Se
o principal da cena da transformação em Um Lobisomem
Americano em Londres estava na expressão de sofrimento
do personagem, na sua dor, como se os efeitos da metamorfose
rasgassem a carne (cf. “Metamorfoses [1]: O Grito”,
em Contracampo nº 78), no decorrer da década de 80,
e de forma já razoavelmente solidificada no seu final,
a imagem sintética traria ao universo do cinema a forte
presença de duplos descarnados, desmaterializados, não
raro assexuados, frutos de um prazer infantil. Para
esses corpos sem carne e sem sexo, foi construído o
playground que hoje acomoda um filme como King Kong.
Pois na impossibilidade de fazer do gorila gigante um
corpo, Peter Jackson faz da atriz, Naomi Watts, uma
imagem (ela é completa idealização, heroína positiva
lívida e pura); corpo real e corpo digital se harmonizam
numa esfera infantil, anterior à descoberta sexual do
corpo.
Mas o cineasta que melhor se apropriou dos meios digitais
foi também – e não por acaso – o que melhor tematizou
a transformação do cinema a partir da imagem sintética:
entre O Segredo do Abismo (1988) e O Exterminador
do Futuro 2 (1991), James Cameron transita do mimetismo
(a imagem-espelho) ao medo de que sob o Mesmo se esconda
na verdade o Outro (a imagem-chiclete, o metal líquido
que assume a forma que quiser e que portanto é o nada
absoluto). Em O Exterminador do Futuro 2, a metamorfose
se torna indolor e fluida, o corpo-imagem do vilão “escorre”
de um estado a outro, de uma forma a outra, de um rosto
a outro, sem o menor esforço aparente. Um estado anestésico
da metamorfose se instaura na nova Hollywood. Ao corpo-máquina
dos anos 80 sucede o corpo-imagem, no qual o tema recorrente
da identidade provisória se desdobra na diluição de
toda e qualquer identidade.
Embora ao vídeo seja reservado um papel antipático
e até mesmo vulgar em O Segredo do Abismo (o
da mera vigilância, pelo circuito interno que leva os
personagens a se monitorar e se antagonizar), era nele
que, dez anos antes, essa mutação da imagem dava seus
primeiros passos significativos. No vídeo The Reflecting
Pool, de 1977-1979, Bill Viola faz o corpo de um
homem que se atira a uma piscina ser congelado no ponto
mais alto do salto e ir desaparecendo lentamente, até
se dissolver na folhagem que há no fundo. O reflexo
do homem na lâmina d’água abaixo dele, entretanto, lá
permanece. Outras pessoas então começam a aparecer refletidas
na água, sem que essas pessoas estejam circulando pela
borda da piscina. A noção de fonte é invertida: o reflexo
na água não assegura mais a seu modelo a presença dele
no mundo, não é mais seu vestígio. A água não religa
a imagem à sua origem, mas sim memoriza esta última.
No espelho aquoso de The Reflecting Pool, um
mundo começa a “pensar” o outro, a imagem sintética
subsiste ao mundo que ela figura: o corpo se reflete
numa matéria fluida e metafórica, até o desaparecimento
do próprio modelo – e a permanência do duplo virtualizado.
O Segredo do Abismo, ao contrário de O Exterminador
do Futuro 2, ainda conserva uma certa dor nessa
passagem. Na cena em que Bud (Ed Harris) precisa deixar
que um líquido se infiltre em seus pulmões, para que
respire em níveis subaquáticos onde jamais se pensara
que o homem poderia chegar, ele passa mal, reluta, sente
falta do oxigênio: trocar o ar natural por um líquido
sintetizado implica um incômodo estágio de adaptação.
Mas a dor já dura bem menos do que a transformação de
Um Lobisomem Americano em Londres, e logo depois
Bud consegue respirar e se comunicar com os outros através
de um teclado anexado à sua roupa de mergulho. Um outro
personagem explica o conceito daquele método de respiração
e o tranqüiliza: todos passamos nossos primeiros nove
meses respirando fluidos, o corpo de Bud irá lembrar
disso. A respiração no meio líquido e o estado de suspensão
quase total de suas ações – ele vai sendo levado pela
água e pelo cabo-guia preso à plataforma submarina –
devolvem Bud a um ambiente placentário. Dentro da roupa
de mergulho, movendo-se sem esforço algum pelo fundo
do mar, rodeado pela escuridão e com o rosto rosado
por causa do líquido que preenche sua máscara, ele parece
um feto de volta ao útero. A viagem intrauterina se
completa quando ele desce às profundezas do “abismo”:
enquanto a consciência de Bud vai se desligando, e as
palavras que ele digita no teclado vão fazendo cada
vez menos sentido, sua esposa Lins (Mary Elisabeth Mastrantonio)
continua falando com ele, lembrando de momentos que
passaram juntos ou afirmando que “tudo ficará bem”.
Se o retorno é ao útero, não poderia faltar essa “voz
materna”. Anteriormente, após a antológica cena em que
a água copia os contornos de seu rosto, Lins havia dito
que alguma inteligência não-humana teria aprendido a
manipular a água a partir da decifração de sua estrutura
molecular. James Cameron avisa, através desse raciocínio,
qual seria o caminho a ser tomado no terreno do digital:
dominar e enformar uma matéria tão fluida quanto a água,
o que só pode ser feito atingindo sua matriz, seu código.
A “piscina” de O Segredo do Abismo (um verdadeiro
oceano artificial construído para o filme) é bem maior
que a de Bill Viola. Essa obscura paisagem subaquática
de Cameron é um ambiente visualmente incomensurável,
onde a imagem analógica e a digital buscam seu acordo:
o primeiro contato entre corpo-imagem e corpo-real é
pacífico e simpático, e se expressa tão-somente num
sorriso. Ao final do filme, no entanto, após Bud chegar
à misteriosa nave, uma lição de moral é aplicada à humanidade
quando esses seres que habitam o “abismo” ameaçam inundar
o nosso planeta com uma onda gigante. É aí que a frase
mais antiga do cinema, “Eu te amo” – que Bud escreve
para Lins um pouco antes deles perderem contato na cena
da descida ao abismo –, precisa aprender a se re-expressar,
dessa vez por teclas digitadas, para depois se
projetar na tela líquida da nave-útero que confronta
ao homem todo o horror e toda a graça de seu imaginário.
O homem passa a ser observado por suas imagens, como
fica prenunciado na frase de Nietzsche que abre o filme
(“se você olha detidamente para o abismo, ele começa
a olhar de volta”).
O Segredo do Abismo tenta responder a uma questão
recorrente na sua época: num mundo cada vez mais sintético,
onde o espaço habitado começa a se definir cada vez
mais de acordo com o pensamento que o constrói à sua
imagem, como dar ainda conta do ambiente no cinema?
Como fazer ainda filmes com ambiente e não apenas figuras
inseridas sobre imagens confeccionadas in vitro?
Se o espaço físico pode se produzir diretamente como
espaço mental, cabe a Cameron insistir em colocar o
homem num espaço que possui “peso”, e no qual é preciso
negociar com um material que é externo ao pensamento
e que, por força da Natureza, opõe à idéia seus próprios
modos de existência. Na imagem que daí resulta, uma
nova relação se estabelece entre as forças que a sustentam,
não mais relação de fundo e superfície, já que as formas
possíveis se produzem no código genético da imagem.
O tentáculo aquoso, mutante e modulável, que invade
o submarino e chega até Lins, substitui-se à lâmina
d’água. A ilusão em 3D quer ser a nova fonte da imagem,
papel antes destinado à superfície bidimensional – eis
a diferença elaborada durante os dez anos que separam
The Reflecting Pool e O Segredo do Abismo.
Submersos nas profundezas do oceano e assediados pelo
brilho inebriante da nova imagem, os tripulantes da
plataforma submarina de O Segredo do Abismo perdem
o contato com o navio: não só os rádios e transmissores
deixam de funcionar, como uma tempestade rompe o cabo
(não por acaso chamado de “cordão umbilical”) que os
liga ao navio. Desfeita a relação fundo-superfície,
a distância a ser percorrida no interior da imagem é
uma distância virtual. À superfície reflexiva do analógico
sucede o grande volume oceânico – homogêneo e fluido
– do digital; à textura sucede a substância. A despeito
de todo trauma que a perda de conexão física com o real
pode ocasionar, O Segredo do Abismo propõe o
reconforto materno, um ambiente acolhedor anterior ao
momento em que o homem precisa se afirmar no mundo através
de ações (nesse sentido, menos um rompimento
do que um retorno à origem), e uma simultânea retomada
de consciência.
Responder à questão do ambiente é de alguma forma responder
à questão do “outro”: o ambiente, disse Serge Daney
no mesmo ano de O Segredo do Abismo, é nossa
relação com os outros à volta, e também com o resto
do mundo. Como filme de transição auto-reflexiva, O
Segredo do Abismo percebe a posição central que
essa questão ocupa e encontra duas formas de alteridade.
Uma se desgasta e se prova ultrapassada na hostilidade
ao antigo outro (os russos, os “reds”, o inimigo démodé
do final dos anos 80), rendendo um conflito entre a
ala civil e a ala militar da plataforma submarina –
em se tratando dos EUA, tudo sempre retorna à guerra
doméstica. A outra alteridade, mais complexa e nova,
é buscada sob o plasma da imagem digital, nos meandros
da substância que imita o rosto dos homens para depois
apontar a eles seus erros e ameaçá-los com uma inteligência
muito maior e mais poderosa: o outro que nos ajuda a
ver nós mesmos, mas ainda assim um outro. Em O Exterminador
do Futuro 2, o corpo-imagem demonstraria sua superioridade,
sua adaptabilidade a tudo, não mais como um pai conselheiro
e educador, e sim como um inimigo radical da humanidade.
O corpo-imagem se torna aquele que quer tomar o nosso
lugar. Os “novos amigos” feitos por Bud estão a milhas
de distância do horizonte pessimista que se re-apossa
de Cameron em O Exterminador do Futuro 2, no
qual o digital já se infiltra no espaço “real” de forma
fluida e quase imperceptível. A imagem digital se torna
então transparente, partilha com a imagem fotoquímica
um mesmo regime de ficção no mundo real – no que reside
sua possibilidade mesma de dominar esse mundo, ao se
diluir na paisagem analógica e ainda assim fazer valer
suas inigualáveis potências.
Quando os seres que Bud encontra no abismo resolvem
poupar o mundo dos homens sob a crença, devolvida pela
reconciliação entre ele e Lins, de que ainda existe
o amor, é menos por pieguice de James Cameron do que
por um enorme medo de que, ao longo do processo que
o próprio O Segredo do Abismo acentua, a impressionante
autonomia da imagem sintética (que se reproduz com independência,
por cissiparidade ou brotamento interno) confirme a
hipótese de Daney de que no lugar de se fazer um filme
como se faz um bebê, através de um ato sexual, de amor,
a imagem simplesmente se desdobre como um clone. Por
trás de todas as subtramas de O Segredo do Abismo,
há o que não poderia deixar de haver, ou seja, um filme
de recasamento, a redescoberta de um amor. Qualquer
que fosse o destino do cinema, Cameron queria que seus
personagens continuassem a existir por um único e velho
motivo: para serem amados. E quanto a isso ele pode
ficar tranqüilo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|