Paranoid Park é um filme
sem chão, sem teto. Os personagens do filme são adolescentes
que vivem sobre seus skates, logo acima do chão, abaixo do
teto – ou entre o céu e a terra. O espaço-imagem que
Gus Van Sant cria para eles se dá
justamente aí, um pequeno vôo em slow motion, como na cena em que vemos, um a um, os skatistas passando diante da câmera. O último deles erra a
manobra e cai. Seria demais dizer que o filme resume
seu enredo nesse plano? Um corpo em suspensão, uma fatalidade,
uma queda. O protagonista Alex (mesmo nome de um dos
atiradores de Elefante)
escreve uma carta contando o que lhe aconteceu, e a
narrativa do filme segue o relato caótico que vem direto
de sua mente, como lampejos da consciência. Estamos
colados ao ponto de vista do personagem, e não mais
às operações do dispositivo (como era em Elefante
e Last Days), que de
certa forma se acha pulverizado – o que não impede um
reforço ainda maior do lado conceitual. A exploração
de um universo mental do personagem lembra os filmes
anteriores a Gerry
– em particular Drugstore Cowboy, Garotos de Programa e Gênio Indomável.
Não foi por acaso que Gus
Van Sant decidiu trabalhar
novamente com o diretor de fotografia Christopher Doyle. Eles tinham trabalhado juntos no remake
de Psicose,
donde devemos destacar dois aspectos: 1) Psicose
foi o primeiro filme de Van
Sant em que cada plano era uma aventura plástica e,
sobretudo, conceitual, antecipando a radicalidade
de seus projetos recentes; 2) Paranoid Park se inspira bastante em Hitchcock, o maior mestre
da ficção paranóica da história do cinema, para instaurar
a dúvida no olhar e se embrenhar pelo assustador universo
da culpa. Pelo menos duas cenas remetem precisamente
a Psicose:
a cena no carro, quando Alex enfrenta a chuva e a noite
para ir ao parque de skate, e a cena do banho, com a água do chuveiro desabando
sobre Alex. Paranoid Park assimila o retalhamento
da cena do chuveiro de Psicose em sua própria
narrativa, um corpo fragmentado e complexo, e evita
as explicações psicológicas tornando-se um filme
em desproporção, pois quanto mais recebemos informações
sobre o ocorrido, mais mergulhamos na sua opacidade
e deflação. O crime não é motivado por um distúrbio
mental, é um acidente provocado por uma fagulha mínima
– uma força presente no mundo, cada corpo podendo ser
um suporte em potencial dessa força (pura questão de
física). Alex agiu por reflexo e provocou uma morte
grotesca, filmada em seu aspecto aterrorizante. Uma
profunda ancoragem do olhar de Van Sant ao olhar do
personagem se materializa naquela cena do segurança
partido em dois, rastejando na direção de Alex. Numa
cena anterior, o detetive foi até a escola de Alex e
mostrou uma foto da parte inferior do corpo do segurança.
A outra imagem, a parte ausente, só pode ser evocada
pela mente de Alex, para quem tudo já se tornou um pesadelo
– é por isso que Gus Van
Sant deve filmar aquilo como um pesadelo, uma cena de
horror. A montagem (e trata-se de um autêntico filme
de montagem) embaralha a realidade e seu fantasma, o
mundo externo e a alienação.
Para mergulhar no estado de consciência do seu protagonista,
Paranoid Park não recorre
a imagens monolíticas que ilustrariam o peso da culpa.
Van Sant faz, ao contrário, uma espécie de mise en flux da consciência.
Pela segunda vez consecutiva, não vemos as nuvens aceleradas
– que são como a assinatura de seus filmes – senão por
alusão: em Last Days eram reflexos fugidios no vidro do
carro, agora são sombras que passam sobre Alex. Mais
do que uma gag de autor (algo que Van
Sant definitivamente adora, basta lembrar do videogame
com os personagens de Gerry que aparece em Elefante), isso demonstra que as imagens
do filme em si, assim como os adolescentes que vemos,
são as verdadeiras presenças aéreas de Paranoid Park. Desde
Elefante nos acostumamos a ver corpos voláteis,
estados gasosos do ser em contraste ao impacto sólido
dos acontecimentos em que estão imersos. Nesse universo
de sensações etéreas, como responder ao peso dos eventos
que se fincam na base dos filmes? Numa cena de Paranoid Park, o professor
de física explica o empuxo para os estudantes: uma tensão
dos fluidos. O filme
é um estudo sobre o empuxo da piscina onde os skatistas
mantêm seus corpos em suspensão, realizam seu balé fluido
e errático. Fica ainda mais claro que há um mundo lá
fora (com guerras e outros acontecimentos "maiores"),
há uma gravidade das coisas, mas o que vemos são imagens
hiper-ventiladas, uma experiência de torpor e languidez
no limiar do desmaio. A narrativa é uma queda em câmera
lenta. É como se, para ingressar naquele paraíso perdido
que é o parque de skate que
dá título ao filme, Alex precisasse tombar das nuvens,
sair da inocência (enredo do filme adolescente por excelência).
Paranoid Park é o vale dos anjos caídos aos quais Alex está destinado
a se juntar.
Poucos cineastas conseguem, hoje, estabelecer ao mesmo
tempo tanta continuidade e tanta liberdade entre um
filme e o seguinte. São inúmeras as cenas de Paranoid Park em que
constatamos uma renovação em cima de motivos visuais,
narrativos e sonoros anteriormente trabalhados. Na já
citada cena do banho, há um crescendo de ruídos de rua
e sons de pássaros que sufoca o personagem à mesma medida
que areja os jogos formais de Gus
Van Sant. Os azulejos como que ganham vida, o filme se abre
a um lugar ausente. Não é puramente um espaço imaginário,
é antes um encontro, mediado pela pista de som, entre
o paraíso e o inferno. Toda a ambiência sonora de Paranoid Park toma o
aspecto de um alhures, um universo que as imagens atingem
apenas parcialmente. Algo falta ao mundo filtrado pela
visão de Alex. As trocas de olhares são fendidas por
uma dimensão do inescrutável. O filme apreende o espaço
entre um olhar e o outro, esse espaço onde circulam
desejos, intenções, interrogações, mas não atinge plenamente
o que há por trás dos olhares. Alex tem um rosto ainda
mais angelical que qualquer outro protagonista de Gus
Van Sant, e todos no filme parecem seqüestrar, com os olhares,
um pouco de sua beleza quase infantil. Função vampírica do olhar – algo de que o próprio diretor está longe
de se isentar.
As imagens feitas em super-8 são muito parecidas com
vídeos de skate, mas com uma diferença: em Van
Sant saímos do terreno da iconografia e migramos para
a mitologia. Aqueles adolescentes flutuantes são anjos
à espera de um julgamento que nunca se resolverá. Mais
triste do que os filmes anteriores de Gus
Van Sant, Paranoid Park transforma o mito da adolescência eterna em um purgatório
sem fim.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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