A MEMÓRIA DAS PEDRAS

Um dos filmes-bomba de 2007, o tão blasfemado 300 representa o paroxismo de uma modalidade de cinema onde tudo – de poses a figurinos – nasce de um projeto gráfico cafona e esquisito. É também o extremo de uma lógica de construção visual in vitro (já discutida aqui e ali) na qual os realizadores sabem penerar da arte dos pontos de vista e das durações somente o que interessa a seu cálculo. Um cinema sem cosmofanias, sem aquelas revelações de sentidos secretos latentes na presença silenciosa das coisas e do mundo etc e tal. Sem brotamentos mágicos imprevistos, sem risco, sem surpresa (as chances de algo do real passar através das malhas do cálculo são nulas). Tudo está no planejamento, tudo está no efeito-imagem. Não é só a desaparição do espaço o que as imagens de 300 testemunham, tem algo mais acontecendo. O que vemos não são homens, mas interpretações de figuras humanas (com músculos abdominais moldados por CGI), são sobre-estilizações do corpo do guerreiro antigo – uma coisa a meio caminho entre HQ e capa de disco do Manowar. Alexandre Werneck foi preciso ao falar da influência do hiper-realismo fantástico em sua crítica ao filme de Zack Snyder.

Recuando um pouco, devemos lembrar que a própria idéia de realismo é historicamente movente: ela condensa sempre ordens simbólicas que precedem a construção programada dos mundos ficcionais. É preciso recuar mais ainda, na verdade: o homem, a princípio, não se representou como figura puramente falando, ou seja, não inscreveu sua forma por si mesma, liberta de contexto cênico, livre de enredo. Ele era capaz de representar os animais, fazer o desenho de uma vaca na caverna sem acrescentar enredo – figura no vazio. Mas em se tratando de representar seres humanos, era necessário um contexto espiritual. Somente a partir de enredos mitológicos fundadores, de mitos iniciáticos, que o homem começa a aparecer num regime figurativo das representações visuais. Isso não apenas porque não se colocava em pé de igualdade com as outras espécies, mas acima de tudo porque não podia se conceber como uma coisa solta, definida em seus contornos mesmos, em sua forma mesma, portanto precisava de uma narrativa, de um cenário de fundo para perspectivar-se espiritualmente e simbolicamente. A figura humana só consegue se exprimir de vez através de uma narrativa. Antes, na impossibilidade de se representar como traço, como forma “pura”, o homem preferiu simplesmente se excluir da representação. Foi assim durante toda a era paleolítica, até que, na arte neolítica, o homem encontra um local de inscrição como mito. Surgem os avatares simbólicos, religiosos e ritualísticos da representação da figura humana sua ausência anterior, contudo, era do tipo “estruturante”, porque no fundo a vaca desenhada, se não remetia ao homem pela forma, fazia-o pelo pensamento: por trás daquela imagem há a ação e o pensamento humanos, há o trabalho do homem, que se denuncia, ou denuncia sua presença, no próprio traço.

Em 300, filme integralmente rodado em estúdios e no qual todas as paisagens foram construídas em CGI, o tal contexto cênico, sem o qual o homem não podia se representar, acha-se agora virtualizado. Os atores digladiam sobre um fundo verde, num estúdio onde o cenário desertou a cena. O enredo mitológico, a dimensão espiritual da cenografia e das paisagens artificiais se fará depois, talvez já ajustada à medida dos personagens. Um percurso se fecha com 300: na nova caverna que é o estúdio, a condição para o homem se permitir representar no vazio, à frente de panos de fundo neutros, é a certeza (o alívio!) de que aquelas paredes verdes depois se preencherão com imagens geradas por computadores. Nas filmagens eles eram apenas corpos suspensos no vácuo, as tais figuras-no-vazio interditadas à arte neolítica, mas não havia travas morais ou mesmo dramatúrgicas porque, no subtexto interno de cada um, havia a noção de um mundo (imaginado, inventado, urdido, mas este não é o ponto) ao qual estariam integrados na arte final, na obra acabada.  O avatar simbólico encarnado pela paisagem mitológica entrou, também ele, na economia do virtual – ou, quem sabe, retornou ao lugar a que sempre pertenceu, abstraído do mundo social historicamente determinado.      
 
Aqui encontramos o maior contraponto a 300 em 2007 (não à toa um dos melhores filmes do ano): Em Busca da Vida. Pois é sobre as determinações históricas, precisamente, que Jia Zhang-ke trabalha. Tanto 300 quanto Jia mostram mundos sendo construídos às custas da desaparição de outro: num a terra sai de cena para a entrada do “horizonte negativo” (descontando o tom apocalíptico over, Paul Virilio teve lá suas boas sacadas sobre a nova configuração espacial do mundo) de uma Antigüidade virtual; noutro há a demolição de antigos blocos de concreto, que sucumbem ao espectro da China contemporânea. Em Busca da Vida é uma ficção-científica rodada sobre as ruínas de um mundo anacrônico, em vias de ser afogado pelo piscinão da economia globalizada. Mas o peso do mundo está lá inscrito no revés dessa fórmula imperiosa de modernização, representada pela inundação das cidades deglutidas pela construção da imensa hidrelétrica das Três Gargantas. Afirmando-se como o grande cineasta do espaço desta década, num trabalho de relação da figura humana com o entorno (volta e meia rendendo gags espaciais) comparável a Tati ou Antonioni, Jia filma o mundo que precisa cair para que haja a elevação da nova China.

Questão de economia, de política, de geografia, mas questão também de imagem: Em Busca da Vida mostra o cinema do plano e da montagem (de que Jia é adepto) se equilibrando na fronteira de uma estética de flutuação da qual a câmera digital já se mostrou uma forte aliada. Da imagem-tijolo à imagem-pixel, uma erosão ocorre (Emmanuel Burdeau fala algo assim na boa crítica que escreveu na Cahiers). O cálculo – e tudo em Jia vem sendo cada vez mais calculado, desde uma coreografia de câmera até o timing de uma ponte que se acende em néon – é cúmplice da surpresa, do risco, do imprevisto, e não deriva apenas de um projeto mental, sendo também a negociação com o mundo material, histórico, social. O concreto e o insólito trocam figurinhas. A fábula é uma continuação do espaço real (lembrar do foguete que decola de uma peculiar construção praticamente onipresente no filme). Em suma, esse cinema da flutuação tem seu passado ligado ao plano, ao ferro, ao cimento. Se há efeito especial-digital na famosa cena da implosão do prédio, atrás do casal em primeiro plano, o que importa é perceber que esse fundo falso do plano, diferentemente daqueles fundos falsos de 300, denuncia a presença de um mundo condenado às ruínas. Enquanto 300 simplesmente ignora o que veio antes do lago digital, Jia reinscreve a economia dos fluxos imateriais na memória de suas origens materiais.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 







As pedras que guardam a memória de um mundo inundado
pela nova economia global, a represa ao fundo e o corpo de
Zhao Tao minúsculo dentro dessa paisagem monstruosa, desproporcional, opressora.