiz mesma, porque tem uma “vantagem”:
só mostra, recusa-se a falar sobre as coisas,
contenta-se em se apresentar como “trabalho de
imagens”, segue o modelo artístico do sismógrafo
sensível às variações do
presente, mas afásico, incapaz de enunciar sua
estrutura. Essa infra-linguagem, sabemos, está
muito longe de ser uma deficiência (para citar
o exemplo mais simples: Hou é hoje um cineasta
crucial dentro desse modelo). O problema, reitero, está
no momento em que isso se torna regra, convenção,
academicismo par défaut.
(...)
Nesse contexto de cansaço com alguns clichês
do cinema contemporâneo (o minimalismo, o mutismo,
a narrativa elíptica, a fuga da dramaturgia etc.),
o fato de que foi um filme de Éric Rohmer o que
mais me encantou em Rotterdam veio a calhar. O que mais
me impressionou em Les amours d'Astrée et
de Céladon foi justamente a potência
da escritura. Os diálogos não dissimulam
os conflitos dos personagens. Está tudo lá,
nas palavras. Peso fundamental da palavra: Astrée
só crê de verdade no amor de Céladon
quando acha um poema que ele escreveu no tronco de uma
árvore, no qual declara que seu coração
pertence a ela. O amor, neste filme, é um reino
sagrado – um compromisso profundo, religioso mesmo,
com seus doze mandamentos e seus ritos, e para o qual
Céladon deverá construir um templo. Para
Astrée e Céladon, o amor tinha vindo fácil
demais no início do filme, como algo já
presente na natureza, abençoado pelo sol, pelas
árvores e pelo rio. Isso era liberdade, mas o
amor necessita de restrições (ao menos
para Rohmer). A alma precisa ser testada, Céladon
precisa se submeter a um retiro. É por isso que
eles têm de ficar separados um do outro por um
tempo (uma espera quase tão longa quanto a do
Conto de Inverno). Até que a história
dos dois seja contada, seja apresentada sob a forma
de palavras (escritas, faladas). Rohmer, como sempre,
passando longe da afasia.
Puissance de la parole...
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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