ROTTERDAM 2008
O Cinema Sob o Paradoxo do Contemporâneo

O International Film Festival Rotterdam possui uma mega-programação. Filmes obscuros, filmes de medalhões, vídeo-instalações (Tsai Ming-liang, Wang Bing, um coletivo coordenado por Apichatpong), retrospectivas muito bem sacadas (Robert Breer, por exemplo), ciclos de conferências sobre mercado e produção, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Mas a maior reputação do festival diz respeito ao foco especial concedido a novos diretores e novas tendências. A seleção da competitiva de Rotterdam tem uma premissa que a distingue dos outros grandes festivais: os filmes que competem são de diretores que estão no máximo em seu segundo longa-metragem. Isso permite um grau de prospecção de talentos e de rumos diferente de Cannes, Berlim ou Veneza (cujas competitivas, salvo surpresas, já caíram no esquema grandes autores).

No conjunto de filmes que competiam este ano em Rotterdam, uma tendência me chamou a atenção acima das outras: em maior ou menor grau, ficou a suspeita de que há uma geração de jovens cineastas, na Ásia, na Europa, na América do Sul ou alhures, que segue uma nova cartilha. No nosso último Cinema Falado, e também no texto que escrevi para o Daily Tiger (o jornal oficial do festival de Rotterdam, que é publicado diariamente e circula por todos os lugares onde o festival acontece), eu já falava algo diretamente relacionado à questão, ao apontar um novo gênero do cinema brasileiro: filmes que, seguindo os passos de O Céu de Suely, Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade Baixa, parecem ter encontrado uma fórmula de sutileza que agrada as platéias dos festivais internacionais (Mutum e Casa de Alice foram os melhores exemplos em 2007). Essa fórmula não está muito distante dos filmes que compõem a nova onda do cinema malásio, dois deles vencedores das últimas edições do festival de Rotterdam, Love Conquers All (Tan Chui Mui), que ganhou em 2007, e Flower in the Pocket (Liew Seng Tat), um dos três vencedores este ano.

O filme de Liew Seng Tat é simpático, nada mais. Por um lado, o espírito de faça-você-mesmo (baixíssimo orçamento, câmera digital, desenho de produção muito bem pensado para os meios disponíveis) afasta Flower in the Pocket do cinema brasileiro (aqui, baixo orçamento é um milhão e meio). Por outro, a estética do filme em muitos quesitos o aproxima desse cinema brasileiro pré-formatado para o olhar sensível dos programadores de grandes festivais. Na Malásia ou no Brasil, os cineastas aprendem a linguagem do “world cinema”.

Para os jovens diretores que se deslumbram com os novos rumos do cinema, o risco de um neo-academicismo é tão maior quanto menos ele se apresenta como tal, já que a coisa é mais fluida, mais leve do que um esquema normativo. Acontece que os cineastas que seriam os mestres desse cinema (Antonioni lá atrás, Hou Hsiao-hsien, Claire Denis, Apichatpong Weerasethakul, Naomi Kawase, Tsai Ming-liang, Jia Zhang-ke e alguns outros aqui na frente) simplesmente não são mestres, nada têm a ensinar. São cineastas de estilo inimitável, pois não lançam mão de uma gramática ou de um sistema formal, e sim constroem suas próprias formas, no entrecruzamento dos projetos (mentais) de cada um e da sensibilidade particular ao presente, intensificada no ato do registro.

Tratado hoje como pop star nos grandes festivais europeus, Hou Hsiao-hsien é o que mais se aproxima de uma figura de "mestre" (até pela espessura de sua obra, de quase trinta anos). Mas quando sua fluida movimentação de câmera e sua complexa relação com o espaço cênico se tornam passíveis de um "aprendizado", é no mínimo de se estranhar. Ou de se achar natural que isso aconteça: as nouvelles vagues asiáticas dos anos 80/90 agora finalmente fazem escola, tendo Hou como representante mor, o modelo para um cinema do futuro (não foi assim que Juliette Binoche o definiu?).

Peguemos o exemplo mais sintomático na competitiva de Rotterdam: Shanghai Trance, de David Verbeek, uma espécie de filme-karaokê onde o jovem diretor holandês está colocando sua voz sobre o fundo musical de Hou Hsiao-hsien. Às vezes parece que o filme está sendo feito usando Millenium Mambo e a terceira parte de Three Times como back-projection. Verbeek mostra um mosaico de relações humanas se degradando na Xangai de hoje, com seus prédios high-tech, seus centros empresariais e, é claro, suas boates multicoloridas, estroboscópicas. Sob esse céu quase artificial, os personagens se tornam mais e mais fracassados nas relações pessoais. Embora o trabalho de composição das imagens e das ambiências esteja tentando alcançar Millenium Mambo, o filme todo é alimentado por uma cadeia moral que o mantém a milhas de distância do olhar confuciano (observar e não julgar, ver e não intervir) de Hou Hsiao-hsien. Verbeek bizarramente consegue misturar a atmosfera de Hou ao moralismo decadentista e à lógica de destino coletivo de Babel e 21 Gramas.   

Apesar da estrutura em filme-painel, Shanghai Trance tenta se filiar a um modelo de narrativa minimalista com diálogos esparsos. Quando um diálogo acontece, entretanto, percebemos que no fundo o diretor gostaria de contar uma história bem clichê e convencional. Mas optou pelo plano-seqüência que aguarda pacientemente, sem se antecipar aos acontecimentos, supostamente respeitando a ambigüidade do real, à espera do êxtase que vem da falsa sensação de que nada acontece (quase uma contradição de princípios, essa idéia de um êxtase destinado a reencontrar a banalidade do cotidiano).    

Outro filme sintomático no VPRO Tiger Awards Competition, e não por acaso um dos três premiados (os outros dois foram o já citado Flower in the Pocket e o inexplicável Go With Peace, Jamil, filme sobre redenção na chave mais simplista, com tiques de gangsta movie extremamente mal resolvidos), foi Wonderful Town, do tailandês Aditya Assarat. Na sessão em que vi o filme, Gertjan Zuilhof, um dos programadores do festival, foi quem conduziu o debate com o diretor. Esse, aliás, é mais um dos aspectos bacanas de Rotterdam: se o diretor está no festival, seu filme é debatido após a sessão. Gertjan comentou, muito apropriadamente, a estrutura de western que perpassa Wonderful Town: um filme de paisagens magnificentes, ambientado num horizonte histórico-geográfico, com um forasteiro sendo perseguido pelos locais. Mas em vez de um território pré-civilização, Aditya Assarat mostra um universo pós-cataclismo, na cidade tailandesa que mais foi arrasada pelo Tsunami. Pelo cenário apocalíptico dividido entre faroeste, cinema-catástrofe e road movie, e pela cena central em que o carro do protagonista é perseguido por motoqueiros, o filme também me lembrou Mad Max. Na maior parte do tempo, contudo, as cenas são apenas blocos de sensações, sem investimento maior no drama ou no flerte com gêneros, que permanecem no subsolo.       

O que capturou meu interesse no começo de Wonderful Town foi o modo como o vento – personagem de destaque – era tão doce, sereno, calmo, agradável, logo naquele lugar assombrado pelas reminiscências da destruição provocada pelo Tsunami. Mas o middle point do filme é bem nítido: um longo plano de ondas violentas – seriam elas de fato violentas? ou é o afloramento do drama de fundo, alimentado pelos interstícios da narrativa, o que desperta esse sentimento? – inicia o processo de queda. O trauma vem a primeiro plano. O forasteiro é morto pelos locais. Como se para curar um passado de destruição, uma nova violência precisasse acontecer. Os habitantes da cidade matam o forasteiro (ação esta relegada a uma elipse) talvez porque precisem de alguém para culpar, um bode expiatório (Aditya chegou a sugeri-lo no debate), ou talvez por conta de seu passado ambíguo – se o filme é realmente um western, o personagem com o maior passado, o mais denso, é quem termina por levar a culpa.

Após a cena da morte, ocorrem três ou quatro planos à la Apichatpong (lentos travellings apaziguadores, com drone music na trilha sonora, absurdamente parecidos com alguns momentos de Síndromes e um Século). O filme então se acalma, e os habitantes locais podem finalmente voltar à sua rotina (à paz?). O final é bastante problemático: imagens tranqüilas, com uma música delicada e otimista, um clima de volta à vida propiciado pela morte do estrangeiro. A crítica, a força política do enredo pode até estar implícita nesse intervalo, porém se perde na montagem, na passagem da morte à vida, na dissolução do peso, na recusa a tratar o conflito como verdadeiro embate de alteridades (tudo se ingurgita no Mesmo). Algo similar já ocorria em Help Me Eros, do Lee Kang-sheng, conforme comentei no diário da última Mostra de São Paulo: “Incomoda-me em particular a cena em que Lee teria um encontro com a mulher com quem conversa no MSN, mas esse encontro, como era de se prever, não ocorre, se frustra. É exatamente o beco sem saída desse cinema sem confronto, sem campo-contracampo”. 

Minha principal crítica a Wonderful Town é justamente por ele casar de maneira muito fácil a imanência do cotidiano à transformação radical. Se a paisagem esconde o drama, basta um plano, um travelling na direção do rosto do protagonista enquanto ele fala ao telefone para que todo o peso aflore: violência, morte, traição. A passagem de um estado a outro é demasiado brusca (ou demasiado fluida, não sei). Não há progressão dramática, essa idéia parece excluída ou jamais cogitada. A elipse e a ambigüidade soam como regras, ao invés de opções estéticas elaboradas. A questão não parece ser negar o drama, mas eclipsá-lo por, no fim das contas, não ter nada a dizer. A elipse aparece como uma alternativa “mais fácil”.

Checando nas matrizes, contudo, tal facilidade não se confirma. Comecemos por Apichatpong Weerasethakul: o que ele busca, por meio de uma fenomenologia sensualista, é a linguagem nativa do tempo-espaço, ou seja, aquilo que o mundo fala antes de nossa consciência e nossa cultura tentarem decifrá-lo. Essa linguagem nativa do mundo se forma pela depuração de ontologemas: pedaços de vida transferidos do tempo social a um outro tempo (mais livre, por assim dizer). Apichatpong submete o cinema à matéria rarefeita de uma "sensorialidade primeira". Nos seus filmes, os planos se devem a uma operação conceitual da qual são simultaneamente via de acesso e resultado.

Nessa fusão de selvageria empírica e de dispositivo com propriedades artísticas particulares, restitui-se um paraíso perdido do visível. Talvez esteja aí a resolução das possíveis hesitações ontológicas: da garantia de realidade mínima dos registros, outrora fonte de encantamento estético e romântico com a imagem cinematográfica, passamos à múltipla intensificação das zonas de opacidade do real. O grande vínculo da imagem com o mundo não é mais o traço, a pregnância na placa sensível. É antes essa grandeza impalpável: a intensidade. Anterior às noções de cena, de dramaturgia ou de linguagem, a intensidade (elemento não mensurável senão enigmaticamente, ao mesmo tempo o primeiro e o último elo possível entre a imagem e o que ela representa) é o ainda-não-instituído, a imagem sem código aparente de imagem. O filme desaparece por trás do presente eterno que ele mesmo produziu. Após uma era de suspeita generalizada com o real (colocado entre aspas durante as décadas de 80 e 90), chega-se a um novo paradigma, no qual aceitar – e mesmo explorar – a assignificância do mundo equivale a respeitar a realidade primeira das coisas. O verdadeiro plano-conceito é este: um campo aberto onde o filme pode refletir sobre seu processo e aguardar que seu rumo seja decidido – pelo cineasta ou pelo ator, mas também pela chuva ou pelo vento. À mise en scène se substitui a constituição de um espaço-tempo primordial. Trabalho menos de dramaturgia que de cosmologia (Kawase faz um cinema do confronto e da catarse, mas transfere o drama a um contato místico com a natureza e o cosmo; Apichatpong faz de um campo-contracampo um encontro, e às vezes uma comunhão, de diferentes formas de vida).

Já em Hou Hsiao-hsien, a coisa é um pouco diferente, a mise en scène combina a experiência bruta da duração, da matéria-luz e do movimento a um conteúdo dramático bem marcado: em Le Voyage du Ballon Rouge, ele integra o fluxo contínuo e inextricável do cotidiano a uma composição cênica condensada nos detalhes (cf. as cenas no apartamento de Binoche).   

Divagações minhas à parte, vendo Shanghai Trance e Wonderful Town fico com a impressão de que falta aos seus diretores uma maior compreensão "filosófica" dos cineastas que lhes servem de referência. O que sobra da estética deles, quando pensada e praticada em campo seguro, frio (e como são frios esses filmes de Verbeek e Aditya), é uma linguagem domesticada, inofensiva, acadêmica.

No universo da crítica (Contracampo inclusa, claro), um perigo análogo reside na institucionalização de um certo olhar voltado ao cinema contemporâneo. Isso rende não apenas a falsa impressão de que há um conjunto de cineastas com afinidades estéticas que devem ser defendidos em detrimento de outros, mas também a tendência a generalizar, a colocar como farinha do mesmo saco uma série de obras que, a rigor, revelam diferentes procedimentos. Negligenciam-se as particularidades de cineastas e filmes – o mesmo repertório crítico sendo aplicado a um largo espectro de filmes = limitação conceitual. É o mal de todo sistema de pensamento, ele tende a capturar na mesma teia todo objeto que esteja voando em trajetória indefinida. Nosso fascínio, nosso afã, que até aqui motivou tantos pensamentos importantes sobre o estado das coisas no cinema atual, pode nos levar a incluir determinadas obras em universos a que estilística e ontologicamente não pertencem (não seria já o caso de checarmos os lugares onde isso pode ter acontecido?). No limite, esse aprisionamento conceitual criaria um gênero chamado cinema contemporâneo (mas como pode o contemporâneo virar gênero? – também me pergunto).

Dos anos 90 para cá, o cinema tem vivido um período de extraordinária reinvenção, unindo a capacidade de escutar e observar o presente a atitudes artísticas que variam desde uma simples (ainda que original) sensibilidade plástica à imagem e sua matéria (Hou, Denis, Ferrara, Tsai) até estruturas rebuscadas (Kiarostami, Van Sant, Jia Zhang-ke, Todd Haynes). O quadro que se segue, então, não se distingue em muito daquele que veio na esteira do cinema moderno: do lado da realização de filmes, surgem os diretores que, tendo aprendido mal a lição, tentam absorver as inovações sob a forma de linguagem (a um passo da convenção); do lado da crítica, surgem os legitimadores, que às vezes abusam do instrumental teórico formulado para esse novo cinema e o aplicam a obras díspares.  

Estamos, assim, diante da possibilidade tanto de uma imprecisão crítica (pela tentativa de dar nome a um conjunto de filmes por demais polimorfo) quanto de um novo academicismo, anti-psicológico e minimalista, que já foi “denunciado” aqui e ali, mas de maneira tímida, pois o sucesso da fórmula ainda é muito recente para permitir que vozes discordantes encontrem eco. Ou talvez seja pesado falar em neo-academicismo, talvez seja mais um modismo do que um modelo estético que deixará legado. Mas se é verdade que toda época tem seu academicismo, o de hoje seria este que recusa as técnicas clássicas de dramaturgia e encenação (não raro tidas como caricatas e anacrônicas pela platéia típica dos festivais) e segue narrativas elípticas/flutuantes, dramas mudos do cotidiano, relação afetiva entre câmera e atores, não-julgamento das situações e dos personagens, mais atenção ao corpo do que à psicologia. Um cinema dos significantes (mas num sentido diferente daquele dado por Barthes ao cinema moderno nos anos 60). Um cinema com responsabilidade figurativa, um cinema que respeita um certo pacto de delicadeza entre a imagem e o mundo que ela representa.

Medo de dramaturgia ou euforia da ambigüidade?

Uma reclamação comum entre meus colegas de faculdade de cinema: é difícil decupar uma cena; é difícil organizar dramaticamente o espaço, temos uma tendência natural a deixá-lo à mercê das sensações. No lugar da dramaturgia, da cenicidade – digamos logo: no lugar da mise en scène –, enxertamos blocos de afetos, carnes soltas do real, fragmentos de vida sem significados fechados. Para jovens curta-metragistas, a falta de dramaturgia seria paralisante caso não houvesse algo para substituí-la. Mas há. No nível conceitual ou na prática, criamos nomes para o substituto: fluxo, sideração, suspensão, flutuação. Na França, sobretudo nos Cahiers du Cinéma, um cinema sutil, um cinema en apesanteur, um formalismo tranqüilo, do “plano-conceito sentimental”, é defendido e santificado. Arcabouço teórico é o que não falta. No fundo, ao pensar que tipo de cinema estamos dispostos a fazer, regozijamo-nos por não aderir ao drama, mantê-lo à distância, dissolvê-lo na paisagem, no tempo, na sensibilidade (em muitos casos, bastante acurada) que desenvolvemos em relação aos lugares e aos corpos. É o culto do arejamento estético, do insólito, da ausência de peso, antítese radical do classicismo, já que no cinema clássico, ou derivado do clássico, o cineasta trabalha sob o (ou através do) olhar de algo maior que o homem: a Lei, o Tempo, a Arte, o Destino, Deus (o que faz de Eastwood um “clássico”, nesse sentido, é muito menos a decupagem do que a existência de forças que pesam sobre os personagens). O drama foi afastado, ao menos o drama no sentido forte, ou seja, da confrontação dramática, do heroísmo, da tragédia, da violência glorificada, da construção de um mundo sustentado por alguma gravidade, alguma ênfase. Sem traumas: nossa lógica das sensações, nossa primazia do sensorial, do flutuante e do corpóreo, vale por mil dramaturgias.

A potência analógica da imagem cinematográfica sempre teve seu binômio fascínio/atração contrabalançado pelo reverso moralizante, que em última análise gera a noção do infilmável, ou seja, de que certas coisas não se podem filmar, ao menos não de uma determinada maneira (vide o difamado travelling de Kapò, alvo de uma ojeriza dogmatizada). O cinema dos significantes, contudo, abole esse conflito na sua raiz mesma, porque tem uma “vantagem”: só mostra, recusa-se a falar sobre as coisas, contenta-se em se apresentar como “trabalho de imagens”, segue o modelo artístico do sismógrafo sensível às variações do presente, mas afásico, incapaz de enunciar sua estrutura. Essa infra-linguagem, sabemos, está muito longe de ser uma deficiência (para citar o exemplo mais simples: Hou é hoje um cineasta crucial dentro desse modelo). O problema, reitero, está no momento em que isso se torna regra, convenção, academicismo par défaut.

(...)

Nesse contexto de cansaço com alguns clichês do cinema contemporâneo (o minimalismo, o mutismo, a narrativa elíptica, a fuga da dramaturgia etc.), o fato de que foi um filme de Éric Rohmer o que mais me encantou em Rotterdam veio a calhar. O que mais me impressionou em Les amours d'Astrée et de Céladon foi justamente a potência da escritura. Os diálogos não dissimulam os conflitos dos personagens. Está tudo lá, nas palavras. Peso fundamental da palavra: Astrée só crê de verdade no amor de Céladon quando acha um poema que ele escreveu no tronco de uma árvore, no qual declara que seu coração pertence a ela. O amor, neste filme, é um reino sagrado – um compromisso profundo, religioso mesmo, com seus doze mandamentos e seus ritos, e para o qual Céladon deverá construir um templo. Para Astrée e Céladon, o amor tinha vindo fácil demais no início do filme, como algo já presente na natureza, abençoado pelo sol, pelas árvores e pelo rio. Isso era liberdade, mas o amor necessita de restrições (ao menos para Rohmer). A alma precisa ser testada, Céladon precisa se submeter a um retiro. É por isso que eles têm de ficar separados um do outro por um tempo (uma espera quase tão longa quanto a do Conto de Inverno). Até que a história dos dois seja contada, seja apresentada sob a forma de palavras (escritas, faladas). Rohmer, como sempre, passando longe da afasia.

Puissance de la parole...

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 






Shanghai Trance, de David Verbeek


Wonderful Town, de Aditya Assarat