Fazer a distinção entre um pôr do sol de King
Kong (Peter Jackson), quando o céu se vê tomado
de um dourado tão “natural” quanto o gorila gigante
em si, e as dezenas de pores do sol que aparecem em
O Novo Mundo(Terrence Malick) não é muito diferente
de perceber aquilo que separava, na pintura do século
XVI, uma concepção geométrica do espaço, alcançada pelos
poderes da abstração racional, de uma concepção ecológica
ou empírica, segundo a qual o espaço seria um produto
do sol, da terra, do fluxo e dos gradientes. O pôr do
sol em CGI de King Kong funciona como antítese
da profissão de fé de Malick, cuja sensibilidade e paciência
para filmar a natureza são levadas a níveis sacrificiais.
Imagem-modulação, de um lado (agenciada pela linguagem
da previsão e do cálculo), e imagem-traço, do outro
(a realidade de um reflexo, resguardando algo da “dificuldade
e do esforço do mundo”).
Ecologia: frisemos este termo. Pois se houve um debate
que, dos anos 80 para cá, cresceu e se acentuou em paralelo
ao aperfeiçoamento das tecnologias digitais, foi justamente
o debate sobre o fim de alguns recursos naturais e,
no limite, o fim do mundo tal como o conhecemos – daí
o alerta para preservá-lo. Ao mesmo tempo, numa outra
via de discussão, quem temia os novos rumos econômicos
do cinema, cada vez mais domesticado, cada vez mais
distante da sala escura e adaptado aos cômodos das casas,
demonstrava também uma preocupação ecológica: era uma
mudança radical de meio-ambiente o que os transtornava.
Podemos hoje indagar por que o destino mais óbvio da
imagem sintética não foi dedicar-se àquilo que o mundo,
nas suas “limitações naturais”, por assim dizer, não
podia pôr diante da câmera. O digital criaria a forma
presente na imaginação, porém ausente na natureza (essa
forma, na verdade, apesar de “não se encontrar” na natureza,
ao mesmo tempo não habita outro mundo que não o nosso).
No decorrer dos anos, contudo, os produtores de imagens
foram se entusiasmando não apenas com a fabulação de
universos mágicos e sobrenaturais através de uma ferramenta
diferente da que se tinha antes, mas sobretudo com um
processo de substituição e barateamento das paisagens
(humanas inclusas). Uma espécie de desnecessidade do
mundo, uma possibilidade de copiá-lo à sua revelia.
É um pouco a tal “perda de mundo” de que Serge Daney
se resignava.
Na década de 80, nenhum cineasta testemunhou essa “perda
de mundo” de forma mais lúcida e melancólica do que
Godard. Em Je Vous Salue , Marie o “roteiro”,
a história do filme está escondida em locais mais subterrâneos
que o comum (mesmo em se tratando de Godard), mas se
a gente pensar bem, ele conta a história mais antiga
do ocidente e o faz por atalhos simbólicos e por uma
absurda pureza figurativa. A história é contada em seus
elementos fundamentais, enquanto um sol se pondo é nada
mais que um sol se pondo, não é figura de elipse nem
plano cartão-postal nem ferramenta estilística. A relva
ao vento idem. A paisagem está nua; praticamente todas
as coisas, todos os corpos mostrados no filme estão
nus, em estado nascente, quando ainda não receberam
nomes nem história. Malick não fez tão diferente em
O Novo Mundo (cuja Pocahontas só é identificada
como tal nos créditos finais, nunca ao longo do filme).
Nem Claire Denis em O Intruso ou Bom Trabalho.
Malick e Denis são cineastas para os quais um plano
de cinema é menos uma unidade de ação e dramaturgia
do que um exercício do olhar. Neles observamos a “equivalência
entre um plano de cinema e um certo olhar lançado sobre
um certo momento de um certo pedaço do mundo” (ver Jacques
Aumont, “O plano”). A atividade de filmar se torna uma
ferramenta de percepção de nossa presença fenomenológica
no espaço – ou, como eu falava no início, de concepção
ecológica e empírica do espaço. O plano como pregnância
de um olhar que, embora evidencie um fragmento do mundo
“aleatoriamente” fixado por uma atenção humana, quer
acima de tudo errar e flutuar sem manifestar um poder
de centramento ou de cognição.
Para um técnico em efeitos especiais, diferentemente,
a tomada cinematográfica é menos um exercício flutuante
e errante do olhar do que uma planilha de cálculo. As
tecnologias de imagens geradas por computador exigem
do plano uma precondição geométrica, com linhas e distâncias
programadas. É como se uma parte de Hollywood se libertasse
da ditadura do roteiro somente para se submeter a uma
outra, do story-board. O que preside o filme
deixa de ser um texto para ser uma potência gráfica
– e de fato é notável como King Kong privilegia
seus efeitos visuais, seus sobressaltos à moda dos jogos
eletrônicos (o desenho), em detrimento da consistência
do enredo (o texto), articulando-se como uma sucessão
de esquetes sobre criaturas mirabolantes da história
do cinema de aventura (do King Kong de 1933 a
Jurassic Park). Desse ponto de vista, é possível
considerar esse enredo de fantasia, de uma grande viagem
narrada sob a forma de esquetes, um retorno às origens
do cinema como atração de feira: os espectadores visitam
parques de diversão, empurrados ao sensacional e exótico
dos novos mundos que lhes são apresentados.
O partido que Jackson tira das imagens digitais é ainda
outro, o de abolir a última barreira entre espécie humana
e criatura artificial (grande tema implícito de King
Kong, diga-se de passagem). Na virada dos anos 80/90,
o digital já faz até mais que isso: permite tratar como
de mesma “natureza”, de mesma essência, imagens, sons,
texto, números etc. Resta então algo da relação do cinema
com o mundo real, da sua possibilidade de ser um comunicante
sensível entre o mundo e o sujeito que o observa tentando
compreendê-lo? Quando o cinema não consegue mais ser
uma forma de conhecimento e experiência sensível do
mundo, isso significa a “morte” de uma certa idéia de
cinema, ou de um certo modo de existência material da
imagem cinematográfica (crise de ontologia, de economia
e de suporte – a mudança no fazer da imagem afeta não
apenas o tipo de conexão que ela mantém com seus referentes,
mas também seu desempenho como meio de transporte simbólico).
Era isso que Daney observava sem se poupar de uma grande
melancolia. A morte não é ao pé da letra, evidentemente:
assim como houve “morte” de um certo cinema na passagem
do mudo pro sonoro ou no declínio do sistema dos grandes
estúdios ao final dos anos 50, o cinema ainda sofrerá
muitas outras “mortes” futuras, ou seja, transformações
técnicas e estéticas, revoluções materiais que um conjunto
de filmes – ou mesmo um filme em particular – traz ao
universo do cinema.
Um exemplo: cineastas importantíssimos como David Lynch
e Michael Mann não falam mais em filmar em outro suporte
que não a câmera digital de alta definição, a HD. O
melhor filme de 2006, Miami Vice, foi inteiramente
feito em HD (nenhuma novidade para Mann). E o que vemos
nele, para além de um espetáculo tão incoerente e impreciso
quanto maravilhoso, é uma nova forma possível do enredo
de ação se construindo em paralelo a um novo regime
do visível. Michael Mann explora as possibilidades estéticas
da alta definição ao longo de uma ação policial fragmentada
e pouco explicativa. Como em Colateral, entra
em jogo uma reflexão sobre a imagem de alta definição
e seus desdobramentos. Reflexão aprofundada (o que equivale
a dizer: trazida mais para a superfície das coisas,
pois em Miami Vice tudo é jogo de disfarce):
não apenas números, textos, imagens e sons se confundem
no mundo do digital, mas também a visibilidade da lei
e do crime, do policial e de seu inimigo – se Mann já
exercitava essa indistinção em seus tours de
force de campo-contracampo (todos lembram do confronto
entre policial e bandido em Fogo Contra Fogo),
agora ela atinge um enraizamento no próprio modo-de-ser
de suas imagens. Na esteira da proliferação irrefreável
dos dispositivos de imagem, da vigilância transnacional,
da alta definição, vem a confusão e a inteligibilidade.
Ao filme, cabe a imersão nesse estado confuso acarretado
pelos regimes estéticos e políticos contemporâneos.
Mann prova que o digital pode ser uma ferramenta de
conhecimento e de experiência sensível do mundo na mesma
medida (e de forma diferente) que a imagem fotoquímica
e o “tecido sem costura” com que ela recobre os fenômenos,
eventos, seres, objetos. A HD de Mann não oferece ao
mundo uma segunda pele, e sim uma reação gráfica. Miami
Vice não é exatamente um filme que pensa o mundo,
mas que reage a ele. A alta definição, curiosamente,
é acompanhada de alta granulação e de passagens bruscas
de um a outro ambiente, implicando passagens bruscas
de luz, respostas excessivas tanto ao escuro quanto
ao claro. Antes de “corrigir” a luz dessa ou daquela
cena, Mann prefere deixar que a câmera reaja como pode
às variações dos espaços por onde circula. Inegavelmente,
Miami Vice dá forma a um diálogo renovado com
o mundo e suas dinâmicas atuais. O digital, em suma,
mantém nesse filme viva e pulsante a conexão direta
entre o mundo e as imagens que dele nascem.
Mas por que um pôr do sol em CGI como aquele de King
Kong? Por acaso ele é mais bonito ou significativo
que um sol se pondo em O Novo Mundo? Ou que o
amanhecer delirante, precariamente captado, de Miami
Vice? É mais estimulante fazê-lo daquele jeito?
O que pode haver por trás desse prazer infantil (porém
em nada inocente) de desenhar uma cópia exagerada do
mundo? O diálogo com a natureza – que exige tempo e
dedicação, sabemos – realmente atrasa e prejudica tanto
assim as produções? Ou para alguns esse diálogo se tornou
impossível? Por que a tecnologia digital, com sua plasticidade
infinita, precisa perder tempo construindo florestas,
nuvens, passarinhos e pores do sol?
Exatamente aqui retorna a questão ecológica: sem nenhuma
índole catastrofista ou teoria apocalíptica, eu me pergunto
se não estaria o cinema, através dessas grandes paisagens
em CGI, sintetizando desde já a imagem de um mundo em
vias de desaparição. Tudo parece compor um ciclo, na
verdade. Se nos anos 80 os mais pessimistas viam o cinema
dando às costas ao mundo, ou mesmo o fim do cinema,
agora eu vejo o seguinte: enquanto o mundo nos informa
sobre suas mutações irreversíveis, e avisa que está
chegando ao fim (ao menos ao fim de uma era), o cinema
luta para aprender a sintetizar, a construir em imagens,
aquilo que existirá, daqui a um tempo, como memória
desse mundo: o sol, a terra, a água, as pessoas. Das
duas uma: ou isso é algo um tanto assustador, essa coisa
de fazer imagens sintéticas da natureza (mesmo sabendo
que ainda basta olhar para ela) como se fosse o início
de uma desmaterialização final do mundo, que vai acabar
e, portanto, é preciso saber como reconstruir seu fantasma;
ou isso é uma grande besteira que não merece um texto.
Em uma passagem de seu magnífico livro Du monde et
du mouvement des images, Jean Louis Schefer fala
que uma imagem, toda imagem, acaba por denunciar a desaparição
de seu conteúdo: o que fica, com o passar do tempo,
não é mais o significado daquelas formas, mas a forma,
pura e simples. Os aspectos ontológicos que acompanham
essa constatação são os mesmos de outrora, a começar
pela velha história de que a imagem é o vestígio de
uma coisa ausente. Foi assim desde sempre: o conteúdo
da imagem deve desaparecer para que haja imagem (basta
pensar em uma das primeiras marcas artísticas do homem
no mundo: os contornos de sua mão na pedra. A técnica
era pousar a mão sobre a pedra, encher a boca de tinta
e cuspir sobre a mão. Quando tiravam a mão, os contornos
dela tinham ficado gravados na pedra).
Schefer, no entanto, não limita essa aquisição da imagem
à idéia de restituição ontológica (idéia que permitiu
um tipo de maravilhamento quase religioso com a imagem
de cinema: o objeto ou a pessoa filmada pode estar alhures,
mas sua pele luminosa vibra diante de nós), apresentando-a
também como uma espécie de deformação simbólica ocorrida
na passagem: a significação não é algo que a imagem
exprime ou veicula, mas antes uma articulação que se
perde nela. Por isso a história da arte coleciona mensagens
desaparecidas, dispositivos alegóricos que se tornaram
ilegíveis. Ficam figuras opacas, sem interior, puramente
visíveis na forma. Todo o conteúdo ideológico, por exemplo,
pode desaparecer de uma imagem com o passar do tempo
e a mudança histórica, mas o estilo dessa imagem, sua
escritura característica, assim como sua denotação,
sua ligação com a coisa representada, isso permanece.
O trabalho de iconologia trata justamente disso: compreender
uma imagem ao reconstituir ou inverter seus contextos
e causalidades históricas; refazer o caminho que nos
leva à “montagem” dos signos lá inscritos.
Como nos mostra a história da arte, as imagens dos homens
se deixam refratar no tempo – perdendo, inchando ou
simplesmente mudando de significados – porque registram
“a superfície ou os caracteres mutantes da aparência
humana na sua função social”. Mas e se o conteúdo que
algumas de nossas imagens vêm perdendo agora for algo
mais amplo que o habitus histórico, que os códigos
sociais e semânticos? E se sua superfície mutante for
nada menos que a aparência do mundo transposta a uma
forma totalmente indiferente a seu reflexo, sua realidade?
O trabalho iconológico que lhes caberá será então o
de refazer, traço após traço, pista após pista, o caminho
que as levou à perda do mundo, ou à substituição dele
por uma “paisagem” gerada através de procedimentos numéricos
– num processo, portanto, em que ele sequer toma parte
na construção de sua imagem. Antes havia a indicialidade
da imagem analógica, que lhe permitia alegar uma participação
concreta na constituição de seu duplo fantasmático.
Em se tratando da recriação in vitro de plantas,
bichos, pessoas ou sóis poentes, no entanto, o que os
meios digitais dão ao mundo é apenas um emprego provisório,
até que um autômato tome seu lugar, para se provar mais
eficiente, mais maleável e menos dispendioso. É a aceitação
de que o mundo vai acabar e nada se pode fazer a não
ser substituí-lo por imagens. Já que não será mais possível
filmar o mundo, porque ele estará extinto, aprendamos
logo a sintetizá-lo por meios digitais, ou melhor, tratemos
de construir um novo mundo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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